eram gentes escondidas
Duvido sempre de definições. Eu, que nunca soube quem era, mas que julgava ser alguém, dou por mim, agora, a ser ainda alguém, sendo outro que não o que julgava ser. Sempre me achei alguém com medo de gente, de praia e de solidão. Julgava ser assim. Parece que não. Hoje vim à praia conhecer gentes que ando a escrever de livre vontade, por trabalho e por amor. Não as conhecia, fui eu que as quis conhecer e escrever. Pisei a areia, fui ao mar. Sempre pensei que fossem duas coisas que eu iria sempre odiar. Parece que não. Senti-me bem sozinho, andando devagarinho, sem pingo de solidão. Enfrentei, como tenho tentado quase sem querer, alguns medos ou receios ou ilusões de tudo aquilo que eu julgava ser. Definições indefinidas do que eu achava de mim. Eram gentes escondidas. Parece que sim.
eu sei que é um gato
Os nomes dos animais só são nome de gente para a gente corajosa. Perder um Vitorino dói bem mais do que perder um Pantufas. Aconchegar um Vitorino ou um Pantufas, pelo contrário, aconchega-nos de igual modo. A coragem está no enfrentar da dor e não no enfrentar da alegria. Esta coragem de dar nome de gente a um animal nasce, no entanto, de uma cagufa da solidão. O meu gato, tendo o nome Vitorino, sendo um nome de gente, é um gato que transporta todo o peso, não sendo, de ser gente. Se fosse Pantufas, seria um gato, não poderia ser outra coisa, sendo Pantufas. Não é o problema de ser gente ou de ser gato, é a questão de ser gato sendo gente ou de ser gato sendo gato. E a verdade é que os gatos são gatos sendo gatos, sempre, apesar de todas os jeitos de gente que os donos dos Vitorinos lhes possam dar. Nós, eu, é que lhes atribuímos nomes de gente para alimentar a ilusão de que eles não miam mas falam, de que eles não nos adormecem em cima pelo calor mas pelo carinho, de que eles não são gatos mas são gente. E gente precisa de gente, ou de ilusão de gente, para se sentir parte. O meu Vitorino é um gato, eu sei que é um gato, mas é gente. E eu para aqui todo medricas cheio de coragem.
a margem do tempo
Uma peça de cinco minutos que demora sessenta. Uma pessoa em duas personagens. Uma velha, uma nova. Vivem pela casa e não se cruzam. A velha vê a nova, vendo a lembrança do que foi. A nova sente a velha, sentindo o que será. Não há palavras ditas e todas as que há estão nas que imaginamos pela tremenda seca que a peça causa em quem a vê e tenta compreender. A verdade é que a peça vê-se e compreende-se nos primeiros cinco minutos. Tudo o resto é desnecessário. Há música a acompanhar o desnecessário, música perfeitamente em linha com ele: inquieta ao início (primeiros dois minutos e meio), reveladora durante (segundos dois minutos e meio) e repetitiva no fim (últimos cinquenta e cinco minutos). Todos os (poucos) momentos que aproximam personagens e público são criados, apenas, pela música e pela luz. Sem música e sem luz, esta peça não seria teatro – o que significa que esta peça, se fosse apenas teatro, não seria teatro. É uma pena ver uma actriz como a Eunice fazer isto, mas também acaba por ser bonito – há uma espécie de beleza na decadência da peça que, por qualquer razão, vai bem com ela. A neta está lá e parece-me que o que faz faz bem. A peça, como está, não dá para mais. Talvez porque não seja uma peça, mas sim um exercício teatral que tem mais cinquenta e cinco minutos do que aqueles que deveria ter.
robocop vs. ansiedade
Estou aqui com uma dúvida. Quem acham que venceria esta luta: o Robocop ou a minha ansiedade? Por um lado, este meu estado é muito forte na previsão de qualquer golpe. Por outro, gasta muitas energias a combater inexistências. Já o Robocop é uma máquina de guerra e tem uma pontaria dos diabos. No entanto, é mais chapa do que carne. E segue um pensamento lógico. E é previsível. E não tem coração. Robocop. Sim, o Robocop. Ganha o Robocop.
contentamento e cagufa
Contentamento e cagufa. É o que sinto sempre que subo a palco para falar sobre mim ou sobre o que eu faço – nem sempre o que eu faço é sobre mim. Fico contente por me darem voz e por a quererem ouvir. Fico a tremer por me darem voz e por a quererem ouvir. Acho sempre, sem falsas modéstias e sem estar aqui a pedinchar elogio, que vou falhar perante os outros e que, sei lá eu porquê nem com que fundamento, irei ser desmascarado – afinal o gajo não sabe escrever, afinal é igual aos outros, afinal é só uma carinha laroca com uns lindos olhos azuis a temperar um incrível corpo escultural. Ontem, senti contentamento e cagufa. Por ter falado sobre mim e sobre o que eu fiz, o meu Lágrima, e por ter estado tanta gente de quem tanto gosto, da plateia ao palco, a ouvir-me e a querer saber de mim – e do que eu faço. Obrigado. Tremo, mas sorrio.
não sei do meu caderno
Não sei do meu caderno e não sei onde ele está. Sei que não saber onde ele está é a definição de não saber de, mas, ao dizer que não sei onde ele está, digo que sei que não está nesta realidade, está noutra, ele ainda agora estava aqui na mesa, junto ao portátil e agora não está, peguei nele, no caderno, e, de um momento para o outro, é sempre de um momento para o outro que as coisas acontecem, desapareceu. O meu escritório é pequeno e ele não saiu dele, do escritório, talvez tenha saído dele, do caderno, sendo agora outra coisa que não era, que era caderno. Mas aqui não está. Procuro em lugares onde não cabe o meu caderno, nem metade do meu caderno, nem metade de metade do meu caderno, vou com as mãos a sítios que já olhei por desconfiar de que não estou a ver bem. É muito aflitivo não saber como se traz uma coisa que foi para uma outra realidade por não se saber, lá está, como se vai para outra realidade, e essa coisa lá está, e eu aqui, sem saber dela. Repito movimentos de mãos e de pés, repito lugares, repito pensamentos e o caderno continua sem estar. Eu tenho a certeza de que ele não está, porque não o vejo. As coisas não estão se não as vemos, mas, se não estão, continuam a ser ou deixam, também, de ser por não as vermos? Se deixa de estar, pode não deixar de ser, mas, se deixa de ser, deixa de estar. Resta saber se continua a existir, ou sendo e estando ou estando e sendo ou não sendo e não estando. O meu objectivo já nem é encontrá-lo aqui, é ir ao outro lado buscá-lo. É essa a minha aflição, como é que eu vou lá? E vem outra, como é que eu o trago de lá? Como é que se abre a porta da realidade paralela? Será paralela? Se fosse, não tocaria nesta e não me levaria o caderno. Não, não é paralela. Como se vai? Como se entra? Há bilheteira? Onde é? Onde está? Se calhar não há e é tudo invenção minha. Vá, distracção de pessoa habituada a ser e a estar sozinha. Não sei de nada, não aponto nada. Só no caderno que não tenho. É nele que aponto o que fiz. Se eu não o encontro, não encontro o que fiz, se não encontro o que fiz, não fiz nada e não posso fazer nada porque o futuro passado do que faço deixa de existir. O que é que eu faço? Quem sou eu? O meu caderno?
