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bloco de notas
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a minha avó

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Hoje, faz anos a minha avó. A minha avó já não existe. Foi embora quando eu era pequenino. Morreu. Mas não morreu muito (morre-se muito quando não se é lembrado). Esta é a única lembrança que eu tenho da minha avó. E, mesmo ou sendo única, faz-me lembrá-la muitas vezes. Eu deitava-me numa manta feita de retalhos e a minha avó puxava-me e levava-me a ver o mundo inteiro naqueles poucos centímetros que ela conseguia percorrer comigo ao colinho da manta. Hoje, é de um só retalho a lembrança que tenho da minha avó. Mas continuo a viajar graças a ela. Deitado com ela dentro. Obrigado, avó. E parabéns.

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silvino

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Silvino foi um homem às direitas, como o seu punho, que acertou em cheio no meio milhão de chicos-espertos que tiveram a ousadia de piscar o olho à senhora sua esposa que, por muito boa esposa que fosse, por muito boa roupa que passasse e por muito boa comida que cozinhasse, lá, de vez em quando, se aperaltava em excesso dos cabelos às pontas das unhas, da mini-saia ao decote, e desafiava o mais desconchavado coração que se babasse nos olhos de qualquer palerma. E ele não gostava disso.

Pudera. A mulher era dele, os cabelos eram dele, as unhas eram dele, a mini-saia era dele e o decote era dele. Eram da mulher, mas eram dele. Só ele podia olhar. E o punho que escangalhava os queixos dos habilidosos que, distraídos, se concentravam naquelas relíquias empinocadas, também era dele. Era dia sim, dia também. Noite sim, noite também. E, à tarde, também havia forrobodó. Sem alarido, que o povo é sereno. E Silvino também era, só o punho é que não. Ninguém consegue ter controlo total do seu corpo. Há quem não controle o coração, há quem não controle o punho. Aquilo acontecia-lhe assim sem mais nem menos. Sem quês nem para quês. Era com cada bujarda que o café estremecia, a televisão mudava de canal e o canal mudava de apresentador. Era impressionante.

E impressionante foi também a cabeçada que ele deu na esquina da mesa onde um copinho de uísque e um jornal se acompanhavam. Foi ela que o matou. A esquina. E os outros uísques que emborcava como quem limpava atrevidos. Eram às dúzias, às centenas, aos milhares. Naquele dia, bebeu um a mais e caiu. Deu-lhe um aperto no coração e um desaperto na boca. Soltou a língua, fraquejou as pernas e lá foi ele, com a cabeça direitinha à esquina da mesa. A pancada foi seca, apesar da vesícula encharcada. Lançou um grito mudo e catrapumba. O café parou. A televisão não mudou de canal e o canal não mudou de apresentador. Acabou-se o Silvino.

lágrima | romance – 2015

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o futuro próximo

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Lisboa, Teatro Nacional D. Maria II, ano três mil e tal, pelo menos, pelo que se mostrava em palco. Personagens anestesiadas de vida à procura da morte. É isto que se passa nesta peça que vai do nojo à poesia, do transe ao osso. Este Futuro Próximo é uma bizzaria que nos desconcerta do princípio ao fim da história (que nem é o princípio nem o fim da história toda). Há riso, choro, merda, amor, ilusão, melodia, repulsa e morte. Há muito de entranhas nesta peça futurista que, na sua essência, nos fala de nós e da nossa relação com os outros – mas mais ainda da nossa relação connosco. Lisboa, Teatro Nacional D. Maria II, dois mil e dezanove.

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as intermitências da morte

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“No dia seguinte ninguém morreu. O facto, por absolutamente contrário às normas da vida, causou nos espíritos uma perturbação enorme, efeito em todos os aspectos justificado, basta que nos lembremos de que não havia notícia nos quarenta volumes da história universal, nem ao menos um caso para amostra, de ter alguma vez ocorrido fenómeno semelhante, passar-se um dia completo, com todas as suas pródigas vinte e quatro horas, contadas entre diurnas e nocturnas, matutinas e vespertinas, sem que tivesse sucedido um falecimento por doença, uma queda mortal, um suicídio levado a bom fim, nada de nada, pela palavra nada.”

José Saramago

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bestas de lugar nenhum

Comentários fechados em bestas de lugar nenhum primeiros parágrafos

“Começa assim. Sinto comichão como insecto que rasteja na pele, e depois cabeça começa a picar mesmo no meio dos olhos, e depois quero espirrar porque o meu nariz comicha, e depois bufa ar no ouvido e ouço uma data de coisa: tique-tique de insecto, ronco de camião como animal, e depois alguém que grita ÀS VOSSAS POSIÇÕES JÁ! RÁPIDO! RÁPIDO! RÁPIDO! TUDO A MEXER! TOCA A ANDAR OH! com voz que raspa no meu corpo como faca”.

Uzodinma Iweala

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um poema

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Fiz um poema inspirado no meu gato. Espero que gostem:

Eu tinha um sofá
Eu tinha uma jarra
Eu tinha uma cadeira de pele
Eu tinha livros numa estante
Eu tinha cordas na minha guitarra
Eu tinha cabos de internet
Eu tinha cabos de televisão
Eu tinha cabos de computador
Eu tinha cabos, ponto
Eu tinha duas pernas
Eu tinha dois braços
Eu tinha tapetes
Eu tinha cortinas
Eu tinha roupa no armário
Eu tinha um copo em cima da mesa.

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portugal, um problema

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Sol, praia, serra, chuva, neve, comida, bebida, cultura e gente boa. Portugal tem tudo, só não tem estrume que chegue para fertilizar o que cá está. Para ser melhor, para ter um futuro mais forte, feliz e saudável, Portugal precisa de mais estrume.

Precisa de mais Casas dos Segredos, mais cabelos rapados de lado com crista em cima, mais Schwarzeneggers de ginásio, mais 760-100-200, mais condutores na faixa do meio, mais folhas Excel, mais formulários nº 102/4 alínea D de 2003 e troca o passo, mais sushis no Facebook, mais pores-do-sol no Instagram, mais comentadores de futebol e de política e de economia e de coisa nenhuma, mais anúncios da dona Alice a abrir o Intermarché a meio da noite para ir buscar o leite ao Joãozinho, mais playback, mais frases do Paulo Coelho, mais beatas no chão e na missa, mais óculos às cores, mais cantores de domingo à tarde, mais submarinos e Tecnoformas e Freeports e Montes Brancos e BES e BPNs, mais Apitos Dourados, mais condutores de fim-de-semana, mais narizes empinados, mais mamas descaídas, mais greves do Metro e da Carris e da TAP e dos táxis e dos enfermeiros e dos professores e dos médicos e de todo o tipo de funcionário público que existe ou está por existir, mais férias judiciais, mais tatuagens com caracteres chineses, mais hamburguerias gourmet-retro-chiques, mais equipas do Sporting, mais tudo o que é mau e nos chateia.

E nós, os tugas, só chateados, com os nervos à flor da pele e o sangue à flor dos olhos, é que conseguimos fazer alguma coisa. A padeira não deu uma coça aos castelhanos por estar feliz da vida, mas porque os sacanas dos nuestros hermanos lhe interromperam a cozedura do pão. O Infante Dom Henrique não “saiu” de Sagres porque estava cansado de estar na praia de papo para o ar a ver inglesas, mas porque não admitia que o mundo poderia acabar no Algarve. O Ronaldo não ganhou cinco bolas de ouro por ter tudo o que qualquer comum mortal ambiciona durante toda a sua vida, mas sim porque o Platini, o Blatter e o Messi dão cabo da paciência (e dos rins, no caso do Messi) a qualquer um.

