ter dito companheira
Deixei cair o meu olhar no teu vestido
e senti o cheiro do teu cabelo,
fui a sítios aonde nunca tinha ido
e toquei o teu corpo só de vê-lo.
Descobri que eras feita de incertezas,
todas elas mais confusas do que a vida.
Dissolvi o meu corpo de impurezas
e desejei que fosse minha a despedida.
Mas, por obra do destino, tu voltaste
daquele sítio para onde tinhas ido
e, ao voltares, voltou tudo o que levaste
e eu voltei a despir o teu vestido.
a dor de quem tem
A dor de quem tem o nosso coração
dói mais do que a dor que inventamos
para sofrer.
Pode doer-nos o corpo,
da cabeça aos pés,
da pele aos ossos,
pode até doer-nos a dor de um amor falhado,
não amado,
fracassado,
esfarrapado
ou a dor de um ser perdido,
perdido,
perdido,
simplesmente, perdido,
pode, dói,
claro que dói,
muito,
mas esse muito é demasiado pouco
para o tamanho da dor
de quem tem o nosso coração.
E esse alguém não somos nós, claro que não,
o nosso coração
nunca é apenas nosso
e, quando é
(nas poucas vezes em que é),
dói e deixa de doer
ou dói e deixa-se morrer.
Mas, quando o nosso coração
está em quem sofre sem invenções,
que é sem saber, sem querer ou não querer,
sem pensar, sem estar, sem ter,
tendo mais de muitos corações em apenas um,
que é o nosso,
quando isso acontece,
a dor é-nos mais forte,
mais amor,
mais corte,
mais morte,
mais dor.
A dor é-nos mais dor.
E, quando quem a sente,
não a sabe dizer
nem escrever
nem ladrar
nem miar,
faz, do silêncio à deriva,
fraqueza,
motim,
solidão.
E nós, com esta dor em carne viva,
que é mais carne,
que é mais dor do que a tristeza,
que é mais viva,
que é mais vaga em incerteza,
sofremos desta forma estando assim,
não sabendo se é a norma ao ver o fim
em quem tem o nosso fraco
coração.
fosse a vida
Fosse a vida outra coisa que não isto.
Amor, silêncio, cor, canção…
Ou fosse nuvens. Simplesmente, nuvens.
Ou céu, se desse ser.
Nuvens brancas em forma de algodão
doce como o cheiro do prazer
de não ter consciência de saber
que isto não é tudo o que a vida é.
Isto – o que não é, o que deveria ser –
é pequena parte que nos parte daqui,
do coração,
brincando à sorte.
Mas a beleza que só nele existe
é como a estúpida ilusão que não desiste.
Fosse a vida outra coisa menos triste.
Fosse a vida outra coisa que não morte.
a minha febre
Quem me dera ser ignorante,
passar pela vida contente.
O pouco que sabe é bastante
e o nada que é não o sente.
Quem me dera perder o que tenho,
ter só o que posso tocar,
ser parte do fútil rebanho,
que parte o que tem a pastar.
Quem me dera ser tão comum,
tão nulo do meu coração,
trocar os meus sonhos por um:
sonhar que só tenho razão.
Quem me dera saber ser feliz,
sem medo, sem mágoa escondida,
ser fruto da minha raiz,
ser morte desta minha vida.
Mas eu não sou verdadeiro,
tenho emoções nos meus ossos!
Quem me dera ser eu por inteiro
e não o que eu sou em destroços…
tão lindo
É tão lindo banalizar a morte com a criança afogada. Com o touro espetado. Com o cão degolado. Com o homem enforcado. Com a mulher apedrejada.
E depois disto? Depois desta banalização? Depois desta insana normalidade? Depois deste banho de sangue e de esqueletos e de entranhas servido em ouro aos nossos puros olhos de homens e de mulheres e de crianças? E depois disto? E depois desta morte?
Haverá morte, verdadeira morte, que nos mate verdadeiramente, espetando-nos com a essência da vida, com a sua rara e preciosa e sublime existência, antes de morrermos? Haverá, simplesmente, morte, depois disto? Depois desta morte? É tão feio isto da vida com a linda morte deitada na nossa cama.
não dizer
A solução é não dizer. Se um leão morre, não podemos dizer que é triste porque mais triste é a morte das criancinhas em África. Se um puto rouba velhinhas, não podemos dizer que é ladrão porque mais ladrão é aquele ministro que nos rouba os impostos. Se um homem viola crianças, não podemos dizer que é pedófilo porque mais pedófilo é aquele que só as viola se não estiver de batina branca a rezar o terço.
Foda-se. Se uma figura pública sorri para as câmaras e despreza as pessoas quando não há claquetes, não é hipócrita porque, mais hipócrita, é toda a gente que me diz para eu não dizer. A solução? Não, o problema.
o horror de adormecer
O horror de adormecer,
o zás do sono a cair
em chão de vidro, em som de corte.
Deixar, simplesmente, de ser,
sendo o mesmo, mas a dormir,
como se fosse um estágio
para a morte.
sem filtro
Fui ver a Ana Bola ao Teatro Villaret. Foi ontem e foi único. A minha admiração por ela vem de longe. Pela diferença, pela inteligência, pela ousadia. Pelo talento. Ontem, nada mudou. De longe se fez perto. E tudo se manteve. A diferença, a inteligência, a ousadia. O talento. Ontem, a Ana Bola sentiu e fez sentir. Fez das tábuas sentimento e das palavras sofrimento. Fez danças, piruetas, contou histórias, cantou letras. Fez ouvir a sua voz, que é a nossa, mas calada. Disse o que não dizemos nós, falou tudo, não calou nada. Foi ao estômago das emoções, fez das tripas corações e lançou-os pelo ar. Gritou homens e mulheres, pôs a vida em tupperwares e fez rir para não chorar. Fui ver a Ana Bola ao Villaret. Foi ontem e deveria ser para sempre.
guerra
José Manuel Castro Feliciano ou Zé Manel para os amigos ou Feliciano para os camaradas da caserna onde assentou praça e costados e balas e bofetadas naquela guerra antiga mas real que lhe matou amigos no corpo e amigos na cabeça, estes que morreram de cabeça foram os que morreram de verdade, morreram estando vivos, morreram para eles e morreram para os outros que os conheciam de outra forma que não desta que os faz estar enterrados nos lençóis, com tiques nas mãos e comprimidos na mesa-de-cabeceira e na goela, coitados, morreram e agora são outras pessoas, outros cidadãos, outros homens que não nasceram do útero da mulher mas sim do ventre de uma guerra antiga mas real, sacana da guerra, puta da guerra, guerra da guerra. Feliciano sobreviveu sem maleitas no corpo nem na cabeça. Eu não. Esta história é sobre mim.