não tenho de nada
não tenho de ir
posso ficar
que ao ficar
não deixo de existir
não tenho obrigação
da praia ou da esplanada
posso dizer que não
não tenho de nada
não há pessoa ou lugar
onde deveria estar
e não estou
o que me grita para sair
é o medo a rugir
a ansiedade a ladrar
por isso permaneço
não vou
que se for só pareço
quem não sou
na ilusão de pertença
Preciso de likes para continuar a viver na ilusão de pertença e de companhia que a constante aprovação externa me dá porque a interna é uma merda talvez nem exista por ser de um ser demasiado exigente que por medo de falhar aos outros mas essencialmente a si mesmo deposita toda a responsabilidade do seu bem-estar em duplos toquezinhos de dedinhos de seres aleatórios que muitos deles não conhece além do ecrã e que chama de amigos mas que não são mais do que seres aleatórios que fazem duplos toquezinhos com os dedinhos num ecrã numa foto de alguém que não conhecem ou que apenas conhecem da internet e que por isso não sabem quase ninguém sabe se a pessoa está feliz triste apática gorda ou com vontade de gritar e de fugir porque não sabe lidar com esta constante necessidade de se mostrar para existir sabendo no entanto que não é mostrando que existe mas que por vezes não resiste à tentação de uma enxurrada de likes para lhe matar a fome à ilusão. Obrigado.
aflito em permanência
tenho dias em que não estou
em que tudo o que sou
é ausência
fujo dos outros que me estão
corro para o meu chão
e nele habito
aflito
em permanência
e gostando odeio lá estar
odiando ando sem ar
e cavo fundo
a terra cai-me no ego
das lembranças que carrego
devagarinho
e eu sozinho
no mundo
não é a vida, nem é a morte
Sou eu e não sei quem sou. Apenas sei que não sou este que me mostro aos outros. Também não sei bem se sou este que me mostro a mim mesmo. Sei que sou qualquer coisa de intermédio ou qualquer coisa de absoluto que ainda não descobri. É difícil definir-me quando me sinto bem e mal de tanta forma diferente, como tanta gente. Por isso, a nossa dimensão é ser polivalente nisto das emoções.
Tanto jogo na baliza como no desespero – um homem normal, portanto, com carimbo no passaporte. Feliz e miserável como qualquer homem normal. Insignificante, também. E extraordinário. Tenho um esqueleto que sustenta aquilo que eu julgo ser o meu corpo. Nele, ajeita-se um fato e uma gravata do tempo da outra senhora – a que morava em minha casa mas que, por razões corriqueiras de um tiro nos cornos, deixou de morar (dão-nos tantas coisas, dão-nos beijos, dão-nos pão. dão-nos marujos de papelão, dão-nos balas). Bem amarrados aos ossinhos que compõem os pés, uns sapatos gastos pelas calçadas da existência. Cá em cima, um crânio com dois olhos azuis e um ou outro pensamento que espeta os cornos no destino – a grande maioria deles irrelevante e, até mesmo, ordinária. O meu nariz é grande e a minha boca é pequena. As minhas orelhas são duas orelhas, apenas, nem grandes nem pequenas, nem finas nem gordas, nem fascistas nem outra coisa qualquer. Sei lá o que dizer das minhas orelhas, não vejo grande interesse em fazer-lhes uma descrição. Nos ossos da mão esquerda, nada. Nos da mão direita, gente (dão-nos gente, mas não nos dão o animal).
Gente que há na minha vida e que, por isso, lhe pertence. Gente com quem me cruzo no café, na recepção do edifício onde faço terapia, no caminho para o lixo, em qualquer lugar por onde eu passe. Gente que vive nas entrelinhas da minha vida, nem a meio-campo nem a ponta-de-lança, gente que é falso 9 e baralha a linha defensiva do adversário. Eu sou o adversário, e esta gente, que me existe por acaso, é minha família.
Chama-se Álvaro e é barbeiro. Olhos claros, mãos antigas, um avião e um violino. Pouco cabelo e muita conversa. De dinheiros e de poleiros, de escolas e de vidas. Das muitas que me disse, só me contou a sua. “Dão-nos um nome e um jornal”, diz. Nasceu, cresceu e foi palhaço “do nosso corpo mais adiante, aquele que não se vê e chega longe, percebe?”. “Para organizar já o enterro, deixem-me pôr já o nariz vermelho”. Está bem, senhor Álvaro. Fez rir, andou em terras, aldeias, cidades, países, bem vestidinho, com embutidos de diamante. “Mas o riso é o choro com outra voz, sabe, e eles, que lá estão no camarote, dão-nos aplausos mas angústia, dão-nos um sonho, mas só um sonho, dão-nos um esquife feito de ferro”. Esmurrou o patrão, quis matá-lo, esteve preso. A forma da alma que o procura era ele próprio. Hoje, não procura ninguém. Deixa-se estar, quieto, baixinho, para que o corpo não pareça o que é de verdade. Fez-me a barba, e uma cabeça presa à cintura. À homem.
