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uma canção do medo

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A escuridão magoa. Mais do que uma bolada na cara ou um pontapé nos tomates. A escuridão, que nem sequer nos toca, tem o incrível talento para nos deixar estendidos numa valeta. Quando estamos com ela, quando ela nos tem, não tem mais nada, não temos mais ninguém. Estamos inteiramente dentro do escuro, que é incerto, indefinido, indeterminado, desconhecido e que, pela certeza de toda esta incerteza, nos faz ter medo. E o medo, por muito que nos digam que faz parte de quem é inteligente, é bem capaz de nos partir, destruir, como faz com tanta gente. A escuridão traz o medo num carrinho de bebé. Tão pequenino que parece, tão grande que ele é. A escuridão tem outro talento além da força. A escuridão é sempre uma coisa e o seu oposto. A escuridão é sempre o monstro e a formiga, apenas sendo o monstro ou a formiga quando deixa de ser escuridão. Mas, sendo escuridão, é sempre maior do que é na realidade, porque é sempre monstro e formiga, nunca só um.

Nós estamos na escuridão. E o medo já não vem de carrinho, vem pela mão. Tudo o que lá está – que é tudo o que nos tem – é muito menos do que aquilo que imaginamos. É a imaginação que nos trama, o idealizar que há ali qualquer coisa que é chama, que nos chama. E nós vamos, acreditamos no que imaginamos, e a imaginação é real como um corpo ou um sonho. E está lá o monstro, a formiga, as famílias dos dois, os passados e futuros dos dois, os sonhos dos dois, as conversas dos dois, as fodas dos dois, e depois? Depois não há razão, pelo menos enquanto houver escuridão. Mas há pele, há guerra, há mel, há terra, há chão, há sorte, há não, há morte. À escuridão, nada lhe falta, por pouco ou nada que ela tenha. Quietinha no seu canto, completamente alastrada em nós, a escuridão não faz barulho, grita como se toda ela fosse voz. Não mexe uma palha, deixa-se estar à espera da canalha que venha brincar. E claro que a canalha, que somos nós, vem sempre. A gritar.

Desejamos a escuridão na exacta medida em que a negamos. Somos todos gente feliz nos cafés, nas ruas e nas redes sociais. A escuridão não nos existe. Jamais! Mas assim que pagamos a bica, cruzamos olhares ou bloqueamos o telemóvel, lá vem ela, essa galdéria escondida, trincar-nos as ilusões. Nós, que andamos por aí a fingir nas entrelinhas da vida, esquecemo-nos de ouvir a nossa batida. Vivemos vidas que não são as nossas, vestimos roupas que não temos, usamos máscaras que nos tapam da cabeça aos pés. Eu não sei como sou. E tu, sabes como és? Verdadeiramente, sem merdas, sem adjectivos com caracteres contados para a bio do Instagram ou do Facebook. Realmente, sem maquilhagem, sem photoshop, sem mamas, sem abdominais. Eu não sei para onde vou. E tu, sabes para onde vais?

Há qualquer coisa de atracção na escuridão. Eu sei, cedo-lhe tantas vezes. E tardo-me em sair de lá, culpa minha, claro, que a escuridão não existe sozinha, só com gente que a veja. A escuridão parece que beija. Com dentes. Aleija. Eu acho que sinto. E tu, sentes? A escuridão é uma espécie de materialização do futuro. Sabemos o que é, mas não sabemos o que tem. Olhamos, pensamos, imaginamos, mas não vamos além. Não conseguimos, não sabemos, e seguimos e logo vemos. A escuridão tem tudo o que julgamos que ela tem. É por isso que nos intimida, que nos faz sentir ainda mais sós. A escuridão é a nossa vida. A escuridão somos nós.

, texto na Grotta #5 (edição Letras Lavadas).

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