Eu sou um tipo normal, chamam-me pelo nome e tenho para cima de muitos anos. Para dizer a verdade, nem eu sei a minha idade, a memória já não é a melhor e o cartão do cidadão já não o tenho, perdi-o quando andei à caça de leões ali no pátio da velha com o filho deficiente em casa, coitadinho do puto que não tem culpa nenhuma que deus lhe tenha dado mais baba do que aos outros, mas a vida é mesmo assim, e lá está a velha a tomar conta do puto que não é puto, porque já tem para cima de muitos anos, precisamente a minha idade, quem diria, digo eu que estava à caça de leões ali no pátio da velha quando perdi o cartão do cidadão e nunca mais o achei porque nunca mais o procurei, que se lixe o cartão, que se lixe o cidadão que o que interessa é a nota, que se lixe quem eu sou que o que interessa é a minha história.
Tudo começou em mil novecentos e troca o passo, estava eu todo contente a emborcar copos de água da torneira quando, por obra e graça do espírito santo, que é um santo sem corpo e só com espírito, como diz o próprio nome, vi a melhor moça do mundo, e eu digo moça e não digo gaja porque eu sou um gajo bem-educado, nossa senhora de Fátima, meu deus do céu, que moça linda e afinada, com tudo no sítio, tim tim por tim tim, nem mais um centímetro para baixo, para baixo, para baixo, ai para baixo, nem menos um centímetro para cima, para cima, para cima, ai para cima, que era mesmo para cima que eu estava a ir, não só na imaginação como também na, na, na, na, até fico gago só de pensar. Mas tenho de continuar que tenho uma história para contar.
Olhei para ela e imaginei todas as coisas possíveis e impossíveis que lhe poderia fazer, qualquer uma mais javarda do que a outra, mas em que havia eu de pensar? Sou um homem, os homens têm este tique de levar tudo para lá e é para lá que eu vou, deixo-me levar sem medos que a vida é para ser vivida e não podemos estar a pôr barreiras à nossa imaginação, já nos bastam aquelas que nos põem na comida e nos impostos, sacanas, que eu mato-os a todos, mas não posso. E fui. Fui, pronto, que posso eu dizer? Fui, ela levou-me pela mão sem sequer se mexer, estava quietinha, nem deu por mim, quase nunca ninguém dá, mas ela nem sequer tocou com os olhos no meu corpo, nem com os olhos nem com nada, mas pronto, e eu ali fiquei a imaginar tudo o que poderia fazer e refazer a uma gaja, perdão, a uma moça, que nem sequer tinha conhecimento da minha existência. Existência pobre, mas existência.
Estava eu nestes preparos mentais quando, de um momento para o outro, sem quê nem para quê, zás, a moça boa cai de boca no lancil do passeio. Pumba, escangalhou a fronha toda. Só me apeteceu chorar, mas como sou um homem de barba rija e testa grossa, não chorei. Fiquei ali especado, de olhos abertos e boca aberta. E ela deitada, de cara espalmada no alcatrão. Que desperdício. Mas estranhei. Isto de as moças caírem ao chão e não gritarem não é de moças, é de homens. Oh, caraças, queres ver que esta moça bem boa afinal é um homem? Cruzes credo, xô xô xô, brrr que me arrepiei todo, desde a ponta da espinha à ponta do sapatinho de verniz que muito estimava na altura e muito estimo ainda hoje, engraxadinho todos os sábados de manhã, sem falta, enquanto se grelha um peixinho-espada e a minha Amélia aspira a sala.
Na altura, já tinha Amélia, mas também tinha olhos, e foi por isso que vi a moça boa que, afinal, tudo levava a crer que fosse um homem. Cheguei-me ao pé dela, ou dele, e uma poça de vermelho começou a circundar-lhe a cabeça. Era sangue, pois claro que era sangue, estou bem fodido, agora a moça morreu-me aqui à minha frente, e só eu é que vi, parece que toda a gente desapareceu. E agora estou aqui sozinho, acorde menina, acorde, parece mesmo uma menina, com um corpinho tão bem feito e um rabinho tão empinado, nem sei como tive a coragem e a estupidez de pensar que esta delícia dos deuses tinha pila e maçã-de-Adão. Mas esta beleza não se mexia. Coitadinhos dos seios encostados ao chão, coitadinhas das pernas rijinhas todas amarfanhadas de arranhões. Não te apaixones agora, pá, que esta não é hora para um gajo se apaixonar, primeiro porque a moça está morta, e depois porque, se por alguma razão, não estiver, precisa de uma ambulância e não de um ramo de flores. Cedi à razão e gritei com todas as forças da minha goela. Veio a ambulância. Perguntaram-me o que se tinha passado, não soube responder e levaram-me com eles. Mais ninguém apareceu. No mundo, só morava eu, aquele docinho escangalhado e os dois toninhos da ambulância.
Fui com eles. O caminho era esguio e sinuoso. Batemos em pedras e caímos em buracos. Capotámos duas vezes e despistámo-nos seis. Quando chegámos ao destino, o Hospital Doutor de nome importante, a gaja já não era gaja e eu já não era eu. Só os toninhos da ambulância é que continuavam toninhos da ambulância, com as barrigas salientes e os bonés vermelhos estilo Robbialac. Eu era um mosquito e a moça era um mata-moscas. Zás. Matou-me e eu acordei de rajada. Sem ar, sem moça, sem ambulância, sem Amélia, sem nada. Foi tudo um sonho e eu não gosto de sonhos, cabrões dos sonhos, vêm mansinhos pela noite, escorregam-me pela nuca e enroscam-se bem cá dentro da mioleira, porra, que dor de cabeça. A culpa é do Feliciano, que tem amigos mortos da cabeça. Vou dançar.
Ilustração de João Pedro Coutinho
feios, porcos e maus
27 de um lado, 27 do outro. Pontapés, cotoveladas, murros e cabeçadas. Testosterona, ódio, sangue e uma bola. Caro leitor, apresentamos-lhe o Calcio Fiorentino.
Lembra-se da característica forma de jogar de indivíduos como Paulinho Santos, Jorge Costa, Fernando Couto, Luís Vidigal ou Carlos Mozer? Só de pensar, já fica com nódoas negras no cérebro, não é? Mas, caro leitor, temos a dizer-lhe o seguinte: ao lado dos praticantes do Calcio Fiorentino, os jogadores que mencionámos são umas verdadeiras florzinhas de estufa. Uns autênticos anjinhos. Uns mariquinhas pés-de-salsa. Mesmo! Ora seja muito bem-vindo ao Calcio Storico (Futebol Clássico) Fiorentino, um histórico e brutal desporto que existe há mais de quinhentos anos. O jogo é, aliás, um dos antecessores do futebol moderno, a razão pela qual ainda hoje o futebol em Itália se entende como calcio. Só depois é que a ideia viajou para Inglaterra e serviu de base ao futebol que hoje admiramos. Este evento tem lugar todos os anos, no dia 24 de Junho – dia de São João Baptista, o santo padroeiro da cidade de Florença – na Praça de Santa Cruz. Nestes dias, a praça apresenta-se toda coberta por areia, para não aleijar os 27 meninos que, representando cada equipa, praticam esta viríl modalidade.
