um homem vulgar
Vim a Lisboa. Consulta de Psiquiatria, nada de mais. Estacionei o carro e procurei um sítio onde almoçar. Ao pé da Penthouse, onde trabalhei e que já não existe, sim, javardice, havia uma tasca, aonde ia todos os dias. Já não há. Desilusão. Segui pela rua, uma porta aberta, por que não? Tasca, ainda mais tasca do que a outra. Vitela assada e. Eu sei o que o senhor quer. Maravilha. Um jarrinho de tinto, um lugar sozinho num canto. E eu sozinho. Chega o Camané, sim, o Camané. Senta-se ao meu lado. Quero dizer-lhe qualquer coisa. Pensa. Diz algo incrível. Diz que o admiras, diz que escreves, diz boa tarde. E digo, claro. Olá, não lhe posso agradecer a sua arte. Obrigado. Obrigado eu. Raios. Não lhe posso agradecer? Não lhe posso deixar de agradecer. Deixar de agradecer! Não lhe posso deixar de agradecer a sua arte. (E nem sei se o lugar do lhe é ali. Pouco importa.) Palerma. Está dito, está dito. Ele disse obrigado, talvez não tenha percebido bem. Era só eu, uma vulgaridade, a fazer-lhe uma atabalhoada declaração de amor. Como tantas outras vulgaridades, como tantas outras declarações de amor. E ele ali. Um homem vulgar, também, envergonhado, a ajudar uma família francesa a escolher o que comer. Carne de porco à portuguesa e bacalhau à braz. A família não sabia quem ele era. Ele não disse quem ele era. Merci. Aqui tem, senhor Camané, bom proveito. Iscas. Almoçou e foi embora. Antes de ir, olhou para mim e disse-me adeus, como se fôssemos velhos desconhecidos que se conhecem por aí. Eu disse adeus de volta e escrevi. Mais um jarrinho, por favor, se houver. Então não há? Quando acabar aqui o vinho, está o Tejo sem água. E eu ainda sem saber o que lhe dizer.
nenhum medo era meu
Perdi todos os medos que tinha
porque nenhum medo era meu.
Cada medo que vinha
não era medo,
era eu.
(Nem a cobardia era minha.
Foi ela que me perdeu.)
cativeiro: privação
Uma menor foi raptada por um homem de 48 anos, que a manteve em cativeiro durante oito meses. Para que fique esclarecido, segundo o Dicionário da Língua Portuguesa, «rapto: acto de tirar alguém de casa ou do local onde se encontra, através de violência, de ameaça ou de engano» e «cativeiro: privação da liberdade sem obrigação de servidão».
Para a Comunicação Social, é óbvio quem é o culpado. Não, não é o homem de 48 anos que raptou a menor de idade. Coitado do homem, ele só queria companhia. Aliás, segundo a TVI, «Luana tem uma dependência de jogos online e terá sido isso que a motivou a sair de casa». Ou seja, foi o Jogo Online que a levou a ser raptada. Para a Comunicação Social, o culpado é, claramente, o Jogo Online. É já um Fatality a esse monstro!
uma espécie de âncora
Ligo a televisão apenas para me dar uma noção de tempo. Não vejo o que lá está, mas tenho de saber que lá está. Qualquer coisa, não sei o quê, não me interessa, mas está. E o que quer que lá esteja está a viver o mesmo tempo que eu. E eu preciso de saber que o tempo é o mesmo, que a realidade não parou nem correu. A televisão é, para mim, uma espécie de âncora sem corrente que me prende ao tempo, à vida. Mesmo sabendo que não há outra coisa além dela. Ligo a televisão para ver se eu não me desligo de mim.
a arte tem que ser arte
A arte não tem que ser inclusiva. A arte tem que ser arte. Inclui-se quem sentir a arte como ela, cada uma, é. Não se inclui quem não a sente. A obrigação do que quer que seja na arte é uma contradição da arte em si. Quem diz que a arte deve ser outra coisa que não arte é porque não sabe que coisa ela é.