Dão-nos um cravo preso à cabeça, agora bem fresquinha pelo corte. Eu cortei caminho e cheguei mais cedo do que o previsto. E lá está ele. Eu não o vejo, ele não me vê. Não sei quem é, não sabe quem sou. Mas ele sabe que eu vou, que passo por ele sem parar, ao entrar e ao sair. Não faz, nem faria, sentido ficar. Ele está ali para ver passar, e eu nem chego a estar. Todas as quartas-feiras de todas as semanas, para pentearmos um macaco, dois minutos antes das sete, toco à campainha e passo. Digo-lhe boa tarde e espero pelo elevador. Dão-nos um pente e um espelho, e um pacote de tabaco, e eu penteio-me, e eu fumo. Dão-nos a capa do evangelho, e eu leio. Ele responde de volta, como um eco de personagens de assombro, e espera por ninguém. Está ali, quieto, olhando, quieto, estando. Somos vazios despovoados, é o que é, que adormecemos no seu ombro. É sempre, todas as quartas-feiras de todas as semanas, a última, dois minutos antes das sete, e a primeira, oito minutos antes das oito, pessoa que me liga à realidade dos outros. No quarto piso, tenho terapia. Lá, a realidade é a minha, só a minha, escura, sombria e funda de mão dada com quem visita comigo esse meu lugar. Temos fantasmas tão educados… Subo ao rés-do-chão, vindo do quarto piso, e ele lá continua. Não sei quem ele é, não sabe quem eu sou. Mas ele está, sempre, faz parte do processo de entrada e de saída do Inferno (outra palavra para o medo). De passagem.
Culpa da vida, que me faz isto. O que é isto, sequer? Deixo-me de metafísicas e vou comer. Um bifana e meia-dose de vulgaridade, por favor. Está bem, pode ser sopa da pedra. Sento-me ao balcão, junto de peludos regos de camionistas e de exagerados tacões de putas, e contemplo. Não deveria contemplar, faz mal aos olhos e não nos soa na memória da nossa história sem enredo. Mas contemplo os sabores, os cheiros, as coisas e as realidades que roçam as vidas que ali existem na mesma medida que existe quem está ali. E há um que existe mais, parece-me. Não lhe conheço o nome. Pode ser João, Fernando ou Aladino. Pode ser qualquer coisa, que pouco me importa. Mas, podendo ser qualquer coisa, é um filósofo. Ele é Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche, Platão, Voltaire e Sartre. Ele serve bifanas e sopas da pedra como quem pensa na morte, serve camionistas e putas como quem olha longamente para o abismo. Não deveria contemplar. Volto à estrada, como eles e elas. Dão-nos um bolo que é a história, mas eu como a bifana, ainda. E vou, agora sim.
Encostadinho à direita, mãos nos bolsos e olhos no chão, como mandam as regras de quem sofre. Connosco, quando estamos sós. Os felizes vão na faixa da esquerda e os idiotas na do meio. Na verdade, os idiotas, para jamais nos parecermos, não vão na faixa do meio, estão na faixa do meio, moram na faixa do meio. Tenho a certeza. Têm lá casa, um T2 com garagem e arrecadação. E código postal próprio. Dormem lá, fazem o almoço, o jantar, estendem a roupa na marquise e passam pelas brasas, com as cabeleiras das avós, no sofá da sala. Penteiam-nos os crânios ermos e, ao fim-de-semana, fazem-se uns furos na parede do corredor para pendurar uns quadros e uns grelhados mistos para ver a bola. Pagam IMI e tudo, levado à cena num teatro. Tenho a certeza.
Tenho lá eu a certeza de alguma coisa. Dão-nos bilhetes para o céu e pouco mais. Estou para aqui a enganar-me para quê? Para tirarmos o retrato? Dão-nos um barco e um chapéu. Certeza? Só a de que duvido de tudo, sem pecado e sem inocência. Da roupa que visto de manhã à existência de deus, da mão que devo usar para abrir a porta ao pé que devo usar para enxotar o gato. Dão-nos um prémio de ser assim e eu tenho o prémio tatuado nos cavalos que me galopam o dia inteiro no peito, sim, o sempre, esse cabrão. Refugio-me no sono para dar corda à nossa ausência, mas gostava de me refugiar no vazio. Mas nem conheço o vazio. Dão-nos a honra de manequim, mas sem roupa. Sou sempre tudo em todo o lado e esse ser tudo em todo o lado faz com que eu não seja, faz com que eu apenas esteja. Não decido por dúvida e por medo de errar. Mas vou errando. Não por duvidar, mas por deixar que a dúvida seja a minha corrente. Eu não sou, vou sendo. Talvez.
A dona Fernanda é que deixou de ser. Foi embora, partiu. E, com ela, foram embora, partiram, pedaços da minha infância onde não vem a nossa idade. O bibe, a plasticina, o recreio, a dança, o colinho, a sestinha. Mais um relógio e um calendário. Não sei por que razão me lembrei dela, apenas lembrei, sem qualquer associação, pelo menos consciente, a um sítio, a um cheiro ou a um som. Lembrei, apenas. A dona Fernanda deu-me sorrisos, palmadas e corações. A dona Fernanda deu-me aconchego. Eu pouco lhe dei para o muito que dela recebi. Dei-lhe choros, birras e inquietações. Sem saber, dei-lhe outros tantos corações. Eu não sabia. Ela sabia. Ela sentia. Hoje, sinto eu. Muito. A dona Fernanda chamava-me “olhinho azul”. Eu chamava-a, simplesmente, dona Fernanda. Hoje, ela já não me chama. Hoje, eu ainda a chamo. Mas ela já não me ouve. A dona Fernanda foi embora. Partiu. Mas os corações ficam comigo. Em pedaços.
Fica a memória, que tem a forma de uma cidade. Valha-me isso, essa galdéria que tanto me anima como me cospe. É tramado ter memória. É tramado não ter memória. Dão-nos um mapa imaginário, e é tramado, pronto. Que pessimismo chato. Tenho de parar com isto. Já páro, só mais um bocadinho de memória. É que me parece que é ela que comanda a vida do senhor que me existe à frente todos os dias no mesmo lugar. Lembrei-me dele porque tropecei nele. Agora mesmo, não o vi. Logo ele, que está sempre cá. E digo que é a memória, e não o sonho – como diz o poema – porque acho que ele já não sonha. O sonho deve ter-lhe morrido no instante em que lhe morreu um camarada por estilhaços de uma granada no meio do mato. Angola ou Guiné, escuridão de certeza. Ainda hoje. A guerra, raízes, hastes e corola, ou qualquer outra coisa muito pior, fervilha-lhe nos gestos, corre-lhe no sangue que lhe corre pelo corpo inteiro, nas pernas que não falham um passo, nas mãos que não falham uma reza, na boca que não falha uma passa do charuto que chupa todos os dias sentado num pequeno muro de pedra. Tem o batalhão inteiro a caminhar com ele e o dever patriótico de cumprir a missão diária que lhe dá razão aos dias. Não sai da rotina, não muda o trajecto. Só quando chega a mãe, que lhe pede ajuda com os sacos das compras, é que ele despe a farda e sorri, cospe o charuto e fala, larga o tempo e ganha cor. Ela vai embora, ele volta. E volta às voltas que a memória lhe dá. Angola ou Guiné, mais um letreiro que promete. Escuridão de certeza. Amor de mãe.