O objectivo é transportar a bola de uma ponta à outra do campo e atirá-la para as redes da equipa adversária, que se prolongam pela linha de fundo delimitada pela própria arena. Até aqui, nada de muito estranho. Tudo parecido com o futebol. No entanto, há dois pontos a ter em conta: a bola tanto pode ser jogada com os pés como com as mãos (característica que aproxima esta modalidade do râguebi – e de alguns jogos do nosso campeonato) e as agressões (murros, pontapés, cotoveladas, cabeçadas e afins…) não só são aceites, como também incentivadas (particularmente pelos milhares de fãs que enchem as bancadas improvisadas da Praça). As duas únicas regras que devem ser tidas em conta são as seguintes: não se pode dar pontapés na cabeça do adversário e não se pode agredir (ou matar – sim, leu bem, matar!) alguém que esteja inconsciente. Se, pelo contrário, esse alguém recuperar os sentidos, aí sim, já pode levar porrada da boa que é para aprender a não participar em jogos destes. Deus abençoe quem criou esta regra que, diga-se de passagem, não existia quando esta modalidade foi criada.
O jogo não tem intervalos, time-outs nem substituições. Uma vez no campo, todos os jogadores são obrigados a lutar até terminar o jogo. Tendo em conta todas estas condições, não é de todo surpreendente que sejam necessários oito árbitros para acompanhar o jogo e os jogadores.
Esses grandes, musculados, violentos, mal-cheirosos e mauzões jogadores que arriscam as suas vidas nestes jogos são geralmente irmãos e primos de sangue e os adversários são, realmente, seus verdadeiros inimigos. Todos eles são oriundos dos quatro principais bairros da cidade: Santa Croce, na parte oriental, Santa Maria Novella, na zona mais ocidental, Santo Spirito, a sul do rio Arno, e San Giovanni, no centro histórico. Cada bairro tem a sua cor (Santa Croce: azul; Santa Maria Novella: vermelha; Santo Spirito: branca; San Giovanni: verde) e disputa cada jogo como se fosse o derradeiro combate pela sua vida e honra fiorentina. E estes tipos têm muita vida e muita honra para defender!
As origens
Estes encontros, que começaram a disputar-se com regularidade em meados do século XV, eram bastante apreciados pelos Medici, a família que governava a cidade. Esta família, dotada de uma riqueza bastante considerável, assistia a todos os jogos de uma das bancadas principais, onde convivia habitualmente com os mais ilustres aristocratas locais e com os emissários que chegavam de todos os cantos da Europa. Este era, sem sombra de dúvidas, um evento reservado para as elites. Consta que, entre os mais ilustres espectadores, estariam figuras como os artistas Leonardo da Vinci ou Miguel Ângelo. Mas não só. Entre os jogadores, há relatos que confirmam Nicolau Maquiavel e Clemente VII (que viria a ser Papa em 1523).
Os jogos eram inicialmente realizados no período do Carnaval e tinham lugar num campo rectangular de 100 por 48 metros, com uma bola de dimensões semelhantes às actuais. Só por volta de 1580 é que as regras foram oficializadas e o jogo aberto a todos: nobres e populares. Porém, com o passar dos anos, a tradição foi-se perdendo e, durante os século XVIII e XIX, o Calcio Fiorentino foi banido da cidade de Florença.
Mas não foi desta que esta modalidade/carnificina foi abolida de vez. Foi necessária a interferência do ditador italiano Benito Mussolini, ansioso por recuperar as tradições da era dourada italiana, e de um dos seus homens de confiança, Alessandro Pavolini, para que a bola (e o sangue) pudesse voltar a percorrer as pedras cinzentas e gastas da Praça de Santa Cruz. Este “renascimento” do Calcio deu-se em inícios da década de 30 do século XX e mantém-se até aos dias de hoje. Sem Mussolini, felizmente.
Ao contrário do que acontecia quando esta modalidade surgiu, hoje em dia, o Calcio Fiorentino não é exclusivo de uma determinada classe social, mas sim de pessoas de todas as esferas da sociedade. Todas elas são convidadas a assistir e a participar.
Dia de jogo em Florença
O dia da final do Calcio Fiorentino é um dia histórico para esta cidade italiana. As pessoas acordam bastante cedo e deslocam-se até à Praça de Santa Cruz, embelezada pelas bancadas de ferro e pelas coloridas bandeiras de cada equipa. Pelo caminho, é muito provável que estas pessoas se cruzem com as marchas populares que cada bairro promove para apoiar a sua equipa e chamar às armas os habitantes dos quatro bairros da cidade. Durante todo o mês de Junho, disputam-se os jogos preliminares entre as quatro equipas da cidade para determinar os dois finalistas. Depois das inúmeras polémicas nos últimos anos, a organização do Calcio Fiorentino obrigou as equipas a jogarem com atletas que vivessem há mais de um ano no respectivo bairro. Porquê? Ora bem, é simples: porque, nos últimos anos, a ânsia de vencer levou a que várias equipas contratassem lutadores de wrestling e de luta livre, falseando a sua morada para disputar os bárbaros e intensos encontros. E atenção que nós não estamos a exagerar. Estas disputas são autênticas guerras dignas dos tempos dos gladiadores romanos. E as consequências são brutais e arrebatadoras. Aliás, a violência e as lesões que resultaram das finais de 2010 e de 2011 atingiram um nível tal que se ponderou mesmo cancelar a edição deste ano. Contudo, essa medida não avançou e tudo correu pelo melhor. Com a edição de 2012 já terminada, não há nenhum caso (de maior) a realçar.
Mas voltemos ao embate. A hora do jogo aproxima-se a olhos vistos e as pessoas procuram o melhor lugar possível. Como é natural, essa é uma tarefa que não se adivinha nada fácil. Na Praça de Santa Cruz, cabem cerca de 10 mil pessoas sentadas e cinco mil em pé. Como todas as praças da cidade, esta não é muito grande e está cercada por edifícios históricos seculares. As equipas entram em campo após longas horas de espera sob um sol abrasador. Mal pisam a areia que cobre toda a praça, já se começa a sentir o cheiro a carne viva e a sangue derramado, o cheiro a barbárie prestes a ser vivida. Durante os próximos 50 minutos, Florença recuará 500 anos na sua história.
