a minha madrinha
Desde aquele dia que o meu maior objectivo de vida mudou. Desde aquele dia que, em primeiro lugar, não está o meu sucesso como artista, a minha felicidade como homem ou a minha bebedeira no Marquês todos os anos até ao fim dos meus tempos. Desde aquele dia que o meu maior objectivo de vida é fazê-la rir. Tudo o resto vem depois. Se lhe provocar um riso, um simples esgar de felicidade que lhe aliene do espírito do lugar onde o espírito está, fico feliz. Sempre que falo com ela, sinto o ar pesado pela presença de quem ela já não tem, mais pesado comigo pelas parecenças que eu e ele tínhamos. Sempre que falo com ela, sei que ela fala, também, com ele. Sempre que falo com ela, sei que falo, também, em nome e em voz dele. Aquele dia foi o dia em que ele morreu. Ele é, porque nunca nenhum deixa de ser, o filho dela. Ela é a minha madrinha. A minha madrinha é, por tudo o que nunca conseguirei dizer, minha mãe também. Eu não sou o filho, mas sim o palerma que a tenta trazer à tona do mundo através de um dos mais primários reflexos humanos, o riso. Isso não faz de mim absolutamente nada, mas faz dela uma mãe que ri. Que é assim que todas as mães deveriam ser. E esta minha, apesar de longe e apesar de não ser de verdade, é a mãe mais bonita que eu – que o meu primo – poderia desejar.
na linha da frente
Há várias formas de lutar. A minha, neste momento, nesta guerra, é cá dentro, longe das pessoas. A da minha mãe, neste momento, nesta guerra, é lá fora, perto das pessoas. Sempre fomos muito diferentes, mas iguaizinhos. Mas, hoje, não sou eu, é ela. A minha mãe trabalha na área da saúde. Está, portanto, na linha da frente do combate ao inimigo. Protegida com máscara, regras e fé, mas desprotegida, como estamos todos, um bom bocado mais do que todos, na verdade. A minha mãe, que não é médica nem enfermeira, tem a função (e o dom) de ouvir, acolher e encaminhar. Recebe as crianças e os velhos, as queixas e os medos, os murmúrios e os gritos. A minha mãe não desiste nem deserta. Está e vai continuar a estar lá na frente até isto acabar, mesmo que isto não acabe nunca. Ela é assim, teimosa na bondade. A minha mãe, por ser minha mãe, está mais desprotegida do que todos. É a minha mãe, os outros todos são apenas os outros todos. Eu sou os outros todos. E a minha luta não é luta nenhuma quando luta a minha mãe. Só quero que isto acabe para ela voltar. Há mais de demasiado tempo que não a abraço. Há várias formas de abraçar.
a minha mãe
Faz anos a minha mãe. A minha mãe. É tão bonito dizer “a minha mãe”. É como dizer poesia em apenas três palavras. A minha mãe. Talvez “a minha mãe” seja a única poesia que há no mundo inteiro, a única poesia que realmente interessa dizer, a única poesia que deu origem a isto tudo que nos é e que nos tem. A minha mãe. Eu, que amo palavras mais do que amo a vida, trocaria todas elas para dizer, até à eternidade, “a minha mãe”.
A minha mãe é berço e leito, a minha mãe é a minha noite onde me deito. A minha mãe é grito e carinho, a minha mãe é o meu próprio ninho. A minha mãe é luta e choro, a minha mãe é ouro. A minha mãe é Freud e Vitorino, a minha mãe é o seu destino. A minha mãe é terra e verdade, a minha mãe é a mãe da saudade. A minha mãe é beijo e abraço, a minha mãe é mãe de um palhaço. A minha mãe é come a sopa e cuidado com o frio, a minha mãe é tens mesmo o meu feitio. A minha mãe é mãe-galinha, a minha mãe é minha. A minha mãe é preocupação, a minha mãe é exagero do coração. A minha mãe é princípio, meio e fim, a minha mãe é igualzinha a mim. A minha mãe é riso e melancolia, a minha mãe dá-me cabo do juízo, e o que eu lhe dou é poesia.