Mãe. A minha mãe. É tão bonito dizer “a minha mãe”. É como dizer poesia em apenas três palavras. A minha mãe. Talvez “a minha mãe” seja a única poesia que há no mundo inteiro, a única poesia que realmente interessa dizer, a única poesia que deu origem a isto tudo que nos é e que nos tem. A minha mãe. Eu, que amo palavras mais do que amo a vida, trocaria todas elas para dizer, até à eternidade, “a minha mãe”. A minha mãe é berço e leito, a minha mãe é a minha noite onde me deito. A minha mãe é grito e carinho, a minha mãe é o meu próprio ninho. A minha mãe é luta e choro, a minha mãe é ouro. A minha mãe é Freud e Vitorino, a minha mãe é o seu destino. A minha mãe é terra e verdade, a minha mãe é a mãe da saudade. A minha mãe é beijo e abraço, a minha mãe é mãe de um palhaço. A minha mãe é come a sopa e cuidado com o frio, a minha mãe é tens mesmo o meu feitio. A minha mãe é mãe-galinha, a minha mãe é minha. A minha mãe é preocupação, a minha mãe é exagero do coração. A minha mãe é princípio, meio e fim, a minha mãe é igualzinha a mim. A minha mãe é riso e melancolia, a minha mãe dá-me cabo do juízo, e o que eu lhe dou é poesia. E uma alma para ir à escola.
Não dou mais porque não sei. Continuo o caminho na estrada fria, clarinho por fora, nublado por dentro. Como um palhaço ou uma flor. Extremamente feliz a quem olha, extremamente triste a quem olha um bocadinho mais. Sigo o caminho e só vejo gentes, sigo o caminho e só me vejo a mim, eu e eu. Estas gentes dão-nos um lírio e um canivete, e pouco mais. Estas gentes só existem em mim, em mais lado nenhum, iguais. Dizer-lhes adeus – tem de ser, está a ficar tarde – é dizer adeus a mim mesmo. E eu nunca fui bom a dizer adeus. Por não gostar ou por não ter jeito, não faço ideia. Por não assumir que há fim ou por não assumir que o fim nunca haverá, não sei. Mas digo adeus muitas vezes, por obrigação ou por vontade, tem dias. Hoje, é um dia. Cada adeus, bem ou mal dito, bem ou mal feito, é o princípio de uma outra coisa qualquer, de um poema.
o dia é da rua
o dia é da rua
da festa
da canção
a noite é da lua
do que resta
do coração
não quero voltar
não quero voltar
porque não posso
é a melhor forma
de não querer
seguir a norma
do não poder
até ao osso
gosto do sporting
Sou do Benfica. Gosto do Sporting. Quando era pequenino, gostava sem saber nem conhecer. Gostava porque via os meus tios a gostar, e gostava dos meus tios, e gostava do Sporting – como gosto ainda. E tinha uma bandeira que, por qualquer asneira minha, foi atirada para a fogueira como castigo. Fiquei triste e devo ter chorado – porque choro sempre que fico triste. Foi aqui, talvez, que me encontrei pela primeira vez com este sentimento de perda que ainda não fui capaz de perder – o verbo, sendo esta a cor, não poderia ser outro. Este ano, mudou, é outro, e ainda bem. Mas eu sou o mesmo. Sendo do Benfica, gostando do Sporting e gostando de ver os meus tios – e mãe e irmão e primos e amigos e tanta gente – a gostar também.
sabendo o que serei
não sei o que escrever
e não sabendo
sei mais do que o que escrevo
que escrevendo
vou tendo
uma forma de mostrar
que afinal sei
e que a arte de esconder
eu não a tenho
que escondendo
até a mostro a um estranho
que não sabe
sabendo
o que serei
os movimentos do ego
Fui ver. O Ruben toca, a Daniela canta e o Rodrigo estraga. O Ruben e a Daniela interpretam letras do Rodrigo. O Ruben e a Daniela são uma espécie de Chopin a musicar cocó. O Ruben e a Daniela são o Anthony Hopkins a recitar O Prédio do Vasco. O Ruben e a Daniela estão na sombra do Rodrigo. O Rodrigo é o sol que neles faz sombra e que nas palavras faz cancro. O Rodrigo não sabe estar em palco. Não sabe onde pôr as mãos nem o ego, então, mete-os em todo o lado. Nos bolsos, na cara, na postura e no desprezo com que interpreta, haha, “interpreta” aquilo que escreveu. Ele lê, ele canta – porquê?, ele faz movimentos com os braços imaginando ser Hamlet sendo João Baião. Ele é ridículo, não ao ponto de dar a volta e ser bom, como é o caso das coisas muito más, mas ao ponto de ser muito mau, não dando volta nenhuma porque não há volta a dar naquele vazio, como é caso das coisas que não chegam a ser coisa alguma. O amontoado de letras a que o Rodrigo chama de poesia é isso mesmo, um amontoado de letras a que o Rodrigo chama de poesia. Mais ninguém chama, só ele. E é só ele em palco. O Ruben e a Daniela lá estão e lá sorriem com a clara vergonha de quem chafurda em hemorróidas, e tentam ser Midas, mas não conseguem, coitados, não são mágicos e o Rodrigo não é poeta. Nem escritor. Nem actor. Nem intérprete. O Rodrigo queria ser tudo isso, é o que os movimentos do ego dizem a quem os vê, mas o Rodrigo não é. E ele não vê. Fala do amor, da depressão, da violência doméstica, dos maus-tratos aos animais, mas não fala de nada disso. Quando grunhe, vomita clichês linguísticos e conceptuais que envergonham, desculpem, eu falei em cocó?, cocó é génio! Agora é sobre amor entre duas pessoas, uau, incrível, Rodrigo, e, agora, o que é esse amor? Ele não sabe e, como não sabe, escreve e vai para palco “interpretar” e “cantar” – porquê? – o que escreveu. Falou dos seus livros, da sua exposição pública, das suas lutas e de tudo o que não interessa num espectáculo que não é sobre ele. Se fosse, seria perfeito. E o Ruben e a Daniela não estariam ali a fazer nada. Seria Rodrigo como ele foi e como ele gosta, não sendo, de ser: o país e o mundo.