Defender para atacar
Bem ao estilo do actual futebol italiano, as equipas do Calcio Fiorentino estão muito mais preocupadas em defender do que em marcar golos. Portanto, se for de propósito a Florença para assistir a grandes jogadas carregadinhas de gestos técnicos e de golos de belo efeito, esqueça. Nem sequer vale a pena sair de casa. Este desporto não é para si. Aqui, nem o Messi nem o Ronaldo teriam hipótese. Quando muito, ainda poderia dar jeito um Bruno Alves ou um Pepe. Aqui, joga-se forte e feio, sem qualquer piedade. No final da partida, o bairro vencedor entra em êxtase e prolonga as suas festas pela noite dentro com fogos de artifício e um troféu para mostrar pelas ruas coloridas da cidade. Com a testosterona a atingir níveis elevadíssimos, também é natural haver escaramuças que resultam em várias costelas partidas e muitas nódoas negras.
TEXTO André Pereira
desculpa escrever-te tão tarde
A verdade é que, por muito que me dedicasse a juntar as palavras da forma mais cuidada possível, nunca consegui fazer com que elas transmitissem o que eu queria dizer. Hoje, porém, decidi arriscar.
Escrevo-te mesmo sabendo que a carta não te será entregue. Escrevo-te mesmo sabendo que não terei uma resposta tua. Escrevo-te mesmo sabendo que não me vais ler. Bem vistas as coisas, nenhuma dessas acções seria necessária. Esta carta, mesmo tendo o teu nome como destinatário, é muito mais dirigida a mim do que a ti.
Faz um ano que te conheço de uma maneira diferente. Mantenho comigo as nossas brincadeiras no chão em frente à lareira de tua casa, as nossas tardes de Verão a ver a Volta a Portugal em bicicleta, as nossas discussões enquanto jogávamos computador, as nossas cúmplices saídas à noite, as nossas cervejas não autorizadas, os nossos fins de tarde a ouvir rádio no teu quarto, as nossas zangas durante as férias, as nossas picardias à mesa de snooker, as nossas aventuras na serra do Caramulo, os nossos abraços no Estádio da Luz. Mantenho comigo todas estas memórias, mas desde aquele dia em que partiste, nasceram outras. Agora, por mais estranho que pareça, sinto-te mais perto.
Todos os dias brincamos, todos os dias discutimos, todos os dias ouvimos rádio e todos os dias falamos, mesmo sabendo que, tal como acontece nesta carta, nunca chegarei até ti, nunca me irás responder e nunca sequer me irás ouvir. Mas eu insisto e, sinceramente, devo dizer que me faz bem. Eu avisei que esta carta era muito mais dirigida a mim. E como eu gostaria que ela nunca tivesse sido escrita. Desculpa escrever-te tão tarde.
ela
Escrever sobre ela não é fácil. Nunca foi. Porém, não é por isso que o mundo não está carregadinho de cartas com ela nas palavras. E esta é apenas mais uma. Pequena, simples e a roçar o ridículo, não fosse esta uma carta de amor.
Devo admitir, desde já, que não sei nada sobre ela, mesmo tendo sido a primeira pessoa a quem destinei o meu olhar. Desde esse dia que a vejo, que a oiço e que a sinto. De várias maneiras, em vários lugares. Ela também me vê, me ouve e me sente. Ela, que nunca foi só uma e que nunca será muitas. Ela é mãe, ela é filha, ela é avó, ela é irmã, ela é namorada. Ela é mulher. Ela, que me aconchega e que me inquieta, que me aborrece e que me estimula, que me alegra e que me obriga a comer a sopa. É para ela que eu escrevo.
Ela gosta de cores garridas e do cinzento. É simples e acha-se feia ao acordar. Mas não é. Nem ao deitar. Nem durante o dia. Só às vezes. Um bocadinho, vá. E ainda bem. É isso que a torna interessante. Ela não vive num anúncio de lingerie, numa capa de revista nem num filme de Hollywood. Ela vive aqui. No seu mundo vulgar. Ela é ela, simplesmente. Bonita e feia, calma e agressiva, única e banal. Tem todas as inseguranças dignas da sua condição e todas as convicções dignas dela mesma.
Ela manda sem dar ordens. Ela infiltra-se no sangue e controla-nos o cérebro. E o coração. E aquilo. Controla-nos tudo, caraças. Crava-nos as unhas na pele, os dentes nos lábios e os olhos na alma. É implacável, obstinada e inflexível mas, mesmo assim, nada a impede de chorar a ver uma pirosice cinematográfica de domingo à tarde.
Ela é mãe, ela é filha, ela é avó, ela é irmã, ela é namorada. Ela é mulher. E escrever sobre ela não é fácil. Nunca foi.
wrestling à portuguesa
Quando nos disseram que podíamos ver wrestling em Portugal sem ser na TV nem quisemos acreditar. Ainda por cima, com lutadores nacionais. Decidimos tirar tudo a limpo e fomos até Loures.
Estacionamos o carro mesmo em frente ao recinto. É de noite e está um calor estranho, que é como quem diz, um frio dos diabos. Dirigimo-nos para o outro lado da estrada, onde se encontra a pessoa com quem combinámos fazer esta reportagem: Axel, promotor, comentador e ring announcer da World Stars of Wrestling (WSW). Sim, o nome pomposo corresponde a uma liga mundial de wrestling composta por vários lutadores provenientes de todos os cantos do planeta e que tem como principal objectivo a realização de vários eventos de wrestling em vários países. Esta liga teve a sua estreia a 28 de Setembro de 2008, em Grândola. Desta vez, não estamos na “vila morena”, mas na suburbana cidade de Loures. É aqui onde o recinto está armado, ou, para ser mais correcto, onde a tenda está montada. Isso mesmo. Uma tenda de circo, com o formato tradicional e as cores garridas a sublinharem a nossa afirmação, ergue-se num descampado junto ao Loures Shopping. A área é enorme e está vedada por cancelas e camiões. À entrada, Axel apresenta-nos dois homens. À excepção da cor dos blusões (um veste um blusão verde fluorescente e o outro, um azul-escuro) e da notória diferença de idades, os homens são iguais. Mãos nos bolsos, postura hirta, olhos atentos e cabelo preso num rabo de cavalo. A nossa observação não é de todo descabida, visto que são pai e filho. O primeiro é Maximo Luftman, 40 anos, nascido em Itália, como se deduz pelo nome Maximo (que, em Itália, é o equivalente, em abundância, a um José ou a um António), e com raízes austríacas (daí, o apelido Luftman). O filho, Danny, 17 anos, nasceu em Espanha, é introvertido e um dos principais responsáveis pelo bom funcionamento de toda esta máquina. Mas já lá vamos. Primeiro, falemos do pai. Maximo é um homem do circo, honrando as tradições da sua família no papel de palhaço – um dos mais queridos no meio. Porém, a sua vida não se cinge à arte circense. Ele já andou por todo o mundo, tendo