Precisamos de estrume para ficarmos chateados. Precisamos de estrume para fertilizar a nossa vontade. Para existirmos, para agirmos. Nós não existimos, resistimos. Nós não agimos, reagimos. E é esse prefixo (Re – Re – Rrrr!!!) que não renegamos e nos renasce renascendo connosco, é esse prefixo que nos reencaminha num regresso ao passado, é esse prefixo que faz de nós reis do reino dos recordes do Guinness. Somos uma espécie de rebanho em refogado a redescobrir coisas que, pelo prefixo, já estavam descobertas. Deixemos as redescobertas onde estão, recordemo-las, mas apenas isso. Está na altura de descobrir. Não o que existe lá fora, mas o que existe em cada pedaço das nossas entranhas (e é sabido que, tecnicamente, as nossas entranhas não são mais do que estrume).

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as dores dos outros

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Quando pensamos em sem-abrigo esfomeados, criancinhas doentes ou velhos sozinhos para conseguirmos superar as nossas dores, não estamos a sentir nem amor nem empatia nem compreensão. Quando pensamos em sem-abrigo esfomeados, criancinhas doentes ou velhos sozinhos para conseguirmos superar as nossas dores, estamos a sentir prazer. E esse prazer é, como todo o prazer que há, egoísta. Estamos preocupados connosco, com as nossas dores, não com eles, com as dores deles. Estamos a usar os sem-abrigo esfomeados, as criancinhas doentes e os velhos sozinhos. Eles são aquele banquinho para chegarmos à última prateleira (e nem sequer está lá nada). As dores dos outros ajudam-nos a combater a nossa, servindo de alavanca para a esperança que temos em nós, não nos outros. Portanto, “se aquela criança tem cancro e está a rir, eu também posso rir e brincar e ser feliz, não tenho razão para não o fazer, há quem esteja bem pior do que eu”, não. Deixemo-nos disso. Não faz sentido mentir. Não há dores iguais e, comparando, não há dores comparáveis. Cada um tem as suas, cada um sofre as suas. Não vamos fingir que nos preocupamos genuinamente com os outros quando estamos assim e não vamos fingir que ficamos genuinamente melhores quando os usamos. É mentira. A dor não acompanha o fingimento. As dores doem mais se forem nossas e se, nossas, as sofrermos sozinhas. Mas só assim é que elas podem deixar de ser o que são. Em verdade.

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o palhaço

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Os balões, as flores e os narizes vermelhos faziam agora parte de um passado que ele queria esquecer. Apesar de todas as gargalhadas que ouvia sempre que subia a palco, ele, o palhaço do seu circo, invertia o que ouvia em sentimento. Todas as noites, vestia-se de cores em forma de roupa e lá ia ele. Actuava sempre depois do domador de leões e antes da trapezista. Mas ele era o único que se sentia desequilibrado sempre que olhava de frente o animal selvagem que era a sua vida. No fim, depois da felicidade (a dos outros), enfiava as mãos nos bolsos e as ideias no chão. Tinha riscos azuis, brancos e vermelhos a escorrerem-lhe dos olhos. Não deveria ter saído dali sem se desmaquilhar. Não deveria ter saído dali a chorar. Mas ele era um palhaço. A felicidade era o seu trabalho. A tristeza era o seu descanso.

pequenas estórias de muitas vidas | livro de contos – 2014

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ele e ela

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Estes são o meu tio António e a minha tia Fernanda, embora nunca tenham sido, para mim, nem António nem Fernanda. Estes são o Quicoino e a Nhanha. Ela morreu em 2002. Ele tem morrido aos poucos desde 2002. Ele existe, ainda, e ela também, num lugar diferente. Ele com muitas saudades dela, ela lá longe de nós. Ele choraminga sempre que a lembra, faz beicinho e limpa os olhos com as mãos enrugadas e duras e já fechadas sobre si mesmas. Solta um suspiro e tenta arranjar mais um bocadinho de ar para continuar neste lado sem ela. Tem conseguido. Ela enchia-me de mimos e eu roubava-lhe Ferreros Rocher. Ele tocava trompete e deixava-me chateá-lo enquanto dormia na espreguiçadeira. Foram-me tios por grau e avós por coração, tantas vezes pais. Hoje, o Quicoino está cansado e triste pelas saudades que nunca deixou de ter dela. Ela, a Nhnanha, tem a gargalhada estridente em cada memória que ele traz à conversa. Ele a preto e branco, ela a cores. Ele e ela, dois amores.

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laurindinha

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Ela passava o dia à janela. Viu o seu amor ir para a guerra e não o viu voltar. Mas esperava por ele como quem espera pelo futuro. Vem amanhã, vem amanhã, sempre amanhã, só amanhã. Os passarinhos eram a sua companhia. Empoleiravam-se no parapeito e ela empoleirava-se nos peitos deles. Para onde eles olhassem, ela olhava também. À procura dele. Mas ele não vinha, já se sabe. Sabia de cor todos os passos de todas as pessoas da aldeia. As horas a que saíam de casa, as horas a que chegavam, as horas a que se demoravam na praça, na florista e na escola. Dizia olá a quem vinha, dizia adeus a quem ia. Anotava brigas e negócios, encontros e desencontros. Assistia, do terceiro anel do seu parapeito, às jogatanas de rua onde as pedras eram postes de baliza. Marcava faltas, gritava, incentivava, fazia claque. Os putos não lhe ligavam patavina.

Laurindinha não era velha nem era nova. Tinha a idade do tempo e vivia bem com isso. Não se queixava. Era o bibelô da aldeia, o naperon em cima daquela antiga televisão que era a sua casa, uma casa a preto e branco com dois canais e sem comando à distância. À distância, só o seu amor.

lágrima | romance – 2015

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lamento, lili

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Lamento, Lili, mas estar vivo não é o contrário de estar morto. A morte não é um estado. Não se pode estar na ausência. Estar pressupõe vida, continuidade, existência. Estar morto é uma contradição. Morre-se e pronto, não se está morto. Não se está, ponto. Estar vivo não é o contrário de nada. Estar vivo, simplesmente, é. Estar morto não é.

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o joker somos nós

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Arthur Fleck é um homem sozinho, triste, desapontado, deslocado, marginal, louco, puro e real. Arthur Fleck é Joker. O Joker somos nós.

Arthur Fleck não encaixa na sociedade. É um homem que grita sem ser ouvido, e, precisamente por gritar sem ser ouvido, grita para dentro de si, onde faz eco, pois o dentro é tão grande e tão vazio. E o vazio ocupa-lhe tanto espaço que, quando inflama, sai por todo o lado e atropela toda a gente. Pela boca, pelos olhos, pelos dedos, quem ama, quem odeia, quem não conhece.

É por isso que Joker, o filme (e Joker, o palhaço) nos deixa tão desconfortáveis. Joker, o palhaço, sofre da doença de rir em descontrolo, mesmo em momentos inoportunos. Joker, o filme, faz-nos rir em descontrolo, mesmo em momentos inoportunos. Quando ele ri no metro, quando ele vai contra a porta no hospital, quando ele mata em casa. É nestes momentos, e em tantos outros, que vestimos a pele (e a doença) de Joker, o palhaço. Rimos, metemos a mão à frente da boca e pedimos perdão pelo riso. É isto que acontece. Sempre. Por nos sentirmos a trair os nossos alicerces do bom e do mau, por não os sabermos distinguir e, até mesmo, por os negarmos.