nem corpo nem coração
nem corpo nem coração
nem foda nem paixão
nem sonho nem saudade
não
intimidade
é embalar a solidão
antes e depois do abandono
intimidade
se houver explicação
é qualquer coisa
como partilhar o sono
se não fico por ir
quero sair
não sei se quero
se saio
desespero
se não
fico por ir
ficando sem saber
saindo sem querer
sendo a suar
tendo a cansar
rindo a sofrer
indo a ficar
ficando a andar
sem me mexer
distância:mente jovem| diana
Carolina, Edgar, Beatriz, Joana, Matilde, José, Isa, Inês, Gabriela e, hoje, Diana. Ao longo de dez semanas, falei com estes dez jovens de Leiria sobre estes tempos difíceis que estamos a atravessar. Todos eles me falaram, aliás, nos falaram sobre o que pensam e, essencialmente, o que sentem. Hoje, Diana. Uma adolescente que sorri quando fala do que sente mais falta: dançar, estar com os amigos, ir à praia e, como todos nós, estar junto de quem tem perto.
Distância:mente jovem, um podcast sobre o que está confinado na mente dos jovens leirienses.
[autoria: André Pereira | música: Ruben David Marques | entidade promotora: Câmara Municipal de Leiria]
da ternura que não vejo
olhar
de desprezo
sou assim
não me olho
de outra forma
que não fim
à procura
da ternura
que não vejo
em mim
fotografia de um cravo
A liberdade custa-me um bocadinho, dá-me opção, deixa-me escolher, e eu fico sempre sozinho na inquietação de não saber o que fazer. Escolhendo, acabo, inevitavelmente, por excluir. E não ir. Mas parece que é esse caminho excluído que eu começo a caminhar. Não vou, mas é como se tivesse ido. É ele que fica a carburar cá dentro, perguntando porquê, pensa outra vez, olha para mim, sou o que és. É quase sempre assim. Olho a possibilidade de escolher como uma obrigatoriedade de deixar morrer. É mais isto, e não tanto a liberdade como definição. De qualquer jeito, não desisto. Mesmo custando, vou lutando, sou revolução.
distância:mente jovem| gabriela
Distância:mente jovem, um podcast sobre o que está confinado na mente dos jovens leirienses.
[autoria: André Pereira | música: Ruben David Marques | entidade promotora: Câmara Municipal de Leiria]
estar sem estar com ele
Hoje não estou. Sou o que sou nos outros dias. Mas não estou. Desde que o meu primo foi, neste dia, que eu não consigo estar sem estar com ele. Se ele não está, eu não estou. Se a minha madrinha, o meu tio e a minha prima estão não estando, eu estou com eles, assim, não estando também. Só com ele, nas lembranças, quando éramos – ainda somos – crianças.
deste nó que me é descalçar
Não sei se é falta de tempo se de vontade mas, sempre que me descalço, tenho pressa no momento. Não sou capaz de me parar, de me sentar, de me inclinar, de me desatar deste nó que me é descalçar. Piso os calcanhares, um por um, claro está – que a impossibilidade ainda não me é permitida, chuto o que calço à baliza invisível e deixo, descalço, o calçado ao deus dará. Ao ladooo! Ao voltar, é que é tramado. Os reencontros são sempre tristes, isso é sabido. Lá está eu e o calçado, cada um para seu lado com nós por desatar. O jogo regressa, jogo perdido. Tanta pressa, tanta pressa, mas tenho sempre de parar.
distância:mente jovem| inês
Distância:mente jovem, um podcast sobre o que está confinado na mente dos jovens leirienses.
[autoria: André Pereira | música: Ruben David Marques | entidade promotora: Câmara Municipal de Leiria]
penso que sou pouca coisa
Olho para dentro como se dentro fosse o único lugar. E dentro é como se fosse sempre o passado. Olhar para fora, para os outros, para o mundo, para o acaso, para o indefinido, é olhar para o futuro. E isso custa-me. Sinto que tenho mais atracção por dentro. Entro sempre neste processo quando são accionados gatilhos: a lembrança de qualquer lugar, a minha presença com alguém, a minha diferença (quase fraqueza) de, ao estar com os outros, não estar com ninguém. Isso faz-me sentir que estou em falha, que estou a perder tempo, que não vou encontrar, que o melhor é voltar. E, se o melhor é voltar, vamos arranjar o que está. Mas nunca há real vontade de voltar. Pelo menos, não por inteiro. É sempre a vontade de voltar a ter momentos, sentimentos que lá ficaram e que, por qualquer motivo, tenho medo de que se tenham perdido. O passado passou e parece que desapareceu. Se os sentimentos já não se sentem, é porque já não existem. Este processo de ruminação, de me olhar dentro em constante loop, faz-me reviver esses sentimentos, faz-me mantê-los vivos, como se eu quisesse, constantemente, confirmar a existência do que aconteceu e, talvez em última análise, confirmar a existência de mim mesmo, do que sou. Porque penso muitas vezes no que sou e, por vezes, penso que sou pouca coisa, que sou só presente e que tudo passa a correr, que não há espessura temporal, e que a vida é “só viver”. Tenho a necessidade de me sentir robusto, cheio, convicto do que sou e do que já conquistei na vida. Mas pareço-me sempre um conjunto de fragmentos dispersos à procura de uma cola qualquer que os junte. Estou sempre à procura no passado – que é, talvez, o sítio errado.
se não doer, minto
Voltei ao dentista, voltou a dor, voltei a pensar. Da próxima vez que lá for, gostaria de não estar. Estaria o corpo, estaria eu, mas não estaria a consciência de mim. Assim, sentado, lá estaria um não-eu anestesiado. Mas corpo inteiro, não parcial, que eu sinto sempre o que doeu e o que não doeu, falso ou verdadeiro, porém, sempre real. Dói mais o medo da dor do que a dor em si, e eu cedo ao que for sem saber de mim. Assim que sinto o que realmente é, há desilusão por não ter sentido o que previa e alívio por ter sentido tão aquém. Ainda bem, mas porquê a previsão? Não queria sentir constantemente este medo pela dor do dente que já nem sinto. Se doer, penso. Se não doer, minto.
distância:mente jovem| isa
Distância:mente jovem, um podcast sobre o que está confinado na mente dos jovens leirienses.