montado o mais variado tipo de espectáculos, de exibições e corridas de motas a concertos musicais. Neste âmbito, recorda nomes como os The Scorpions ou os The Kelly Family, bandas que proporcionaram movimentos de massas absolutamente extraordinários. Envolvidos pelas histórias de Maximo, começamos a encontrar história naquela tenda, naqueles panos e em todas as 16 viaturas da Maximo Luftman Wrestling (a empresa por detrás disto) que estão dispersas pelo recinto. Todas possuem os mesmos desenhos, imaginados e pintados por Danny. As labaredas amarelas e vermelhas servem de fundo a vários lutadores de wrestling, entre os quais Batista, Rey Mysterio e Hulk Hogan. “O grande Hulk Hogan, o meu maior ídolo”, afirma Maximo. Mas não só o grafismo dos camiões é da responsabilidade de Danny. Depois de alguma conversa, lá descobrimos que ele é também o responsável por todo o jogo de luz e de som. Foram cinco anos dedicados a uma aprendizagem intensiva… E solitária. Danny é auto-didacta e todo o espectáculo visual que nos apresenta surgiu depois de muitas horas em frente ao computador a aprender todos os programas que lhe permitem, agora, trabalhar com estes sistemas de topo. Como pode calcular, tudo isto supõe um enorme investimento, cujo valor Maximo não nos revela. No entanto, adianta que, só na deslocação de Coina (margem sul) para Loures (cerca de 40 quilómetros), gastou-se mais de 700 euros em combustível. Puxadote…
Preparação
Entramos na tenda. No centro, está um ringue, elevado a cerca de um metro do chão. Em cada canto, almofadas dispostas na vertical e três listas de cordas esticadas a delimitar o espaço. À volta, uma bancada com capacidade para cerca de 150 pessoas e outras tantas cadeiras viradas para o ringue. No total, um espaço para 500 pessoas se sentarem. À entrada, Axel prepara uma banca com vários produtos, de posters a DVD e máscaras. Estes últimos são os mais procurados, em particular pelas crianças, as principais adeptas do espectáculo. Os lutadores começam a chegar, uns sozinhos, outros em grupo, mas todos de saco ao ombro. Deitam um breve olhar ao ringue e dirigem-se aos bastidores. Já lá vamos ter com eles. Agora, é altura de fazer os testes de som e de luz. Uma música, outra música, mais alto, mais baixo, um jogo de luzes, outro jogo de luzes, mais escuro, mais claro. Está afinado. Enquanto isto, Axel grava várias promoções para colocar na Internet (em Sapo.pt, um dos parceiros do WSW).
Nos bastidores
Vamos agora ter com os protagonistas do espectáculo. Os balneários são improvisados, e compostos somente por um pequeno espaço atrás da entrada principal para o ringue. Tiram as roupas dos sacos, começam a vestir as calças, as luvas, as máscaras e, assim que apertam as ligaduras, transformam-se em lutadores. O aquecimento começa: uns sozinhos, outros acompanhados, e é neste momento que tentamos meter conversa com alguns deles. Para começar, calhou-nos “em sorte” Salvador, um rapaz de 21 anos cujo ídolo é ele mesmo. Aliás, quando lhe perguntamos por que razão enveredou por esta modalidade, responde de imediato: “Vi wrestling na televisão, olhei para aqueles franganotes e pensei: Sou bem melhor que eles”. Quando as coisas já estavam a começar a azedar, eis que surge em nossa defesa Seth Rodriguez, um lutador que já conta com mais de 50 combates no corpo. Ainda sem encarnar a sua personagem, diz-nos que já praticou artes marciais e que está a estudar Desporto e a trabalhar num call center. O wrestling é, para si, apenas um passatempo. Por agora, não é preciso atender nenhuma chamada, no entanto, o melhor é estar atento à campainha e ir para o ringue. A honra inicial cabe a Bammer, campeão europeu em título e o mais experiente de todo este leque de lutadores. Bammer – ou, fora do ringue, Bruno Brito – tem 28 anos, começou nisto do wrestling há dez, na escola Tarzan Taborda (o maior ícone da modalidade), passou por Inglaterra e pelo Canadá e, quando regressou a Portugal, em 2007, decidiu abrir a Academia Wrestling Portugal que ensina dezenas de rapazes e raparigas a serem verdadeiros wrestlers. Aliás, a esmagadora maioria destes lutadores estão ligados à sua academia. Mas vamos lá ao combate, que a sineta já tocou.
Combate
O espectáculo tem início e os desaguisados entre os lutadores são o ponto de partida para o que aí vem. De um lado, os “bons”, aqueles que o público (que pagou cerca de cinco euros para aqui estar) aplaude; do outro lado, os “maus”, que recebem todo o tipo de críticas por parte dos mais novos. Os combates sucedem-se e, por entre excepcionais golpes atléticos e uma ou outra provocação ao público presente, os lutadores vão caindo ao tapete. Seth Rodriguez, efusivamente aplaudido pelo público, levou a melhor sobre o convencido e voador Cougar.
O mesmo não pode dizer Ricky, que perdeu com Juan Casanova, numa arbitragem nada imparcial de Pégaso (árbitro convidado): “A organização da WSW achou bem tornar-me o árbitro especial convidado depois de terem visto o quão justo e pio sou. O combate é entre dois grandes atletas: um que é o meu grande amigo vindo de Espanha, o espectacular Juan Casanova, e outro que é um campónio como vocês, Ricky”. Tresanda a imparcialidade, não acha? O combate seguinte envolveu o nosso já conhecido Salvador e o estreante El Rayo Azul. A vitória caiu para o lado do primeiro, o que causou grande revolta no público. Os combates são intervalados por Axel, que faz um breve comentário ao que acabou de acontecer e que projecta os próximos cinco a dez minutos de lambada. Os que se seguiram foram de particular interesse. Como isto não é exclusivo dos homens, seguiu-se um combate entre duas meninas: Alice the Malice e Kelly subiram ao ringue e, para alegria da criançada (e, particularmente, dos pais – os homens, entenda-se), agarraram–se, puxaram cabelos, atiraram-se uma para cima da outra, rebolaram, gritaram, gemeram, abraçaram-se… (OK, é certo que estamos a escrever na Penthouse, mas vamos ficar por aqui). Resumindo e concluindo, foi um espectáculo digno de se ver, com a vitória a sorrir a Alice the Malice, a “má” ou, como o público carinhosamente a chamava, a “Popota”. Para terminar a noite em grande, o espanhol Leo Cristiani desafiou Bammer para o título europeu da WSW. O combate foi um dos mais espectaculares da noite, com piruetas, mortais e cambalhotas, mas não alterou em nada o seu curso natural, terminando com a vitória do português.