qualquer coisa e um coração
Fiz 38 anos. Não estava à espera. Ainda ontem tinha 18. O tempo é tramado. Passa e nem damos por ele. Pensando melhor, melhor assim, talvez – ele ir passando sem lhe darmos muita atenção. Gostaria de ter tantas idades outra vez. Ou talvez não. O tempo faz o que tem a fazer e eu tenho a idade que tiver de ter, nunca deixando de ser quem sou. Sei lá eu quem sou. Qualquer coisa e um coração. Saudades, ansiedades e instantes. Uma confusão.
o teólogo inteligente
«Bento XVI, o teólogo inteligente.» Esta frase tem sido dita por toda a gente em todo o lugar. Tem graça. Por um lado, ao dizer-se «teólogo inteligente», está a dizer-se que é invulgar os teólogos serem inteligentes. Por outro lado, ao dizer-se «teólogo inteligente», está a assumir-se que há teólogos inteligentes. A Teologia é «a ciência da religião». A Ciência é «o conjunto de conhecimentos fundados sobre princípios certos». A Religião não é um «princípio certo». A Teologia é uma contradição em si. Um «teólogo inteligente» também. Tem graça (não a divina – se fosse essa, não teria por, simplesmente, não existir).
o meu sonho sempre foi
O meu sonho sempre foi ser o meu pai. Ainda é. Ele ainda está. E eu ainda sonho. Mas o tempo passa e eu, por obra e graça de alguém ou de ninguém ou, sendo de alguém, será de mim, sou tristonho. Talvez por eu ser, talvez de nascença, assim. Qualquer parecença com o meu pai é só coincidência. Ele fica e vai com a mesma urgência de viver. Ele existe, luta, também cai, mas não se deixa vencer. Não por ser super-herói, mas por transformar tudo aquilo que lhe dói em alegria, por vezes aparente, como é vulgar acontecer, mas numa espécie de magia de ficar contente, sem doer. Nem um ai. Nem um André. O meu sonho sempre foi ser o meu pai. Ainda é. E ele ainda está. Um dia, serei. Só não sei quando será. Quando for, que, entre mim e o meu pai, tudo o que há é amor.
encontrando ausência
Podia ir lá para fora,
mas não vou.
Mas parece que estou lá agora,
mas não estou.
Como se fosse
sem sair daqui.
Fui eu que me trouxe
ou fui eu que me fugi?
Como se estivesse
num e noutro lugar
e não pudesse
lá estar.
Sou assim
em permanência,
procurando por mim,
encontrando ausência.
se um dia a juventude
Se um dia a juventude voltasse
e me dissesse «voltei»,
talvez eu a olhasse,
a despisse, a beijasse
e ficasse onde fiquei.
Ela veio e eu falei
com ela como se fosse
uma conversa vulgar.
Ela voltou e só trouxe
o que eu sabia lembrar.
Tudo o resto ficou
lá no lugar do passado
onde também está quem eu sou
e não só o lembrado.
Que lembrança ficou de mim,
desta lembrança que agora
me deixa perto do fim
por ouvir «fui embora»?
nenhum deles voltou
No mesmo avião, foram 26 jogadores. No mesmo avião, voltaram 14. A ganhar o Mundial, para festejar e para receber aplausos e notas, teriam voltado, no mesmo avião, os mesmos 26 jogadores que partiram. Perdendo o Mundial, voltaram apenas os que se sentiram verdadeiramente derrotados, verdadeiramente nobres. Os outros, certamente desolados, coitadinhos, ficaram tristes, tão tristes, a festejar no lugar onde nenhum deles perdeu, porque nenhum deles voltou.