Joker, o palhaço, faz o que grande parte de nós, em algum momento, em algum lugar, gostaria de fazer – por se sentir deslocado, por não poder mais. Joker, o palhaço, vai lá aquele sítio sombrio da nossa cabeça e diz olá. E nós adeus, dizemos olá de volta e ficamos nestas voltas inquietas à volta de nós mesmos. Isso incomoda-nos. Não gostamos que se saiba, não queremos que ninguém saiba. Mas sentimos, muitas vezes, o mesmo e temos, muitas vezes, o medo.

Olhamos Joker, o palhaço, e olhamo-nos ao espelho – e lá estamos nós, carregadinhos de maquilhagem. Joker, o filme, é uma obra-prima porque nos agarra pelas entranhas e faz o que quer com elas e connosco, porque nos inquieta e nos engana, porque nos atira à cara com uma prestação brilhante de Joaquin Phoenix – o Óscar não chega. Joker, o filme, brinca connosco. Joker, o palhaço, é o brinquedo. Somos nós a piada. O Joker somos nós.

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rugas

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Um lar de idosos é uma casa vazia e triste. Aqui, nesta história, é um poema, nunca deixando de ser uma casa vazia e triste. Emílio é velho e mora agora nesta casa, cheia de velhos e vazios como ele. Emílio não se lembra, pouco a pouco vai perdendo passado, vai esquecendo e vai deixando de existir. Mas vai lutando, tentando encontrar solução para o que não há, outro caminho para outro destino que não o único que existe. Uma luta triste, com sopa, medicamentos e solidões. Emílio tem o destino traçado, e Paco tem, nos traços, corações.

Uma história bonita sobre o outono da vida, sobre a melancolia fatal da realidade. Vazia e triste, porém, poema.

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regresso às aulas

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Há sempre uma altura do ano em que regresso às minhas lembranças do meu regresso às aulas. Foi há tanto tempo, parece ter sido agora. Estojo com canetas azul, preta e vermelha, um lápis, uma afiadeira e uma borracha verde ou vermelha com uma das pontas azul. A borracha nunca servia para apagar nada, mas sim para escrever ANDRÉ em letras grandes com o tipo de letra dos Metallica ou então BOSS bem vincado para que toda a gente visse a minha habilidade a inglês.

Os meus primeiros livros da escola eram envolvidos por uma capa semi-transparente com desenhos das Tartarugas Ninja. O único momento em que via a capa original era quando ia com a minha mãe comprar os livros à papelaria Jota. Em casa, lá se dedicava o meu pai à encadernação. Para não estragar e, também – essencialmente -, para não me assustar tanto. Pouco depois, a disciplina de Estudo do Meio tinha-se transformado no Donatello e no Leonardo a praticar artes marciais.

Dentro dos livros, as folhas que tinham toda a matéria para o ano, depressa se tornavam autênticos diários de pré-adolescente. Letras de músicas dos Nirvana e dos Ornatos preenchiam a parte rebelde, poemas do Ary dos Santos a parte mais coraçãozinha.

Sempre fiquei na primeira ou na segunda mesa, junto ao professor. Número dois ou número três. André Pereira. Presente. Sem fazer barulho, atento à aula e às miúdas novas. Voltava a escrever no livro. A aula acabava sempre cinco minutos antes de tocar a campainha. Esquecia a dos olhos verdes que os meus já desenhavam a equipa para os 10 minutos de intervalo. Não vou à baliza. A mochila faz de poste e é roda bota fora. Sonho real. Benfica, Rui Costa, Terceiro Anel, melhor em campo, capa de jornal. Toca a campainha para dentro. Bem pior que sofrer um golo. Regresso às aulas.

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foda-se caralho

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Nada supera um bom foda-se caralho. Nada. Nem um mero foda-se nem um solitário caralho. Foda-se caralho. Assim. Lado a lado, coladinhos, encostados, amarrados um ao outro. Sem apartheid linguístico.

Dois seres que são um. Duas palavras que são uma. Duas palavras que deveriam ser uma, fodasecaralho, e que se fodesse o hífen, porque não pode haver um milímetro que seja a separá-las, muito menos um tracinho que, fodasecaralho, é um tracinho. Acaba em inho, qual é a autoridade que tem para afastar esta dupla mais forte e mais densa e mais mais do que uma Romeu e Julieta ou uma Unha e Carne? Fodasecaralho.

Que se reinvente a sintaxe, a gramática, a semântica. Tudo. Fodasecaralho é siamês, é alma do povo português que não tem filtro na língua nem nos dentes. E, sem filtro, há mais verdade. Bonita ou feia, sem saudade nem penitência. Não é ignorância nem ausência de educação, é a importância de dizer as merdas com o coração.

Fodasecaralho é casal que enche a boca e os ouvidos. Só os que não o sentem ou não o dizem ou ouvem mal ou já estão fodidos

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crónicas da sala de espera

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Dei por mim a reler o Pedro. Sim, o Pedro, não o livro do Pedro, mas o próprio Pedro, o homem, o camarada, o amigo. Reler o Pedro é a única forma de o voltar a ter na cadeira ao lado, a contar-me histórias de música, de mulheres e de jornalismo antigo, daquele que já não se faz. Eu não fazia nada. Apenas ouvia o que ele me dizia, e ele dizia-me tantas vezes para viver e escrever e não ter medo, e eu ouvia, e ele vivia e escrevia sobre o medo que dizia não ter. Ele tinha cancro, todos temos o medo de morrer.

As crónicas sobre os seus tratamentos de quimio e radioterapia que escreveu foram ditas na antena do Rádio Clube, onde partilhámos uma vida inteira de um ano. Antes de as dizer, pedia-me para as ler e para lhe dar opinião, se haveria alguma coisa a mudar. “Nada, Pedro”, dizia. “Só a doença, Pedro”, pensava.

O Pedro juntou todas as crónicas e editou este livro. Morreu pouco tempo depois. Ficámos sozinhos. E é quando o releio que ficamos só os dois.

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a vulgaridade do génio

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Hoje, tudo é genial. À excepção do génio, que é vulgar. Hoje, ser genial é vulgar, banal, ordinário. Hoje, ser genial é ser o seu contrário. Hoje, é-se genial por um golo, por uma frase ou por uma música. Não é preciso consistência nem talento. Nada é mediano, razoável ou morno – nem mesmo bom. Nada é assim assim. Só assim, genial.

Se cuspimos genialidade a toda a hora a toda a gente que nos surpreende, então estamos a cuspir no verdadeiro génio. Estamos a cuspir no Maradona, no Shakespeare e na Amália. Um puto que mete uma vez a bola no ângulo não é um Maradona, um escritor com likes nas suas frases de Instagram não é um Shakespeare, uma miúda que ganha um concurso de música da televisão não é Amália.

Se dizemos, constantemente, a toda a hora, que aquele é um génio, que palavras nos restam para descrever aquele que, de facto, é um génio? Falha o respeito pela palavra e pelo génio. Se atribuirmos conceitos (que não são delas) às palavras, as palavras perdem força e nós perdemos força com elas. E, sem forças, não vamos a lado nenhum.

Vamos ao extremo buscá-las para lhes dar outros conceitos, outros corpos que vestir. A palavra génio veste o corpo do mediano, do razoável, do morno, do bom e de todas as outras que dizem absolutamente tudo o que simplesmente querem dizer, mas que não dizem nem significam génio. E, assim, pela preguiça de trocar de roupa, ficamos sem saber quem é quem e quem veste o quê. Até as palavras. Essencialmente as palavras.