Final
Ouve-se a contagem final. Um! O árbitro está deitado no chão a olhar para nós. Os lutadores descem do ringue e vão até aos balneários para descansarem. Dois! a segunda vez que o árbitro leva a mão ao tapete. Minutos depois, os lutadores juntam-se ao público para distribuir alguns autógrafos. As crianças saltam das cadeiras e cumprimentam os ídolos. Compram máscaras e posters. A música continua. Três! O árbitro bate com a mão no chão pela terceira vez. Fim do artigo. Estamos eliminados. Vitória claríssima do leitor, que acabou o texto sem nunca ter ido ao tapete e sem levar um único sopapo nos queixos.
diazinho oficialzinho
Hoje é o diazinho oficialzinho dos namoradinhos. Juntam-se todinhos, trocam mensagenzinhas a dizer que se amam muitinho e que querem ficar juntinhos para todo o semprinho. Está escrito nas entrelinhas de todas estas lamechices. Hoje é o dia dos inhos e das inhas. Beijinho para aqui, queridinha para ali.
Eu até gosto destas confissões de amor terminadas com mil asteriscos no final das mensagens, mas tem de ser todos os dias. Sim, tem de ser porque o amor (ou o amorzinho para os adeptos ferrenhos deste dia) não é feito apenas de 24 horas a meio do mês de Fevereiro. O amor, se é que existe, não é mais que olheiras de sono e de choro, copos vazios, camas desfeitas e dores de barriga. O amor não é feito num dia cujo santo padroeiro é um Valentim. Se fosse mesmo amor, o santo deveria chamar-se Valente. Deveria ser o dia de São Valente, e não São Valentim.
A partir do momento em que se tem contacto com o amor, a pessoa fica completamente desprotegida para o resto da vida. Qualquer olhar mais demorado numa mesa de café ou um sorriso mais provocador numa loja de roupa atira-nos imediatamente para o chão, sem qualquer cadeira onde nos possamos sentar e, pior que isso, nus, à vista descartada de qualquer transeunte desgovernado.
Como o Miguel Esteves Cardoso escreveu, “as pessoas haviam de encontrar o grande amor das suas vidas só quando fossem velhas. É sempre melhor viver antes da felicidade do que depois dela”. E é bem verdade, a felicidade só vem atrapalhar a nossa vida. Faz-nos andar com sorrisos parvos todo o dia, aceitar todos os atrasos do autocarro que nos leva para o trabalho todos os dias, compreender todos os problemas de todos os taxistas de todas as cidades, sorrir e dar dois euros a um mendigo que nos roga uma praga qualquer terminada em “Deus Nosso Senhor”, e por aí fora… A felicidade é uma anestesia que nos alucina de tal forma que não conseguimos encontrar uma rua suja, um empregado das finanças antipático ou um político corrupto.
Por outro lado, viver sem qualquer felicidade também chateia. Nem que seja aquela felicidade de ver o Aimar a fintar meia equipa e a meter a bola no fundo da baliza. Ou a outra felicidade de dar uma gargalhada de 20 minutos sem ninguém ter contado uma anedota.
São felicidades relativas, ao contrário do amor, que não acontece num só dia e não deve ser relativizado por programas de televisão com balões em forma de coração. O amor é absoluto e impossível de alcançar. Apetece-me mesmo dizer o título de um livro do Miguel Esteves Cardoso, mas não digo. Fica nas entrelinhas.
a nossa piegas condição
O nosso primeiro-ministro pediu aos portugueses para serem “menos piegas”. Que idiotice! Um pedido destes é tão ridículo quanto uma ordem de fuzilamento. Diminuir a nossa pieguice é um acto homicida. Enquanto portugueses, temos o direito – e, até mesmo, o dever – de defender esta nossa condição.
De norte a sul do país, do interior ao litoral, passando pelas ilhas, todos nós somos piegas. Ora porque não temos dinheiro, ora porque nos dói as costas, ora porque está sol, ora porque chove. Do que precisamos é de uma mão no ombro, de um simples aceno com a cabeça e de um leitinho quente. Do que precisamos é de mimo. O nosso nível de pieguice é equivalente ao nível de necessidade de mimo. Não vamos lá só com ordens. Não há solução. Está-nos no sangue. Nós somos piegas e gostamos de o ser. Adoramos chorar, suspirar, bradar aos céus… No fundo, só queremos atenção.
Podemos não ser os únicos a chorar a nossa tristeza, mas somos, certamente, os únicos a chorar a nossa felicidade. Até uma boa notícia merece um olhar atento sobre o seu lado mais triste. Porque, para nós, todas as coisas comportam tristeza. Ora mais, ora menos, mas ela está sempre lá. E, agarrada a ela, a pieguice. Mesmo quando está longe de aparecer, numa festa de reencontro de velhos amigos ou num jogo de futebol em que já festejamos o quarto golo, há ali um certo momento em que paramos e “alto lá, não deveria estar assim tão contente”. E voltamos a colocar de lado os sorrisos do momento e desatamos a carpir mágoas por já não podermos viver as histórias que recordamos ou por aquele golo não ser mais do que uma bola a entrar na baliza. Atiramo-nos para o chão agarrados à perna e, num excruciante esgar de dor, levantamos o braço para o árbitro, pedimos falta, dizemos que nos dói muito e esperamos pelo som do apito. Paramos para o ouvir, mas ele demora e nós temos que sair do chão. Para isso, não nos basta chorar sozinhos. Precisamos de chorar acompanhados por alguém que nos meta a mão no ombro e nos estenda um leitinho quente. Tal como nós gostamos.
paixão ou lá o que é
“Para mim, o sucesso não está relacionado com dinheiro, fama e poder, mas sim com o número de olhos que estiverem a brilhar à minha volta”. Benjamin Zander, um carismático maestro inglês, disse esta frase perante uma plateia de 1600 pessoas. Perante 3200 olhos que brilhavam mais do que uma tonelada de diamantes. Zander tinha alcançado o sucesso. Tudo graças à enxurrada de emoções que transmitia ao tocar um simples prelúdio de Chopin. Para Benjamin, aquilo não era apenas música (como se à verdadeira música se pudesse associar um “apenas”). Para Benjamin, aquilo era mais. Muito mais. Em cada respiração, em cada palavra, em cada olhar, em cada partícula do seu corpo havia uma camada monstruosa daquela coisa a que se costuma chamar paixão.
Aquela era dele. Encontrou-a ali. E a nossa? Onde está? É urgente descobrir aquilo que nos move, que nos congela, que nos faz gritar, que nos cala, que nos torna maiores, que nos aperta no peito e que nos faz perder a noção do ridículo quando até mesmo o ridículo sente vergonha. Fazer com que os olhos brilhem. Os nossos e os deles. Com uma música, com um poema, com uma equação de Matemática, com uma dança, com um levantamento de peso, com o carimbar de um formulário, com a limpeza de um passeio, com um golo, com a pintura de uma parede, com tudo! Fazer com paixão é apaixonar os outros. E os outros estão cada vez menos vivos. Esses outros que somos nós. Que andam de um lado para o outro com a cabeça no chão, com as mãos nos bolsos e com a esperança no lixo.