[autoria: André Pereira | música: Ruben David Marques | entidade promotora: Câmara Municipal de Leiria]
o amor que não sei escrever
Não sei escrever o amor de mãe. Nem tão pouco o de filho que a tem naquele lugar onde ninguém consegue entrar – não há realidade se ele não há. É onde estou desde que sou, lá. E, vá eu por onde for, não encontro nada tão meu como o amor que não sei escrever. Se vou, ele vem, e onde estou tenho sempre a minha mãe.
na morte é que não
Acreditamos na ressurreição, na morte é que não. Por isso é que acreditamos. Inventamos. Ressurreição é contradição, falsidade, ilusão, vontade de dar sentido à nossa aflição. A morte é fim e não suportamos que seja. Porque o fim aleija quem fica pela ausência de quem foi e pela iminência de ir também, de deixar de ser, e isso dói. Isso é morrer, e nós não suportamos deixar. Acreditamos que tudo vai continuar noutro lugar, que somos imortais pela suposta importância de sermos reais, de existirmos, de termos de ter alguma razão para aqui estar. Mais vale desistirmos, o que somos é ser e a razão é estar. Estamos errados. É por isso que acabamos, todos os anos, crucificados.
distância:mente jovem| josé
Distância:mente jovem, um podcast sobre o que está confinado na mente dos jovens leirienses.
[autoria: André Pereira | música: Ruben David Marques | entidade promotora: Câmara Municipal de Leiria]
pelo abismo da aflição
Fui ao dentista. Tive dores e pensei. Penso muito quando tenho dores. Tenho muitas dores quando penso. Estava eu vulnerável, com uma broca a perfurar-me um nervo qualquer do molar, quando pensei, doendo, no tão na moda “viver o agora”. Raramente vivemos “o agora”. Diria que sim. A sociedade corre e nós corremos com ela, como sem fim. Não aproveitamos o filme que estamos a ver, o sofá onde estamos sentados, o sol que nos aquece, pouca coisa, nada nos apetece. Estamos constantemente neste estado ansioso de futuro constante que não nos larga. Isso é verdade – eu estou sempre além longe do agora, mas também é mentira. Eu, com aquela broca a perfurar-me um nervo qualquer do molar, estava a viver o agora. Queria pensar no passado ou estar já a viver a chamada que iria receber mais tarde, mas não. Estava ali, naquele momento, inteiramente de corpo e pensamento, a sofrer. E isso fez-me pensar, doendo, que nós, de facto, vivemos o agora. Mas só se o agora for dor. Se não for, sendo prazer ou coisa indiferente, passamos à frente em busca de nova dor onde ancorar o pensamento. No passado ou no futuro, tanto faz, mas sempre em movimento. Há pessoas que não, certamente. Mas há pessoas que sim, como eu, que têm uma espécie de atracção pelo abismo da aflição. Uma atracção que não é voluntária – eu não quero viver a broca a perfurar-me um nervo qualquer do molar, mas que vem de mim. E não sei se o problema é ter inclinação para viver a dor ou não conseguir sequer viver o prazer – ou até mesmo a coisa indiferente. Mas, naquele momento, vivi sem querer o agora que ainda me demora no dente.
alerta giveaway de ilusão
Sou uma pessoa de manhãs. Acordar cedo é uma das bênçãos que deus nosso senhor me deu com a felicidade no rosto de um dia que está a começar e que me dá a linda luz da vida que se vive agora neste momento agora mesmo porque o passado já foi e o futuro não vem e sinto-me muito grata por ser assim e estar neste mundo que é este e por ter as minhas friends que são estas também lindonas como eu que me acompanham neste caminho que se faz caminhando com deus no comando e a deusa shiva da nutrição deitada em posição de pombo daltónico no meu chacra do meio sou dona do meu tempo e eu sou o meu mesmo próprio universo sou feliz e agora vou meditar e sorrir e espalhar alegria por toda a gente que não come carne de porco viva a beterraba e a soja. E tu, vais escolher a felicidade? Olha para dentro e sente tipo com o coração. Alerta giveaway de ilusão.
distância:mente jovem| matilde
Distância:mente jovem, um podcast sobre o que está confinado na mente dos jovens leirienses.
[autoria: André Pereira | música: Ruben David Marques | entidade promotora: Câmara Municipal de Leiria]
distância:mente jovem| joana
Distância:mente jovem, um podcast sobre o que está confinado na mente dos jovens leirienses.
[autoria: André Pereira | música: Ruben David Marques | entidade promotora: Câmara Municipal de Leiria]
somos o teria sido
Conheço quem já tenha desistido da vida. Quem já não se importe com nada. Quem já não saiba sequer quem é. Se soubesse, certamente se lembraria de que, quando era quem não é hoje, queria ser feliz. Não sabe, então não se lembra, então não é feliz. O sonho é uma daquelas merdas que vai e vem. Nesta gente, foi e não veio. E a vida é apanhada no meio desta desistência da essência humana, a felicidade. Um homem vai perdendo sonhos com a idade. Já não vai a tempo de vestir o fato de astronauta, de ter uma banda de rock nem de ser o camisola 10 do Benfica. Então, o sonho vai, e o que fica é esse vazio de frio no dia-a-dia de quem se limita a existir. A respirar. A ouvir. A falar. A não ir. A ficar. Conheço quem já tenha desistido da vida. O que é fodido. Somos o teria sido. Em despedida.
distância:mente jovem| beatriz
A Beatriz tem saudades dos avós. Enquanto não os pode abraçar, vai vivendo a luta que vai tendo para lutar. Tem 14 anos e está fechada em casa, onde não sente a liberdade que sentia e que teme perder de vez. Mas acredita que tudo vai passar – mesmo que, ao dizê-lo, lhe trema a voz. E, apesar de todo o cansaço, sente que está perto o abraço que vai dar aos avós.
Distância:mente jovem, um podcast sobre o que está confinado na mente dos jovens leirienses.
[autoria: André Pereira | música: Ruben David Marques | entidade promotora: Câmara Municipal de Leiria]
distância:mente jovem| edgar
Edgar. 15 anos, leiriense, está no 9º ano… e em casa, e no parque, e na rua, e em qualquer outro lugar que não lhe permita ficar “paranóico”. Uma conversa à distância, mas muito perto de uma realidade comum a tantos jovens.