Imagem: Fauzan Saari
sempre só com ele
Não é por não marcar nem por não jogar como jogava. É por festejar e por chorar como sempre o fez: sozinho. Nunca foi pelas equipas nem pela Selecção, sempre foi só por ele. Ronaldo existe sozinho. Sempre existiu. Para ele, os outros não existem. Por muito que tenha contribuído para o sucesso das equipas e da Selecção, ele sempre existiu só para ele. Por isso é que, festejando ou chorando, ele nunca está com os outros. Está sempre só com ele. E ele está como sempre esteve: sozinho.
a tragédia começa no nariz
Tenho o nariz entupido. Tenho medo de morrer. Um clássico, eu sei. Sou homem e os homens não podem apanhar uma gripezinha que ficam logo não sei quê inserir clichê dito por mulheres que são todas muito fortes. Eu não sou. Nem mulher nem forte. Não neste caso que, para mim, é de vida ou morte. E não me ajuda nada falar ou escrever sobre isto porque, falando ou escrevendo, estou a lembrar-me constantemente de que tenho o nariz entupido e de que, ordem natural das coisas, vou morrer. Então falo e escrevo sobre isto, que esperteza. Acho que nunca nenhuma pessoa morreu por ter o nariz entupido, mas eu tenho sempre a forte convicção de que eu serei a primeira. Por isso é que, há coisa de meia hora, depois de ter passado o efeito de umas super gotas, saí do quentinho da minha casa para partir em busca de uma caixa de victans. Se é para morrer por culpa do nariz entupido, ao menos que esteja drogado, a dormir. Também encontrei uma pomada toda ninja. E tenho livros e um gato e um caderno onde aponto o que encontro e me apetece guardar. «”A comédia começa nas pernas”, Jacques Tati». (Só aponto o que encontro no caderno, não no gato, por vezes nos livros.) Sou capaz de morrer um dia destes, nunca se sabe. Já sei. A tragédia começa no nariz, André Pereira.
uma noite e uma tarde
Uma noite e uma tarde no Teatro da Comuna. Sozinha, com tanta gente ao lado, a Maria riu, cantou e chorou. E fez com que tanta gente tivesse rido, cantado e chorado – a toda esta gente eu só posso dizer obrigado. Eu, que apenas escrevi e ajudei a criar, ri, cantei e fartei-me de chorar. Culpa da Neide, Maria sem lugar.
palavra de honra
JÁ NÃO HÁ PACIÊNCIA… para abacate. É abacate ao pequeno-almoço, abacate ao almoço, abacate ao lanche, abacate ao jantar, abacate na torrada, abacate no frango, abacate no soro da quimioterapia… Raios partam o abacate.
DETESTO… ter o nariz entupido e tomar decisões.
A IDEIA… é bastante polémica, não sei se o mundo está preparado para ela, mas cá vai: não sair da zona de conforto. Se é zona de conforto, e se conforto significa prazer, por que raio é que temos de sair de lá?
QUESTIONO-ME SE… é assim tão saudável eu questionar-me. Se não seria preferível eu andar por aí a fazer perguntas aos outros e não a mim.
ADORO… não ter o nariz entupido e tomar decisões.
LEMBRO-ME TANTAS VEZES… de jogar num campo que ainda existe, mas que o Presidente da minha terra diz que não.
DESEJO SECRETAMENTE… nada. Desejo sempre de forma pública. Um beijo, Lúcia Moniz.
TENHO SAUDADES… de ambientes que não são intimistas, de exposições que não são imersivas e de amigos que não são amigos dos seus amigos.
O MEDO QUE TIVE… quando, a 11 de Maio de 2013, vi o Roderick Miranda a aquecer… Confirmou-se.
SINTO VERGONHA ALHEIA… de quem leu este início de frase e disse vergonha alheira.
O FUTURO… a Deus pertence, claro está, visto que nem um nem outro existem.
SE EU ENCONTRAR… a palavra Liberdade no primeiro discurso de Paulo Raimundo como secretário-geral do PCP, inscrevo-me no Partido*. Até agora, ainda só encontrei as palavras Força 18 vezes e Luta 21 vezes. *10 vezes
PROMETO… uma feira medieval e uma cidade sobre rodas todos os fins-de-semana. Votem em mim!