De que vale chegar a velho, olhar para trás e escrever uma autobiografia a preto-e-branco, com as palavras no sítio certo, sem erros, sem capítulos inacabados? De que vale chegar a velho e reparar que, de facto, até vivemos uma vida perfeita, carregadinha de ângulos rectos e de ordens alfabéticas? Muito provavelmente não fomos felizes. Tivemos dinheiro, fama e poder, mas onde estão os olhos a brilhar à nossa volta?
festas sado-maso em portugal
A Penthouse recebeu um convite impossível de recusar: infiltrarmo-nos numa festa exclusiva de BDSM. Sim, exactamente o que está a pensar: sado-maso, chicotes e muito cabedal e latex à mistura. Nós contamos tudo o que vimos neste convívio inacessível ao comum dos mortais.
Sapatos pretos, calças pretas, camisa preta e casaco preto. Nem o Luís de Matos veste tanta roupa escura, mas foi esta a nossa indumentária para podermos estar presentes na festa BDSM que se realizou recentemente em Lisboa. Antes de abrirmos o portão enorme e pesado que dá acesso ao interior do recinto, vamos esclarecer o que é isso de BDSM. Esta sigla é composta pelas primeiras letras das seguintes palavras: bondage, disciplina, sadismo e masoquismo, um conjunto de padrões característicos do comportamento sexual do ser humano. O objectivo do BDSM é obter prazer sexual através de jogos de poder, que podem envolver dor, sacrifício, submissão, tortura ou cócegas, por exemplo. Para quem é muito tradicional no que ao sexo diz respeito, isto pode parecer muito estranho, mas aqui tudo é permitido. Desde que haja, obviamente, um pré- acordo mútuo entre os envolvidos. Damos esta explicação porque temos de admitir que também nós tivemos de nos informar sobre o que iríamos encontrar nesta festa. (Sim, caro leitor. É muito provável que perceba mais deste tema do que o tímido e curioso jornalista que aceitou este desafio.) Voltando à nossa festa, um corredor comprido e frio era tudo o que separava o portão da recepção. Três pessoas estavam à volta de uma mesa pequena, improvisada, com um bloco de bilhetes, vários panfletos da festa, uma caixa registadora e uma máquina portátil de multibanco. Uma mulher de cabedal, perfeitamente “equipada para o jogo”; as outras duas igualmente a preceito, mas com roupas mais discretas, que não impedem o uso abusivo de decotes. A noite ainda mal tinha começado e o staff ultimava alguns pormenores: luzes, música, bar, quiosque, esplanada… Pagámos o nosso bilhete e entrámos.
Um casal com uma filha entrou connosco. Ele, mais de 50 anos, baixo, de cabelo branco puxado para trás e uma barriga saliente igual à de muitos portugueses com a sua idade. E com um chicote na mão. Com ele seguia a mulher, uma senhora que fazia lembrar a Branca de Neve, mas com um físico que impunha respeito a qualquer tentativa de assalto. Junto deles, uma jovem que deveria ser a filha, pelo menos, a julgar pelas semelhanças físicas. Vestia uma saia de xadrez vermelha, tipo “colegial”. O “pai” ia à frente a controlar a situação. Olhava em volta a apreciar com calma e astúcia os mais diversos recantos. Já a “mãe” puxava a “filha” por uma corrente presa ao pescoço, e o seu olhar era mais lascivo e perigoso. Ai de quem se metesse à frente. A filha vinha atrás, com olhar tímido, mas atrevido. Este foi o nosso primeiro contacto com o que iríamos encontrar na festa e não deixámos de pensar que estas três pessoas podiam perfeitamente ser nossas vizinhas, ou trabalhar nalguma loja frequentada por nós. Eram três indivíduos normalíssimos, mas nada do que idealizámos encontrar.
Como qualquer um, a nossa imaginação é construída por imagens que vamos retendo das revistas, filmes e publicidade, e não há como negar, aí todos os intervenientes parecem o Brad Pitt e a Angelina Jolie, ainda que vestidos de latex ou cabedal. E pensamos sempre em sexo. Ainda que o conceito BDSM não entre por essa via. Mas voltando à festa, enquanto o pai ia conduzindo a família por entre algumas chibatadas no rabiosque da jovem sempre que ela olhava para onde não devia, nós continuámos a circular e aproveitámos para apreciar o cenário onde nos encontrávamos. O local – que não revelamos onde era, porque assim ficou combinado, apenas podemos dizer que era em Lisboa –, tinha alguma classe e requinte. As paredes enormes compostas por pedras seculares, albergavam um átrio espaçoso e antigo, composto por altas colunas retalhadas. Do lado esquerdo, uma sala de teatro iluminada por um vermelho baço, sombrio. Cerca de 50 metros quadrados vazios, delimitados por cadeirões. Dois camarotes e um primeiro balcão virados para um palco de seis metros quadrados transformavam a sala num sítio misterioso. Num dos camarotes, estava uma DJ a pôr música. Placebo, U2, Nightwish e Marilyn Manson, como que a provar que os adeptos do BDSM, apesar de mais selectivos nos seus gostos sexuais ouvem o mesmo que os outros. Voltámos ao átrio e dirigimo-nos para o outro lado. Encontrámo-nos ao ar livre, onde há um bar, um palco e um quiosque de venda de artigos próprios para a festa, e uma esplanada semicoberta com várias mesas, onde as pessoas, que entretanto começavam a chegar, se sentavam a conversar calmamente. Falam da vida, dos filhos, do trabalho, do estado do país. Falam de tudo, como qualquer pessoa numa mesa de café. A única diferença é que, ali, as pessoas estavam forradas a latex dos pés à cabeça (passando por todas – sim, todas – as partes do corpo). Uma mulher vestida a rigor tinha o homem preso por uma corrente. Era o único que não participava na conversa. Não por ser tímido ou por ter algum problema de fala, mas sim pela máscara que lhe tapava a cara. Dois furinhos para os olhos e um fecho no sítio da boca. “Agora não se pode falar, meu menino, quem manda é a dona”. Ou melhor, a “dominadora”. Ele é o “submisso” e só tem de obedecer, caso contrário, leva uma chibatada. E não é que levou mesmo? Uma, duas, três… Ajoelhou-se, beijou os pés da dominadora e rastejou. Olhámos à volta e vimos uns quantos assim. Naquele momento, tivemos de disfarçar um olhar de surpresa porque, apesar de sabermos ao que vamos e respeitarmos esta filosofia de vida, acabamos por reagir como qualquer um que não conheça este mundo por dentro. E foi naquele instante que percebemos o porquê de estas festas serem secretas e de acesso limitado. Quem é que consegue estar à vontade com mirones curiosos em cima de nós? Deviam estar a sentir-se como quem tem um acidente na A5 e leva com os curiosos das duas vias. Afastámo-nos e deparámos com uma espécie de cadeira almofadada inclinada que se encontrava no centro da esplanada. Ali, uma senhora com mais de 60 anos, de rabo ao léu a levar chicotadas de um homem que anda à sua volta a distribuí-las. A senhora, que seria possivelmente avó de alguma criança, aceita o seu castigo com um à-vontade desarmante. O homem usava uma coleira de picos ao pescoço, uma camisa de renda, calças de latex e umas botas com saltos de 15 centímetros. A sua postura tremendamente teatral e encenada com muito afinco fez-nos suspeitar que, finalmente, a personagem ganhava vida. Demos azo à imaginação e visualizámos este indivíduo a trabalhar numa repartição de finanças à espera que chegue o fim-de-semana para dar asas ao seu alter-ego, tal qual um super-herói ou, neste caso, um castigador de latex.