Tudo é igual, tudo é irrelevante. Não tem nada que saber. É mais fácil assim. É mais simples compreendermos o mundo se o virmos dessa forma. Matam-se as palavras, matam-se os pensamentos. Nivela-se o mundo por baixo e, assim, cabemos todos nele. Aconchegadinhos, inertes e iguais. Sem génios, mas num equilíbrio vulgar, banal e ordinário que nos leva a lugar nenhum.

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rip irreverente

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A maneira politicamente correcta de dizer que alguém é homossexual (como se fosse politicamente incorrecto dizer que alguém é homossexual – como se fosse sequer necessário dizer que alguém é homossexual) é dizer que é irreverente. E mais irreverente se torna (ou é tornado por quem o diz) assim que esse alguém morre.

O Beauté era um cabeleireiro irreverente, o Variações era um músico irreverente. Parece elogio, é engano. Parece qualidade, é farpa. Dizer que o Beauté era um cabeleireiro irreverente e que o Variações era um músico irreverente é fazer truque com a língua, é esconder a ofensa numa característica que nem aquece nem arrefece, mas que parece dizer uma coisa muito boa. Não é, é só sonsice de linguagem, é só homofobia camuflada.

Para esta gente politicamente correcta que diz que aquele era aquilo, aquele não era apenas homossexual, era paneleiro, maricas, rabeta, larilas, panasca – a lista de palavras é longa, como a estupidez de quem as cospe. Na sua boca, irreverente é, apenas, eufemismo para o insulto.

Ser homossexual não é ser irreverente, é ser pessoa. Sendo irreverente ou não, é ser, acima de tudo, pessoa. Mas a irreverência é a “qualidade” que lhe parece ser inata. A irreverência é fugir às regras, portanto, é ser homem e apanhar no cu. É o que quer dizer esta irreverência, palavra que, escondida pela suavidade de uma saudável rebeldia, mais não é do que arma de arremesso para quem a usa no contexto do adeus a um gajo do caralho que gostava era de caralho. Qual o mal? Qual a relevância sequer? Irreverente? Irrelevante.

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pura anarquia

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Uma espécie de Bíblia para os crentes na salvação do mundo através do riso. Deus é Woody Allen e tudo começa com Ele (atenção, letra grande por ser Woody, não por ser Deus) “lutando por conseguir respirar, com a vida a passar à frente dos olhos numa série de vinhetas melancólicas”. Tudo o resto é o que se sabe: Deus a criar coisas sob a forma de crónicas tão vulgares quanto deliciosas.

Ler, ver e ouvir Woody Allen é mergulhar, de cabeça, no caos. É lá que está a criação.

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está calor

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O jornalista diz que está calor.

No telejornal, no jornal, na revista, no site, em todo o lado. Onde há um jornalista, há um jornalista a dizer que está calor. E, para o jornalista provar que está calor – porque há pessoas que, sentindo calor, podem não saber que o que sentem se trata de calor – debita informação sobre o calor. Depois, mostra imagens de pessoas com calor e apresenta grafismos que indicam que, é verdade, está calor. Em estúdio, o jornalista entrevista um especialista em calor que diz que, realmente, está mesmo calor. O jornalista confirma que, realmente, está mesmo calor e passa, com alguma lentidão devido ao calor, para outro jornalista que está em directo de um sítio onde, pasme-se, está calor. O jornalista que está em directo de um sítio onde, pasme-se, está calor confirma que é verdade, está num sítio onde, pasme-se, está calor. Ao seu lado, estão várias pessoas, também elas, surpreendentemente, com calor. O jornalista pergunta se está calor. As pessoas respondem que está calor. O jornalista, surpreendido com a resposta e com o facto de, de facto, estar um calor dos diabos, devolve a emissão a estúdio com a relevante e pertinente notícia de que, sim senhor, está um calor dos diabos. O jornalista que está em estúdio, e em brasa por causa do calor, sorri, com alguma dificuldade por culpa do calor, pisca o olho para a câmara e diz que, sim senhor, está um calor dos diabos.

E o Jornalismo no Inferno. Até dá arrepios.

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as velas ardem até ao fim

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É bem possível que este livro não seja literatura, mas sim dança, ballet em pontas, levezinho, suave, de embalar, polvilhado com heavy metal, estrondo, barulho de realidade e escuridão. Este livro dança-se no subterrâneo, nos lençóis de água do ser humano, bem ao estilo soviético, sozinho, virado para dentro, com a melancolia própria do ser humano.

Sem merdas, cru, poético, bonito.

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manual da felicidade

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É simples. Para quê tanta lamúria e xanax? A felicidade está aqui ao virar da esquina, como as putas. Para ser feliz basta ser quem se é.

Desde que se seja vegan, runner, crente e politicamente correcto. Que se ame homens, mulheres e criancinhas, mas mais ainda os animais e as florestas. Que se faça meditação, alongamentos e yoga, que se condene a medicina ocidental e se venere a oriental, a menos que estejamos mesmo a precisar e aí que se fodam os reikis e os búzios. Que se saúde o sol, se evite o glúten, a lactose e os fritos. Que se seja contra as leis e os patrões, contra tudo o que é contra e que se assine petições, se defenda as minorias e se faça manifs. Que se critique os programas de televisão, se veja netflix, se oiça podcasts e spotify, se compre discos, se vá a festivais. Que não se critique, só se elogie, não se diga mal, só muito bem. Que se respeite os comunas e os nazis, se aceite os burros e se lhes diga que podem conseguir tudo o que quiserem, basta acreditarem e se insulte os inteligentes por não entendermos o que dizem. Que se cague na educação, se escreva como nos apetece, se diga que tudo é genial e ridículo, consoante a inclinação. Que se tape o medo, as rugas e a celulite. Que se seja incoerente e se bloqueie toda a gente que fuja, dizendo, pensando ou sentindo, deste nosso modelo de felicidade. 

É assim que se faz, fingindo que se é feliz, que se vive de verdade.

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manhã

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Um livro que engana pelo nome. Muito mais noite do que manhã, este poema feito de poemas é um mergulho na infância e em todas as memórias a ela ancoradas. Uma escrita simples e bonita que engana por ser simples e bonita.

Um livro para ler de manhã, ao adormecer.

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está por um

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É urgente o amor. Em todo o lado, em toda a gente. Mas mais, muito mais urgentemente, no futebol. E não só no que já tem assistência. É urgente o amor ao futebol na sua essência, ao futebol que, na sua definição, já tem o adjectivo que lhe parece faltar: amador. E a culpa é, grande parte, de quem o joga. Sem arte. Sem amor. 

Não por não saber passar ou fintar ou marcar, apenas por não o saber jogar. Camaradas da magia e da sarrafada em coletes berrantes, uni-vos! Voltemos ao futebol como era dantes. Acabemos com quem está a acabar com a substância da peladinha. Esses iletrados que, numa futebolada rasgadinha, cometem o crime tão triste de não contar os golos marcados, só a diferença que existe. Não está 9-8, está por um. Está 1-0. Um zero, exacto. Esses insensíveis que só existem pela conquista e não pelo espectáculo. Esses imbecis que só querem saber se ganham ou perdem, não lhes importando saber quantos golos marcam ou sofrem. Para esses palermas, um jogo que tenha terminado 9-8 é um jogo que ficou por um, que terminou 1-0. São esses que, à beira da morte, resumem a vida inteira num cinzento “estive vivo”. Que desalento.

Esses coninhas da diferença mínima que nos querem substituir os sentimentos por calhaus. Esses seres desumanos que negam o meu golo ao ângulo, a minha assistência de letra e o meu frango admirável porque um 9-8, para eles, é um 1-0. É um jogo que está por um. Por um fio, sim. Esses ditadores do vazio que apagam a História, que lhe dão um fim, que nos dizem a nós, Winstons vigiados, que a guerra com o Eurásia FC não foi assim tão sangrenta porque foi só por 1-0. Esses limitados, no limite, dizem que nunca houve guerra. E, se é sempre para terminar por 1-0, talvez não devesse mesmo haver guerra. Nem paz. Não se faz.