Distância:mente jovem, um podcast sobre o que está confinado na mente dos jovens leirienses.
[autoria: André Pereira | música: Ruben David Marques | entidade promotora: Câmara Municipal de Leiria]
nem sempre somos nós
É normal não te sentires normal. Não há preocupação. As coisas são como são e tu és tão normal como toda a gente. Não igual, diferente. Mas que sente tal e qual como quem está ao lado, também confinado. É normal esses cavalos no peito ao acordar que, durante o dia, te andam a cavalgar e que, de noite, não adormecem, parece que sim, desaparecem, mas aparecem por fim sem que ele seja. O cavalgar aleija. Mói o peito e o efeito é despertar pensar pensar pensar pensar pensar. Dói. Não devia. É normal. Deve porque é o dia que se vai repetindo e a angústia que se vai engolindo encobrindo com vinho e televisão. A nós é que nos falta carinho, compreensão. É normal, o mundo está fodido. É normal o comprimido, é normal o não teres dormido a noite inteira por medo sabes lá de quê, nem sabes se é verdadeira a emoção de quem te vê. É normal quereres chorar. Desaparecer. Gritar com os pais, com os irmãos, com os vizinhos. Estamos onde não deveríamos viver, e parece que estamos sozinhos. É normal, não havendo normalidade, sentirmos que o passado é que era o lugar certo e que o futuro nunca esteve tão longe, mesmo estando tão perto. Essa vontade de tocar comer beijar foder parece doença e há quem se convença, e com a sua razão – cada um tem a sua, que tudo se leva com meditação. E quem não consegue? Vai para a rua? Quem não tenta – está no direito de não tentar, quem não quer, quem tem medo de falhar? Quem não, o que faz? Não há só uma solução. É normal dizer que não, não sou capaz. E sinto angústia e raiva e medo e minto nas redes sociais porque lá somos todos felizes todos iguais, criando raízes de seres “normais”. Não é essa a normalidade. Horror, saudade, vontade de amor. É normal tudo o que for. E não estamos sós. Somos humanos, falhas, inquietações e as multidões nem sempre somos nós.
distância:mente jovem| carolina
Carolina. 18 anos, leiriense, está no 12º ano. Tem a vida toda à sua frente e um bocadinho de medo à sua volta. Anda às voltas no quarto, mas é na cabeça que passa a maior parte do tempo. No entanto, aceitou sair de lá – do quarto – para conversar comigo e contar-me um bocadinho o que pensa e o que sente.
Distância:mente jovem, um podcast sobre o que está confinado na mente dos jovens leirienses.
[autoria: André Pereira | música: Ruben David Marques | entidade promotora: Câmara Municipal de Leiria]
escrever
é difícil escrever
sei o que quero
dizer
mas desespero
por não saber
transmitir
o que dentro tenho
a ganir
como se eu fosse um estranho
onde me entranho
e de onde me custa sair
na verdade é isso que me assusta
ter tanta vontade de entrar
entranhando
que eventualmente
entrando
acabarei por ficar
sem saber distinguir
o que estou a pensar
do que estou a sentir
por enquanto
apesar de tanto
ainda consigo
e se calhar
este medo de não conseguir
transmitir
o que dentro tenho
a ganir
é só o medo a existir
se eu acabei de escrever
só não sei se entrei
e se entrando fiquei
cá dentro a viver
um antónio é um tó
Quem se chama António, José, António José, José António, Rafael, Francisco ou outro nome do género, nunca deveria ter um nome invulgar junto deste. Um António é um Tó, um José é um Zé, um António José é um Tó Zé, um José António é um Zé Tó, um Rafael é um Rafa, um Francisco é um Chico e por aí fora. Um António Braz, por exemplo, deixa de ser Tó para ser Braz, desperdiçando um diminutivo simples, eficaz e fácil que os pais nos puseram a saltitar mesmo ali à frente da baliza. Um António Braz não pode ser Tó, porque seria ridículo ocultar o Braz. Mas também não fica bem ao Braz tirar valor ao tão simples, eficaz e fácil Tó. Em que ficamos? Pois. Estamos perante um problema grave e raramente – talvez nunca – discutido. Andamos para aí a debater o vírus, a ascensão da extrema-direita e a economia deixando temas tão importantes como este ao deus dará. Enfim.
vem o medo, está bem
Vem o medo, está bem, que venha, não há segredo nem emoção estranha e treme o corpo e o coração corre, é normal, está tudo bem, ninguém morre, o medo desperta e alerta, diz que vem perigo, mas diz comigo, não vem, acredita, deixa o medo existir, é a dúvida a fazer fita, não lhe digas para não vir, deixa-o estar para ele ver que não há nada a temer, está tudo bem, ele vem e vê que é só a vida a acontecer.
o livro dos filósofos mortos
“Filosofar é aprender a morrer”. Um livro sobre a maneira como alguns filósofos viram e viveram a morte. Tem Cícero, Camus, Nietzsche, Schopenhauer, Sartre, Simone de Beauvoir, Sócrates, Kant, Pascal, Marx, Kierkegaard e outros mortos. Depois de ter lido um livro sobre um gajo que não se considera humano e, por isso, deseja o suicídio, li agora este sobre a morte ela mesma. Estou a ir por uns ricos caminhos, estou.
O Livro dos Filósofos Mortos, de Simon Critchley.
é calando e proibindo
496.655 pessoas votaram no André Ventura. Se continuarmos a achar que este quase meio milhão de pessoas não existe, então é bem provável que, dentro de pouquíssimo tempo, sejamos governados por inexistências. É calando e proibindo que se destroem pessoas, mas não ideias. As ideias nascem no lamaçal da proibição e na clandestinidade da suposta inexistência. É lá que elas nascem, crescem e ganham massa muscular. Mas é cá, deste lado, que elas morrem – quando, à luz do dia e à vista de toda a gente, são confrontadas com outras ideias melhores. 496.655 pessoas, quase meio milhão de seres humanos, têm ideias com as quais eu não concordo, mas que merecem ser ouvidas e discutidas. E, só depois, e tendo em conta o seu óbvio vazio, serem facilmente destruídas.
vota ventura!