Entretanto, a música subia de volume e as pessoas dirigiam-se para a sala de teatro. Estava prestes a começar um espectáculo. No palco, uma mulher ajoelhada. Vestida apenas uma túnica, olha o público nos olhos. Entra um homem em palco, despe-a e começa por lhe atar várias cordas em torno do corpo. Tudo com o máximo cuidado, ao som dos Massive Attack. Um desenho de cordas começa a ganhar forma no corpo da rapariga que, a pouco e pouco, vai sendo presa a outras cordas que caem do tecto. Fica suspensa, e o artista continua o seu trabalho de forma eficaz. Atingido o ponto alto, o público bateu palmas e fez-se o percurso inverso. O segundo número consistia numa representação alternativa da história da Branca de Neve. As roupas coloridas da Disney são substituídas por outras, também coloridas mas de late, e mais raparigas do que as da história original, provocam- se com dildos. Até que um príncipe encantado encontra a sua amada. Só isto. Por momentos divagámos nas nossas expectativas e ficámos à espera de sexo, mas mais uma vez recordamos as noções explicadas: no BDSM não há sexo. Especialmente da forma que imaginamos. Vive de insinuações, provocação e jogos de poder. Exactamente o que acabáramos de assistir em palco. Resumindo e concluindo: há chicotes e correntes? Há. Há dominadores e submissos? Há, sim, senhor. Há mordaças e algemas? Com certeza que há. Há sexo? Não, de forma alguma. Deveria haver? “Claro!”, dizem alguns. Mas aí não seria BDSM…
Para nos despedirmos em beleza, deparámo-nos novamente com o nosso trio familiar preferido. O pai, entretanto, deixara de controlar a situação e a Branca de Neve gigantesca obrigava-o a ajoelhar-se e a pedir perdão por todos os seus pecados. Ele, vestido apenas com um fio dental que lhe tapava os órgãos genitais, aceitou o castigo e juntou-se à filha na sua punição. Um momento íntimo de que nos afastámos discretamente, em direcção à saída, ao mesmo tempo que nos apercebíamos de como a nossa idealização da festa estava errada, em particular no capítulo intervenientes. Quem espera encontrar nestas festas modelos da Victoria’s Secret em versão napa e cabedal tire daí o sentido, pois estamos em Portugal e louras deslumbrantes de pernas compridas não moram aqui. Jovens seminus com abdominais de Deus grego não fazem parte deste campeonato. Vêem-se portugueses banalíssimos, que apenas pretendem divertir-se de acordo com o seu estilo de vida, sem chatear ninguém e, de preferência, sem ninguém que os chateie. Confessamo-nos desiludidos – provavelmente, por culpa das altas expectativas que tínhamos –, mas temos de admitir que para quem estava ali com a missão de mirone seria mais interessante encontrarmos algumas mulheres do calibre daquelas que costumamos ver nas edições da Penthouse. Certo?
TEXTO André Pereira | ILUSTRAÇÃO Jorge Coelho
elogio do sofrimento
Sinto necessidade de fazer um elogio ao sofrimento, particularmente àquele que se apodera de todos os que vestem vermelho. Vermelho-Benfica.
Ser benfiquista é muito mais do que ter na alma a chama imensa. É ter várias chamas. É ter um Portugal inteiro durante o Verão a arder no nosso corpo. É ter uma explosão nuclear em cada cantinho da nossa alma.
Eu sofro. Claro que sofro pelo Benfica. Quem seria eu se não sofresse? Com que cara me olharia ao espelho se não me doesse o coração quando vejo o meu clube perder? Sofro, com certeza! E vou continuar a sofrer. Quer o Benfica jogue bem, quer jogue mal. Quer o Benfica ganhe, quer perca. Eu sofro! Junto os pés, bato com eles no chão e grito para o megafone: eu sofro! E ninguém me pode impedir. Tenho esse direito, ora essa. O sofrimento é condição essencial do ser benfiquista. É o que está no seu código genético, no seu ADN, no seu código de barras, naquilo que quiserem chamar.
Aqueles que não ficam irritados com a derrota da sua equipa é porque não a sentem verdadeiramente como sua. São assim-assim. São mais ou menos. E ser assim-assim ou mais ou menos é não ser. É a total ausência de identidade.
Ser benfiquista é insultar sem piedade, é elogiar sem frieza. É sentir ao máximo. É ter uma só cor, um só rumo, um só destino.
Ser benfiquista é ter um vírus alojado não se sabe bem onde, nem como, nem porquê mas, a verdade, é que ele está lá e faz o que quer. Não é hereditário, mas é extremamente contagioso e implacável. Não dá hipótese. Deixa-nos de cama, rabugentos e encharcados em comprimidos. Mas também nos deixa eufóricos, estupidamente felizes e com vontade de distribuir beijos e abraços a toda a gente com que nos cruzamos no trânsito. É contraditório, incoerente e irracional. No entanto, não deixa de ser o vírus mais apetecível de contrair.
É por tudo isto que eu sou do Benfica. Porque amo, porque odeio, porque grito, porque choro, porque salto, porque festejo, porque sofro! E sofrer dói como o caraças. Mas dá-me a certeza de que estou vivo, de que sinto. E não há nada melhor do que sentir o Benfica.
o amor é fodido
“Quanto mais vou sabendo de ti, mais gostaria que ainda estivesses viva. Só dois ou três minutos: o suficiente para te matar. Merecias uma morte mais violenta. Se eu soubesse, não te tinha deixado suicidar com aquelas mariquices todas. Aposto que não sofreste quase nada. Não está certo. Eu não morri e sofri mais do que tu. Devias ter sofrido. Porque eras má. Eu pensava que não. Enganaste-me. Alguma vez pensaste no que isso representou na minha vida miserável? Agora apetece-me assassinar-te de verdade. É indecente que já estejas morta”.
Miguel Esteves Cardoso