Mais valia jogar sem balizas. Vamos tirá-las, não são precisas. E os jogadores também. Jogamos sem eles, não são amadores, não amam ninguém. E a bola, para que serve? Se já nem o sangue do golo ferve em quem a põe na gaveta. Já não faz sentido haver pé-de-chumbo, podão ou vedeta. Quem faz isto ao futebol é gente sem coração. Para estes idiotas, contar os golos dá muito trabalho. Vai-se a emoção. Vão para o caralho.

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lolita

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“Lolita, brilho da minha vida, fogo dos meus flancos. Minha alma, minha lama. Lo-lii-ta: a ponta da língua enrola no palato e desliza, três socalcos, até que estaca, ao terceiro, nos dentes. Lo. Li. Ta.”

Lolita, do Nabokov, é uma obra de arte que tanto dança na pontinha da faca como no meio da cama. É um corpinho liso e porco e criminoso que nos acorda aqueles pensamentos que não deveríamos ter para depois os acariciar com palavras que nos fazem sentir nojo por as achar tão belas. Lençóis sujos, cuequinhas rasgadas e estamos no paraíso e no inferno, no amor. Coisa mais bonita e proibida de se ler, feita de repugnância e de pedacinhos do céu.

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a minha aldeia

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A minha aldeia não tem lugar no mapa. Não se lá chega com gps nem com indicações na estrada. A minha aldeia está onde a gente não esquece. A minha aldeia está onde não está mais nada. A minha aldeia tem a forma da minha lembrança de quando, mais do que pequeno, eu era criança. 

A minha aldeia tem as mãos gastas que me passam pela cara para tocar o neto daquela, o filho daquele, o menino tão pequenino que agora está um homem feito. A minha aldeia tem os olhos brilhantes pela noção do tempo longe que não volta e do tempo perto que pouco falta. A minha aldeia tem meninas nos sorrisos das velhinhas e velhinhas meninas nos olhos dos velhinhos. A minha aldeia tem os pés assentes na terra escaldada do sol ardente e enlameada da chuva que molha a vida da gente. A minha aldeia tem a saudade cravada nos gestos. A minha aldeia tem o uniforme negro da capela branquinha que toca o sino dolente na tarde calma. A minha aldeia arrasta o corpo em procissões e baila o vinho nos arraiais. A minha aldeia tem ais. A minha aldeia tem a crueldade do campo e do gado. A minha aldeia tem gente fora que só vem de vez em quando para a festa. A minha aldeia é fado que arde em lume brando. A minha aldeia é esta. A minha aldeia tem o coração no sítio certo. A minha aldeia é tão longe de tão perto. A minha aldeia tem a mesa rica de gente pobre que mal tem para quem lá vive e tanto tem para quem lá vai. A minha aldeia tem muito vazio. A minha aldeia tem calor e tanto frio. A minha aldeia tem o corpo da gente velhinha que num destes amanhãs já não existe. A minha aldeia é muito alegre e muito triste. 

A minha aldeia não é lugar. A minha aldeia é corpo que existe nas coordenadas do meu. A minha aldeia sou eu.

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aventuras de joão sem medo

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Sou um medricas, tenho medo de tudo – o que não facilita nesta coisa da existência. Já o João não tem medo de nada, sacana do puto que me fez desejar-lhe a vontade do risco. O João mora num sítio muito triste que bem podia ser o interior das pessoas. Um belo (soturno) dia, decide que isto não é vida e decide saltar o muro para dar início a uma épica viagem de monstros, fadas e poesia.

Uma história que deveria estar na mesa de cabeceira de todos os adultos que, mesmo medricas, ainda têm coragem de sonhar. 

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verão azul

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Mil novecentos e noventa e quatro, o Roberto Baggio falha o penálti e eu fico triste. O primeiro Verão de que tenho memória foi o mais feliz da minha vida. Éramos muitos, uns quantos adultos e uma catrefada de putos a partilhar um rés-do-chão de uma moradia em Lagos.

Havia um jardim, pequenino, em frente ao portão de entrada, e uma palmeira nesse jardim. Era lá que eu e os meus primos brincávamos. Havia uma piscina, mas só lá ia quem morava no andar de cima, nós não. Havia um grelhador com um adulto de boné sempre por perto, o meu pai ou algum dos meus tios. Cheirava a peixe e a carne grelhada. O melão era fresquinho e ainda hoje, dois mil e dezanove, me sabe àquele Verão. O meu primo João nunca queria ir despejar o lixo mas, na volta, já vinha a cantar. Também havia muito sol e sono depois de almoço. Mas os putos felizes não dormem, então, eu, o meu irmão e os meus primos íamos para o café jogar snooker e beber coca-cola. Os adultos ficavam em casa a dormir a sesta e a jogar às cartas. 

Às quatro horas, voltávamos para a praia. Corríamos, jogávamos à bola e tentávamos escavar buracos até à China – nunca conseguimos, por exclusiva culpa do mar. O regresso era feito de areia nos pés, alguns desaguisados entre primos e uma vincada falta de vontade de ir tomar banho. A vontade, mesmo que vincada, dos putos não prevalecia sobre a vontade, mesmo que branda, dos adultos e então lá íamos nós de burro preso para o banho. 

A alegria regressava num instante. Era Verão e era família. E eu era criança (o que ajuda muito nesta coisa da felicidade). Nada mais importava porque, para mim, nada mais acontecia além do que acontecia ali. E, numa televisão pequenina que estava na sala, o Roberto Baggio deu balanço. Olhou para o árbitro, olhou para o Taffarel e correu. Eu adorava o Taffarel, o Raí, o Romário e o Bebeto, mas adorava mais o Roberto Baggio. Torcia pelo Brasil porque não havia Portugal, mas fiquei muito triste com aquela bola por cima da barra. Felizmente, havia Verão partilhado naquele rés-do-chão de uma moradia em Lagos.

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declarações de guerra

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Não é um livro, é um estilhaço de granada. “Declarações de Guerra” conta, em carne viva, as vidas de ex-combatentes portugueses no Ultramar. As vidas que foram e as que ficaram, ditas por eles mesmos, furriéis, soldados, cabos, alferes, sargentos, todos eles destroçados por uma guerra que não era deles. Ficaram-lhes as vidas que já nem vidas são. Ficaram ninguém.

Um trabalho excepcional de Vasco Luís Curado que esventrou o politicamente correcto para dar voz a quem não queremos dar ouvidos.

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renascimento

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Nasci em 1985, mas a minha certidão de nascimento diz 1994. Foi após um electrizante empate a zero contra o poderosíssimo Gil Vicente de Cacioli, Dito e Mangonga que o meu pai nos deu à Luz. Manuel José Andrino Pereira, sócio nº 23070. André Filipe Ferreira Andrino Pereira, sócio nº 23071.

Passaram 25 anos e passaram memórias que hoje voltaram. Quase uma vida de mão dada e cachecol ao pescoço. Quase uma vida de uma vida inteira que é o Benfica. Que é mais do que o Benfica. É o meu pai.

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welcome to the freak show

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Claro que o Conan Osíris ganhou o Festival da Canção. Não é surpresa nenhuma. E até é bem provável que ganhe o Festival da Eurovisão. Não me admirava nada. Não é a música que ganha neste festival. Nunca é. É a diferença.

