as dores dos outros
Quando pensamos em sem-abrigo esfomeados, criancinhas doentes ou velhos sozinhos para conseguirmos superar as nossas dores, não estamos a sentir nem amor nem empatia nem compreensão. Quando pensamos em sem-abrigo esfomeados, criancinhas doentes ou velhos sozinhos para conseguirmos superar as nossas dores, estamos a sentir prazer. E esse prazer é, como todo o prazer que há, egoísta. Estamos preocupados connosco, com as nossas dores, não com eles, com as dores deles. Estamos a usar os sem-abrigo esfomeados, as criancinhas doentes e os velhos sozinhos. Eles são aquele banquinho para chegarmos à última prateleira (e nem sequer está lá nada). As dores dos outros ajudam-nos a combater a nossa, servindo de alavanca para a esperança que temos em nós, não nos outros. Portanto, “se aquela criança tem cancro e está a rir, eu também posso rir e brincar e ser feliz, não tenho razão para não o fazer, há quem esteja bem pior do que eu”, não. Deixemo-nos disso. Não faz sentido mentir. Não há dores iguais e, comparando, não há dores comparáveis. Cada um tem as suas, cada um sofre as suas. Não vamos fingir que nos preocupamos genuinamente com os outros quando estamos assim e não vamos fingir que ficamos genuinamente melhores quando os usamos. É mentira. A dor não acompanha o fingimento. As dores doem mais se forem nossas e se, nossas, as sofrermos sozinhas. Mas só assim é que elas podem deixar de ser o que são. Em verdade.