TENHO ORGULHO… orgulho em ser uma vaca. (Assim mesmo, com dois orgulhos.) A frase não é minha. Nem de nenhuma amiga. É da Vaca Glória, da Rua Sésamo. É parte da letra de uma canção que está na minha cabeça desde os anos 90.
dói-dói no menino
O Ronaldo sente-se muito injustiçado, coitadinho. Então, como qualquer adulto que se sente injustiçado, decide fazer birra. Diz que não treina, diz que não joga e tudo o que tem a dizer não diz a quem deve, diz na televisão. Sai de casa, bate com a porta, chora, grita, faz queixinhas e deixa o clube a arder. Esconde-se debaixo das saias da mamã Fernando Santos, pede colinho aos meninos da Selecção e espera que alguém olhe para ele e lhe dê o brinquedo que ele tanto quer: voltar a ser reconhecido como o melhor. O que lhe interessa não é o que ele pensa que é, é o que os outros pensam. E os outros, pelo menos os mais lúcidos, já não pensam que ele é o melhor. E isso faz dói-dói no menino. O Ronaldo, que sempre foi de jogar, lutar e marcar, está, neste momento, a rebolar no chão por uma falta que não existiu. Ele é que tropeçou nele próprio.
Imagem: AFP
a ditadura da ignorância
Toda a gente que vota no Bolsonaro é apoiante do Bolsonaro. Nem toda a gente que vota no Lula é apoiante do Lula. Esta é uma eleição de um só candidato. O outro é só o pouco que se arranjou para impedir a ditadura da ignorância. Triste Brasil que deixa a alegria para o samba.
Imagem: Helder Oliveira
isto não é um campo
«Isto não é um campo.» O Presidente da União das Freguesias da minha terra olha para o Parque de Jogos do Sport Clube Leiria e Marrazes e diz que não é um campo. Ao dizer que não é um campo, o Presidente da União das Freguesias da minha terra está a dizer muito mais. Por detrás destas palavras, como por detrás do muro trancado a cadeado e vedado a tijolos, vejo outras palavras: desrespeito, desprezo, ingratidão. Vejo todas elas por toda a História do clube e da terra, por todas as pessoas que construíram o campo e por todas as pessoas que por lá passaram e que por lá fizeram e deram vida. Por detrás do muro das palavras «isto não é um campo», vejo uma lixeira mais suja do que aquela que o Presidente da União das Freguesias da minha terra deixou alastrar no Parque de Jogos do Sport Clube Leiria e Marrazes. Para ele, «isto não é um campo». Para mim, isto não é um presidente.
libório, o barbeiro
Depois de um agricultor, de uma operária fabril, de uma costureira e de uma agente funerária, chegou a vez de um barbeiro. Neste último vídeo da Rua Saramago, Jorge Libório lê e é «O Homem Duplicado».
Produção de Neide Simões, realização de Andreia Mateus e participação especial heavy metal de Fernando Ribeiro (Moonspell).
Município de Leiria | Leiria Cultura | Semlimites Produções | Dr. Barber
Vídeo aqui.
santiago, para outro lugar
Há duas velocidades nesta história, a do caminho e a do confronto. Demora até lá chegar. Quando lá chega, vai de repente para outro lugar. Mas, seja qual for a velocidade a que se caminha, há talento. Na ideia e na criação – a de quem não aparece e a de quem dá a cara, a voz e tudo o resto que um actor dá para que tudo pareça real. E para que nós caminhemos com ele. A Lúcia leva-nos pela mão durante este primeiro episódio. Aperta-a com força e não a larga (parece que aperta a mão do Ivo – que também nos leva – mas é a nossa). É uma espécie de encantamento que nos faz ir com ela. É tão leve a ir de um lugar de dentro a outro e tão pesada a parecer o que é em cada lugar. É uma ilusão constante, com aquele ar de menina bonita e frágil que não faz mal a ninguém, e nós ali, a olhar para ela e, num instante, é ela que nos tem. Como a Leonor, a Lourdes da história. Quase não fala, nem tem de falar. Tem um carisma que fala por ela, uma inquietação que passa para quem a vê, mesmo que ela esteja no cantinho do plano. Mais um bonito engano. E, por falar em beleza, César Mourão. (Este elogio tem o patrocínio de mais convites destes.) Faz tudo bem (aqui, fez a ideia e a produção), à excepção de escolher agremiações clubísticas. Desafiou-me a ir e desafiou-me a terminar o texto que eu iria escrever, este, com as próximas palavras sobre o primeiro episódio de Santiago. São estas, mas não são apenas sobre o que estava no ecrã. São, também, sobre ele. (Ainda bem que não é.): «Se é português? É, mas podia não ser.»