No ano passado, ganhou a gorda israelita japonesa das galinhas. Como era a música? Pois, também não me lembro. Há dois anos, ganhou o Salvador. A música era, de facto, música. E lembramo-nos dela. Mas foi a diferença que ganhou. Um puto sozinho em palco com voz, sem dança nem explosões. Diferente de tudo o resto. Felizmente, coincidiu com uma música que era, de facto, música.

Já venceu um grupo de selvagens que vieram além da muralha para cantar heavy metal, Lordi, e um homem que é mulher que tem barba e vestido de gala, Conchita Wurst. Como eram as músicas? Ninguém se lembra, não interessa. A Irlanda já concorreu com um peru, a Itália com um macaco e a Ucrânia com uma espécie de hamster. As músicas eram todas maravilhosas, não eram? Pois. A Polónia já levou um saltitante grupo de mamas a baterem manteiga em palco, sim, um saltitante grupo de mamas a baterem manteiga em palco (vale a pena pesquisar) e a Moldávia já levou gnomos do Boom Festival. Que músicas lindas, não eram? Exacto. A Áustria já deitou fogo a um piano e a Ucrânia já enrolou um Boy George em papel de alumínio. E a música? Ahn-ahn. A Letónia já optou por piratas, o Montenegro por astronautas e a Rússia por velhinhas de um rancho lá do INATEL Estaline. Músicas lindas, lindas, lindas… A Bielorrússia já pôs um loiro nu a uivar com um lobo e até nós levámos o Jel e o Falâncio sendo Jel e sendo Falâncio. Pois.

Não é surpresa nenhuma o Conan Osíris ter vencido o Festival da Canção e estar nos favoritos a vencer a Eurovisão. Não é música e é diferente. Está ganho.

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o meu avô

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Foi embora o meu avô. Mas ficou.

Fica sempre quem, indo, existe ainda. Ele foi porque tinha de ir. E é no peito que ele me continua a existir. É mesmo no peito, fisicamente no peito. É lá que, pelo menos, pelo mais, me dói. É lá o aperto de já não o ter perto. É lá o soluço da respiração, o descompasso do coração, as costelas, os pulmões, os nervos, tudo comprimido. Ele não deveria ter ido. Não. Mas foi, e dói, e dói mais, tão mais, quando nos morrem aqueles que julgamos imortais. Quando eu nasci, o mundo que me apresentaram tinha o meu avô. Era assim que o mundo era e era assim – quem me dera – que deveria continuar a ser. Os imortais não deveriam morrer. Entregava-lhe, de volta, a cor dos olhos que me deixou, o sacana daquele sorriso, tudo o que fosse preciso só para ter, de volta, o meu avô. Mas ele não volta. Baralhou as cartas, distribuiu as peças do dominó e deu-me um calduço à socapa só para brincar e dizer, sem dizer, que tinha sido a minha avó. Jogou comigo às damas no sofá. Entrelaçou os dedos das mãos e encostou-lhes a nuca, como se fossem almofada. Perguntou pelo Benfica. Agora, nada. As memórias são tão reais como a carne.

Ele foi, mas ficou. Existe, ainda, o meu avô.

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um “beijinho grande”

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Enfim, gente cobarde ali à roda com as palavras só para não dar um inteiro, simples, absoluto, puro, uno, claro, real, digno beijo.

Primeiro que tudo, beijinho grande não faz sentido. Ninguém dá uma coisa pequenina grande a ninguém. O diminutivo existe para transmitir um menor grau do seu significado original. O adjectivo grande existe para transmitir um maior grau do seu significado original. Ora, se beijinho existe para transmitir um menor grau de beijo e grande existe para transmitir um maior grau de beijinho, então, um beijinho grande é um beijo.

Não me venham é com paninhos quentes de beijinhos grandes, que isso é fugir com a boca à seringa da palavra certa, é ir dar a volta ao bilharzinho grande só para não dizer o que se deveria dizer. E não há cobardia alguma quando se diz o que se é. Por muito que aleije, se for para beijar, que se beije.

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osso

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Há um paralelismo curioso entre a relação do ser humano com o outro e a relação do ser humano com ele próprio. Uma espécie de básico, de osso.

Na relação com o outro, o ser humano está a simplificar o mundo. Está a voltar ao piso 0 da evolução, com a intolerância, a segregação e o conflito. Há bons e maus. Na origem, talvez o medo de morrer.

Na relação com ele próprio, o ser humano está a querer procurar o simples, o mais elementar da sua natureza. Está a aprender a respirar, a conhecer o corpo, a sentir, a olhar para si, a regressar ao seu próprio embrião. Na origem, talvez o medo de não estar a viver.

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domingo

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O domingo é a permanente ausência do dia, a memória viva do ontem e a antecipação sofrida do amanhã, a noite que não é, o intervalo da vida, o fosso entre a ilusão e a realidade, o limbo dos corpos, o sofá das almas, o ir não ir e ficar, o ser não sendo a dormitar, o ronronar dos gatos, a ressaca dos sentidos e o snooze de os sentir, a chuva nos vidros da janela da sala, o falar e ouvir e tocar e cheirar e provar tudo a preto e branco, a televisão a médio-som, a solidão a média-luz, o passeio dos tristes, o sal da melancolia, a câmara lenta da ronha.

O domingo é de quem sonha a permanente ausência do dia.

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rami rhapsody

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Um filme fraco, uma interpretação brilhante. Um filme que não valeria 5 minutos se não houvesse Rami Malek. Uma interpretação digna de Óscar para um filme digno de pouquíssima coisa.

É impossível (voltar a) ser Freddie Mercury, mas Malek assusta na forma como está tão perto de negar essa impossibilidade. O jeito de andar, de cantar, de mexer, de olhar, de quase tudo roça a perfeição. A história é conhecida, talvez por isso não haja qualquer surpresa ou perturbação que me tenha feito aplaudir o filme.

Tudo acontece a correr e quase nada é aprofundado como deveria ter sido. É um filme sobre a vida de uma lenda, não há tempo para mostrar as entranhas da vida dessa lenda, eu sei, mas deveria haver. E, devendo, não deveria ter havido filme. É um resumo de Wikipédia, vá. Mas o Malek, caraças, quase me fez acreditar no renascimento do Freddie.

Bohemian Rhapsody não é um filme. Rami Malek é o filme. E nada mais interessa, pelo menos, para mim.

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#adormir

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O Bolsonaro percebe a Democracia muito melhor do que qualquer adversário. Também o Trump. Também o Putin. Também o Hitler. E fizeram-na funcionar (em seu favor, claro, mas em Democracia). Nós não percebemos. E achamos que ela funciona sozinha e sempre em nosso favor. Errado.

Estamos a dormir o tempo inteiro, fazemos nada durante o sono e, quando acordamos a suar com discursos de ódio e sangue, insultamos o Bolsonaro, o Trump, o Putin e o Hitler e o “povo estúpido” que vota neles. Ah, e criamos hashtags.

Não tentamos perceber a razão para a existência do Bolsonaro, do Trump, do Putin, do Hitler ou de qualquer outro fascista eleito em Democracia. Não tentamos perceber o voto do “povo estúpido”. Não tentamos, sequer, perceber a razão por que apelidamos quem vota neles de “povo estúpido”. Não tentamos perceber o nosso sono. Não tentamos perceber nada. Ainda bem que agora estamos acordados, para vermos a merda que temos feito #adormir.

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simone

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“Simone, o Musical” deveria ser apenas “Simone”. Tudo o resto é acessório, clichê e fraco.