Vota Ventura, se o teu candidato for Ventura. Ou Tino, se for Tino. Ou Marcelo, Ana, Marisa, Mayan ou João. Ou em branco. Ou nulo. Ou não votes. Qualquer acção é uma acção da realidade. E a realidade não é o que nós achamos que ela é.
A realidade é linda, mas feia também, horrível, nojenta, com borbulhas, queimaduras e pus. A realidade tem gente fascista, comunista, do centro, inclinada para a direita, para a esquerda ou para lado nenhum. Tem gente estúpida, inteligente, ignorante, sonhadora e pragmática. Tem gente pobre, rica, com fome, cancro, casas na praia e vida na merda. Tem gente de cravo na lapela e gente que se está a cagar para a democracia. Toda esta gente é realidade. E é a realidade que é essencial conhecer, e é a realidade que não conhecemos. Nós não sabemos quem somos. Desconhecemos as ruas, as emoções e as ideias. E, desconhecendo, desvalorizamos. Mas as ruas, as emoções e as ideias têm gente dentro e, desvalorizando ruas, emoções e ideias, desvalorizamos gente. Surpresa! Há gente com outras ruas, emoções e ideias que não as nossas – por muito estúpidas que sejam, as da gente ou as nossas. E essa gente faz parte da realidade, e essa gente é realidade. E a realidade não se combate com proibições nem com discursos ocos de lábios pintados. A realidade combate-se, não combatendo, começando com a vontade de a conhecer. Saber que há quem vote neste, naquela, em branco, nulo ou nem sequer vote, mas também perguntar, perceber, conhecer. Mas isso custa. Implica trabalho, dedicação, luta, paciência, tanta coisa que nos falta – e de que temos tanta urgência. Talvez daí a ilusão de não termos tempo. Queremos tudo agora, sem perguntas, só respostas, desde que as respostas sejam as que nós escrevemos no nosso caderno vazio de lixo. Surpresa! Nós também somos lixo.
O resultado de hoje não é a vitória de uns nem a derrota de outros. O resultado de hoje é sempre a derrota de todos e sempre a vitória da realidade – mesmo que ela não seja o que nós achamos que ela é. Bem, ela não é o que nós achamos que ela é. Mas talvez fosse boa ideia tentarmos olhá-la e percebê-la. Só assim percebemos o que somos. Só assim podemos ser o que quisermos.
fala, ó facho
Fala, ó facho! Não oiças os que te pedem para te calares. Fala, ó facho! Grita, berra, vocifera, clama. Mostra-te, deixa que te vejam. Diz, deixa que te oiçam. Além de ser justo, é bem mais fácil identificar um idiota se soubermos onde ele está e o que ele diz. Se o obrigarmos ao silêncio, não só fica difícil de o identificar como também fica difícil de combater o que ele (não) diz. Mandar calar é impedir de ouvir. E, por muita sujidade que possa vir daquela boca, sei que é sujidade e sei que é daquela boca. Prefiro continuar a ouvir do que ser impedido de falar. Portanto, fala, ó facho! Preciso de ir tomar banho.
não-humano
“A minha vida tem sido vergonhosa. Não consigo sequer imaginar como deve ser viver como um ser humano”. São estas as primeiras palavras do primeiro livro que li este ano. Uma maravilha da literatura japonesa – na verdade, não conheço mais, mas esta, que conheço, é um mimo. E é triste, como qualquer maravilha que se preze.
Não-Humano, de Osamu Dazai.
autobiografia
Sempre me foi difícil dizer quem sou. Não por vergonha ou medo. Por ignorância. Não sei, não é segredo. Nem tem importância.
tudo me é imortal
Foi-me um ano de mortes. Todas elas reais, mesmo as que não foram. Deixei de ter gente, lugares, até silêncios, mas não perdi ninguém. As memórias, todas elas boas, mesmo as que não são, fazem viver em mim tudo o que me morreu. Tudo me é imortal, menos eu. Tenho o infinito no meu pequenino lugar de dentro onde nem eu caibo. E ter o que não acaba, sem espaço para o ter, aperta, esmaga e faz doer. Nunca me doeu tanto. Bati todos os recordes de idas ao psicólogo, ao psiquiatra e ao chão. Quis fugir, encharcar-me em comprimidos para me adormecer, mas fiquei e os comprimidos lá foram deixando de ser. Refugiei-me em amigos, em família e em palavras. Menos em mim. Tinha medo, ainda tenho. Mas, talvez pela necessidade causada pelo fim, tentei deixar de me ser um estranho, e entrei. É lá, aqui, que me tem custado estar. Por encontrar o que escondo, ou tento esconder, por dar de caras com o que sou e não queria ser. Mas também tenho encontrado coisas bonitas, acho eu. Também acho que as tenho, que as sou. Mas eu, por crença ou ilusão, teimo em não acreditar que elas existem, que elas são. Mas vou escavando, e percebendo que, mergulhando neste ser, é a forma mais verdadeira de me ir sendo e de aceitar o que encontro, o que sinto, o que sou. Dar-me a mão, pegar-me ao colo, dizer-me que está tudo bem assim, que nem sempre sou não, e que o consolo pode, e deve, vir de mim. Tenho tido, também, muita sorte na gente que eu vou tendo comigo. Não foi apenas a morte, e ainda bem, o ingrediente do que digo. Conheci gente que me levantou, me abraçou e me foi levando pelo abominável desconhecido da vida. E o escuro clareou um bocadinho. Que bonito, o acaso também ajuda quem se julga sozinho. E, apesar de todas as escuridões, lá fui conseguindo iluminar alguns corações. Falta o meu. É só arranjar um jeito de não me olhar como se estivesse sempre a cair. Ou a sufocar com a imortalidade de quem me tem morrido. Sim, é o segredo, não viver o teria sido. Mas eu tenho medo e o medo está comigo. E não basta querer que ele vá embora. Sim, tenho de viver o agora. Não consigo, por enquanto. Preciso ser meu amigo, gostar de estar comigo, ser o André. Mas tudo o resto é tanto, mesmo o que não é.
quem está sempre
Nestes dois dias, só família, somos mais de cem. Ontem e hoje, só família, somos quatro. Mas não falta quem não está. Falta quem está sempre. O meu primo Henrique, o meu avô Zé Pereira, a minha avó Maria José, o meu avô Álvaro, a minha avó Maria Augusta, o meu tio António, a minha tia Nhanha, a minha tia Carminda, o meu cão Freud. Estar, lembrando, é uma forma de ter. Estar, não estando, é uma de viver.