| SANTIAGO. Realização: @pedrovarelalx; Criação: @cesartmourao, @diogovbrito e @ines.o.braga; Produção: @313features, @blanchefilmes e @sicoficial; Argumento: @ines.o.braga, @pedrompgoulao e @pedrovarelalx; Elenco: @luciamoniz, @ivocanelas, @_barbarabranco_ , @carla_maciel_strangles, @leonor_vasconcelos e outros que são tantos que eu não os escrevo aqui que não há espaço – encontrem-nos na @opto.sic |
sêco, a agente funerária
O fim da morte, por quem vive dela. Quarto vídeo da Rua Saramago, com produção de Neide Simões e realização de Andreia Mateus.
Município de Leiria | Leiria Cultura | Semlimites Produções | Funerária Seco
Vídeo aqui.
não sou de lugar nenhum
Acho que escolhemos de onde somos pelo lugar onde gostaríamos de morrer. Eu não gostaria de morrer em lugar nenhum. Não sou de lugar nenhum. Nasci onde não estou. Morrerei no lugar onde não gostaria de morrer. Quando lá estou, no lugar onde nasci, sou de longe. Quando estou aqui, sou de longe também. Acho que sou sempre do lugar onde não estou. Nem é estar bem onde não estou ou querer ir aonde não vou. Não é isso. É não estar onde estou, é não ir para onde vou. O meu lugar é sempre lá, longe. Não longe de mim, longe daqui. E aqui é em todo o lugar. E eu sem lá estar.
rosalina, a costureira
Lá está a costureira, dona Rosalina.
Terceiro vídeo da Rua Saramago, com produção de Neide Simões e realização de Andreia Mateus.
Município de Leiria | Leiria Cultura | Semlimites Produções
Vídeo aqui.
lurdes, a operária fabril
Diante dos nossos olhos (e ouvidos), Lurdes, operária fabril. Segundo vídeo da Rua Saramago, com produção de Neide Simões e realização de Andreia Mateus.
Município de Leiria | Leiria Cultura | Semlimites Produções
Vídeo aqui
ferreira, o agricultor
Fui para a rua ouvir Saramago. Levei livros, trouxe gente.
O senhor Ferreira trabalha a terra, é agricultor. É ele o rosto e a voz e as mãos do primeiro vídeo deste meu novo projecto, Rua Saramago. Cinco vídeos de cinco pessoas de Leiria lendo o nosso Nobel no exercício das suas profissões. Produção de Neide Simões, realização de Andreia Mateus. Palavras de Saramago.
Vídeo aqui.
rua saramago, o princípio
Este sábado, todas as ruas de Leiria vão dar à Rua Saramago.
Às 15h, na Biblioteca Municipal Afonso Lopes Vieira, em Leiria, apresento o meu novo projecto feito de palavras do nosso Zé e de gente da nossa cidade.
Vídeo-teaser aqui.
magia com os pés
Foi bonito voltar. E cansativo como o raio. Já não me lembrava da necessidade de correr para jogar à bola. Em boa verdade, já não me lembrava da necessidade de saber jogar à bola para jogar à bola. A bola estava vazia, era isso. E não tinha as dimensões adequadas para a prática do futebol de elite que se esperava ver no Campo nº1 da Aldeia do Desporto do Sport Clube Leiria e Marrazes. O relvado também não estava em condições, claro que não. Era relvado, eu sou vedeta é em pelado. No entanto, houve rasgos de magia, em particular quando a bola desapareceu uma série de vezes para o pinhal, e rasgos de um ou outro músculo que agora não se acusa mas que amanhã, ao acordar, vai dizer bom dia aos gritos. Foram, aliás, gritos, estes de entusiasmo e de regozijo (bem, talvez tenham sido todos de espanto), que eu ouvi depois de, na sequência de um cruzamento milimétrico vindo da ala direita, eu ter efectuado um exímio movimento técnico de cabeça que fez a bola balançar as redes. Sem hipótese de defesa. Incrível. Primeiro golo de cabeça que marquei na vida. Primeiro golo do primeiro treino do regresso das Velhas Guardas do clube da minha vida. Foi bonito voltar. Obrigado a quem me recebeu – e a quem compreendeu esta minha forma muito peculiar de fazer magia com os pés.