Não é musical porque as músicas não foram músicas graças às palavras que não se ouviam e às guitarras, ao piano e à bateria que quase se faziam ouvir mais do que o ridículo que se ouvia. Não é peça de teatro porque o teatro que há não o chega a ser, por tão primário de guião, tão mau revisteiro de representação e tão incoerente de cenário. Nem sequer é Simone porque Simone não é aquilo rodeado por aquilo que estava em palco. “Simone, o Musical” deveria ser apenas “Simone”. Só ela. Sem palavras vulgares, personagens vazias ou emoções mal amanhadas.

A única coisa que se aproxima do teatro em si é o que se diz antes de se pisar o palco e que, neste caso, reflecte, na perfeição, o que mais há neste “musical”: muita merda.

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as árvores morrem de pé

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Vi o Ruy de Carvalho e a Manuela Maria. Vi o Carlos Paulo. Vi a Patrícia Resende. Vi todos eles e vi todos os que cada um deles é.

Devia haver cada um deles em cada um de nós. Devia haver teatro em cada teatro que cada um de nós é. Devia haver um teatro de família, a que fôssemos chamados regularmente para ver do nosso estado de saúde. Devia haver um INEM do teatro para quem se sentisse doente. Devia rezar-se ao teatro de cada vez que cada um de nós morresse. Devia tocar para dentro todas as manhãs para dizermos bom dia aos actores e nos sentarmos no nosso lugar atentos à aula de vida. Devia haver um teatro de embalar para nos adormecer todas as noites. Devia ser obrigatório bebermos um litro e meio de teatro todos os dias. Devia haver um banco alimentar contra a fome de quem não vai ao teatro, para ajudar quem não o tem. Devia cair teatro em vez de chuva. Devia brilhar teatro em vez de sol. Devia substituir-se o bom dia, o boa tarde e o boa noite por teatro, teatro e teatro. Devia deitar-se abaixo as paredes do teatro para que o teatro fosse a rua inteira. Devia haver baloiços de teatro e escorregas de teatro para as crianças. Devia jogar-se ao teatro nas mesas dos reformados. Devia ser teatro a maternidade e ser teatro o cemitério. As casas deviam passar a chamar-se camarins e os jardins boca de cena. Tudo o resto seria tábuas e adereços. A noite podia ser a cortina vermelha. O dia seria o resto. O lugar de cada um seria o lugar onde cada um estivesse. A peça era a que cada um quisesse. Mas tudo seria teatro. E havia silêncio e caos e sonho e dor e vida e morte e foda e nojo e riso e mar e céu e terra e cama e amor.

E havia teatro.

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rip

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Não me lembro de alguma vez em algum lugar ter morrido um filho da puta. Quem morre é sempre um génio, um homem de grande valor, uma grande mulher, uma personalidade ímpar, um ser humano fantástico, um ser dotado de uma inteligência brilhante, um jurista de grande gabarito, um cidadão do mundo, um nome cimeiro da cultura, uma mulher de convicções, uma voz livre da sociedade, um grande mestre da arte, um exemplo de vida, um amigo de coração gigante, qualquer coisa maravilhosa cuja morte se lamenta profundamente. Deixará saudades. O mundo fica mais pobre. E com mais filhos da puta. Se essa é condição para aqui ficar, gostaria de ser um. Não me parece muito proveitoso ser um génio na inexistência.

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a minha geração

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Sou da geração dos 1.000 euros, mas nunca ganhei mais de 800. Nunca estive nos quadros, estive perto, mandaram-me embora. Três contratos de seis meses, o clássico, és essencial, já não és, obrigado e bom dia. Fiz dezenas de formações e uma série de estágios, nunca tive – nem agora tenho – nem nunca terei – experiência suficiente para receber o que mereço receber. Mas trabalho, trabalho muito bem, trabalho melhor, não me baldo com baixas nem me levanto baixando-me. Tenho projectos do caralho, mas claro que não ganho nada com isso porque não são gourmet. Como sou da escrita, qualquer um pode fazer o meu trabalho, claro que pode, qualquer um escreve, mal, mas pouco importa. A verdade é que também ninguém lê. Lendo, saberia escrever e saberia entender o que se escreve. Vou a palco, mas óbvio que nunca lucrei com isso. Há dinheiro para o IGAC, dinheiro para a SPA, dinheiro para o Teatro, dinheiro para o produtor, dinheiro para o promotor, dinheiro para o fotógrafo, dinheiro para o técnico de som, dinheiro para o técnico de luz, dinheiro justo para quase todos, mas dinheiro injusto para mim. E o dinheiro dos bilhetes, que é pouco para mim, é sempre muito para quem quer assistir ao pobre artista no palco. Não arranjas uns bilhetes? Não arranjas uns textos? São só uns lugares. São só umas palavras. E eu não sou só isto. Mas cá me arranjo.

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o meu gato

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Há dias em que me apetece atirá-lo pela janela. Eu moro no sétimo andar. Há dias em que me apetece atirar-me pela janela. Ele mora no sétimo andar, comigo.

O meu gato faz muita merda. Adora cabos, sofás e cortinados. Morde-me as pernas e arranha-me os braços. Adora os atacadores das minhas sapatilhas e qualquer pedaço de tecido das minhas meias. Gosta de testar a gravidade com os meus livros. Envergonha-me no veterinário. É esquisito com a areia e com a água. Está, neste preciso momento, em cima do teclaijwodhreerioeoiore doftgddddjbhfgggt computadkhfdijjjj. Não me deixa fazer a cama em condições e larga pêlo em sítios cuja existência eu desconhecia. Fez-me ser sócio premium de todas as lavandarias de Lisboa. Pôs-me a dormir na sala para arejar o quarto. Fez-me gastar salários para ele ficar bem depois de operações, vacinas e pequenos cristais que lhe doíam horrores. Nunca se queixou. Apercebi-me. Talvez ele me tenha dito. Não sei, tenho quase a certeza. Não falamos a mesma língua, mas comunicamos. Ele não percebe patavina do que lhe digo – falo mais com ele do que com gente -, mas ele percebe tudo o que sinto quando lhe digo. Eu não faço ideia o que ele quer dizer com aqueles olhares e miares e palmadas de patinhas, mas sei exactamente o que ele sente quando me diz.

Ele brinca comigo sempre que eu chego a casa. Ronrona encaixado na concha que faço com as mãos e encosta-se à parede a pedir números de circo. Encosto o braço à parede e ele salta. Faz outra vez. Outra vez. E outra vez. Eu escondo-me e ele procura-me. Vou à cozinha e, quando volto, tenho cinco quilos e tal a abalroarem-me as pernas. Recompõe-se, foge e esconde-se debaixo da cama. Com a cauda de fora. Eu finjo que não o vejo e chamo por ele – que ridículo, ele não percebe, mas percebe perfeitamente, e ele brinca e eu brinco também, e somos felizes assim, que ridículo, quero ser ridículo sendo feliz e ser ridículo fazendo-o feliz. Sempre que vou à casa de banho, ele vai também. Ora espera por mim, ora espero por ele. Sai a correr e eu levanto-lhe a voz para tapar o que fez. Ele volta atrás e tapa o que fez. Sempre. Deita-se ao meu lado, ao fundo da cama, e adormece agarrado à minha perna. Mexo a perna e ele morde-me os dedos com aqueles dentinhos afiados pelo diabo. Quero atirá-lo pela janela. Levanto a voz e pára. Lambe como que beijando. Encosta-se mais e adormece. Ressona e mexe-se muito. Acordo com a língua dele no meu nariz. Ronrona-me no peito e o meu peito ronrona também. Fica especado a ver-me tomar banho e mia desalmado sempre que abro uma lata de atum. Vai para a janela ver as pombas e as pessoas. Faz muito bem de bibelô em frente à televisão.

O meu gato passa muito tempo sozinho e eu sozinho sem ele. Isto da solidão com saudade é uma merda também, mas ele faz sempre questão de me dizer, não dizendo, que me ama sempre que me vê. Eu digo o mesmo e ele ouve, eu digo-lhe que já venho e que se porte bem e ele ouve sempre. E responde. Não faço ideia o quê, mas responde.

Ele não faz anos hoje nem há hoje dia do gato ou do animal. Também não morreu – o elogio não é obrigatório apenas quando se morre. Ele existe comigo e isso basta-me para que lhe escreva coisas que ele, não percebendo, ouve todos os dias. Continuo no sétimo andar. Ele faz-me continuar.

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antes o poço da morte

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Fora a crença, presente ou não. Sejamos a pessoa doente que está no poço da morte (sofrendo, sem cura). Não há volta a dar. A volta é só a que vai. Não volta. E essa volta custa-me a mim, pessoa que sou neste exercício da imaginação que não está livre de ser da realidade.

Custa-me a mim, dói-me a mim, e a única recompensa – que nunca irei sentir, é um facto – é a ausência dessa dor. E não sentir não será melhor do que sentir isto que não me deixa sentir outra coisa, nunca mais?

Quem está fora da cama, desse lado onde se discute a minha vida – que é, também, a minha morte -, quer ver-me a não morrer ou a não sofrer? A primeira afecta quem me vê, quem está fora da cama, quem, eventualmente, sofre pela minha morte, não eu. A segunda afecta-me a mim. E é aqui que está a discussão certa. Em mim, não em vocês.

Eu, que estou neste poço da morte (sofrendo, sem cura), tenho a vontade de não sofrer e a recompensa de não viver com ele. Se a morte é a solução, que seja e que seja a minha, e não a de quem não suporta a ideia a que vem amarrada a suposta culpa de me ver morrer.

Não há culpa, isso não é culpa, é egoísmo. A verdadeira morte é esta que me existe enquanto vou sofrendo sem qualquer possibilidade de não voltar a sofrer.

E não trago ninguém comigo, não se preocupem. Comigo, como eu vou, vai quem quer. Quem não quer vir, quem quer continuar a sofrer, pode ficar. Não é minha vontade decidir pelos outros. Não seja a vossa decidir por mim.

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quase normal

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Quase Normal é uma peça de teatro musical que não chega a ser quase peça de teatro nem quase musical.

Quase Normal é algo – não sei bem o quê – que faz com que olhemos para os actores como quase actores. Quase Normal fala de bipolaridade e de esquizofrenia, diz na apresentação. Na verdade – na sofrível e disparatada verdade da existência desta “peça” – Quase Normal pouco fala, muito canta, nada diz. Diz-se-lhes os nomes, chora-se muito, ri-se muito, há espalhafato e clichês que nem são nossos, mas tudo o que diz é verniz e ignorância num palco que deveria ser pisado para se fazer e mostrar arte. Nem chega a ser quase arte. É quase uma merda. Quase – nem ascende a tal.

Há presença ridícula em palco e vergonha alheia na plateia. As interpretações são assustadoras de tão vulgares e a adaptação do guião é angustiante de tão medíocre. Os momentos musicais deveriam ser condenados à cadeia – é crime tratar a música e a língua portuguesa desta forma.

Quase Normal está em cena, no Teatro da Trindade, a ocupar o espaço da arte. E a embaraçar o público que vai convencido de que, pelo menos, isto possa ser quase razoável. O problema é que nem chega a ser quase merda.

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é nome de rui patrício

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Choraste e eu, não chorando, chorei contigo. Não pelos golos que sofreste, que até aplaudi. Perdeste, queria que perdesses, é a rivalidade, desculpa, também é ela que nos faz andar nisto da bola e da vida. Só por isso.

Mas choraste e eu, não chorando, tendo até sorrido por cada golo que sofreste, chorei contigo. E nem sequer foram os golos que te fizeram sofrer dessa maneira. Que se fodam os golos, foram – das coisas mais importantes das menos importantes da vida – apenas golos.

Sofreste, e ainda sofres, por não haver o respeito das palavras, dos gestos, das atitudes e de tudo o mais daqueles a quem deste sempre mais. Não a todos, que a maioria está contigo e não te deixa chorar por ela, mas a de alguns que, cegos de raiva e de ingratidão, batem e cospem em quem lhes deu pontos e sonhos e voos e, acima de tudo, coração.

Os homens não choram e tu choraste. Já sabia que eras mais do que homem. Pisámos o pelado do Marrazes, vestimos de negro. Só isso seria suficiente para seres mais do que homem. Mas sempre continuaste aquele puto que não era um Maradona a lateral esquerdo, mas que era um Rui Patricio à baliza. E Rui Patrício não é nome de homem. É nome de Rui Patrício. É nome de capitão. É nome de líder. É nome de quem dá pontos e sonhos e voos e, acima de tudo, coração.

Choraste e eu, não chorando, chorei contigo. És mais do que meu amigo. Sempre que chorares, és meu irmão.

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bob dylan

Comentários fechados em bob dylan bloco de notas, música

Não foi desilusão porque a ilusão não havia. Bob Dylan foi Bob Dylan. Apagado, chocho, fechado, autista, antisocial, músico e merdas. Disse, apenas, as palavras das músicas. Nem mais ai nem menos ui. Não que devesse ter dito, feito ou sido. Foi um palco e uns instrumentos com voz. Não foi mais nada. Muito menos arte. Foi, até, o reforço da sua ausência. O cd tocava ao fundo, com um som digno de nada, e as pessoas bocejavam e adormeciam e acordavam e bocejavam e adormeciam e acordavam – e bem e bem e bem e bem e bem e bem – e aplaudiam, não pela música bem tocada, mas por a música ter chegado ao fim – e muito bem! Não foi desilusão, já estava à espera de que fosse uma merda.

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do caralho

Comentários fechados em do caralho bloco de notas

O Jonas é um jogador do caralho. O Samaris é um jogador da piça. E nem sequer estou a discutir futebol, estou a discutir palavras. Neste caso, caralho e piça. São sinónimas, referem-se ambas ao mesmo, mas dizem coisas completamente diferentes. Aliás, na verdade, nem se aproximam do que querem dizer. E isso é bonito. É uma espécie de emancipação linguística.

Há o pénis e, do pénis, nasce o caralho e a piça e, do caralho e da piça, nasce o magnífico e o medíocre. Nascem as palavras e nascemos nós. Do caralho.

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actores

Comentários fechados em actores bloco de notas, teatro

Eles são eles e outros e eles outra vez, nunca deixando de ser quem são: pessoas e actores. Nós somos constantemente nós e outros, pela repetida dúvida que nos inquieta o entendimento. Há teatro e não há, assumindo que é possível desligar o teatro da vida. Não é. Mas eles fazem-nos crer que sim. E depois que não. Dúvida, coisa maravilhosa nisto do teatro. Da vida.

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mundo distante

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“Mundo Distante” está tão perto que nos chega a incomodar. Esta peça, escrita pelo meu amigo Nuno Costa Santos e interpretada pelo Eduardo Frazão e pelo Manuel Coelho é, essencialmente, realidade. É quase afronta ao teatro, à representação, ao ensaio, à invenção. É realidade, ponto final. E a realidade tem silêncios e asneiras e palavras e coisas inteiras que se arrastam entre as pessoas, tem internet e desemprego e poesia e muito pouco aconchego. Teatro que é realidade que não é teatro. É o que é.

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