a partícula de deus
O sistema de senhas do Hospital de Leiria é um dos grandes mistérios da Humanidade. E ainda bem. Porque, tendo em conta as horas de espera naquelas cadeiras de plástico viradas para um ecrã a mostrar como lavar as mãos, sempre vamos ocupando a cabeça a tentar decifrar este enigma da ordem de chamada. A minha senha M0288 foi chamada antes da senha M009 e depois da senha M978152726388. A culpa é minha, eu sei. Eu é que ainda não percebi a razão para este complexo sistema de funcionamento de anunciação, anunciamento, anunciamentação, sei lá, estou cansado, do número da senha. Certamente, há uma organização perfeita, funcional, eficiente, produtiva, prolífera, profícua, válida, resumindo, ao calhas que explica isto. Eu é que não percebo – e estava ali para tratar do ombro, não da cabeça. Na verdade, nem eu nem ninguém percebe. E é essa incompreensão de algo que deveria ser facilmente compreendido que faz com que eu aplauda este sistema de senhas todo ninja criado pelos génios da informática hospitalar. As pessoas estão ali sem fazer nada, horas e horas e horas e horas à espera de uma consulta de cinco minutos para ouvirem ah dói-lhe o ombro?, então temos de tratar disso, muito obrigado, senhor doutor, novidade do caralho, ponha gelo e tente não tocar onde lhe dói, vamos fazer análises, a próxima consulta é já em 2025. Bem, já estou a escrever demasiado e o meu ombro já está a gritar, estou velho, mas as pessoas também e estão ali à espera. Então, fazem um sudoku da compreensão do mecanismo inteligentíssimo de senhas. Em vez de tirarem um curso e irem para o CERN tentar decifrar a partícula de deus, arranjam uma tendinite e vão para o hospital tentar decifrar a partícula do totoloto das senhas. Bem, vou aproveitar e tirar senha para Psiquiatria.
a obrigação da felicidade
Sou obrigado
a ser feliz.
Toda a gente,
em todo o lado,
me diz
que tenho a obrigação
da felicidade.
Eu acho que não,
que não tenho obrigação
de nada,
muito menos
dessa coisa inventada.
Não tenho de a ter
nem de a procurar.
Mas até que gostava,
assim sem a saber,
de a encontrar.
tantos que são ninguém
Tantos que são
ninguém.
Quem?
Eu não.
ai que linda que é a vida
ai que linda que é a vida
coisa linda de se ver
ora alegre ora sofrida
ora como tem de ser
ai que linda que é a vida
quando ainda só começa
mas lá vem a despedida
e lá vai a vida à pressa
ai que linda que é a vida
das birras do coração
será mesmo linda a vida?
talvez não
ai que linda que é a vida
coisa linda pelo fim
será morte a própria vida?
talvez sim
ai que linda que é a vida
coisa linda de dizer
quem me dera saber a vida
mas eu não a sei viver
não é de
amor
não é de amor
nem de saudade
não é de asma
nem de vaidade
não é de apneia
nem de ilusão
não é de um mal
nem de hipertensão
não é de bullying
nem de rinite
não é de falta
de apetite
não é de gota
nem de alergia
não é de culpa
nem de apatia
não é de orgulho
nem de indiferença
não é de nenhuma
doença
não é de medo
do escuro
eu sofro de passado
e de futuro
tudo isso que não há
Como se cala o que não aconteceu, o que nem sequer existiu? Toda essa inexistência me grita aos empurrões. Tudo isso que não há, mas que eu oiço e que eu sinto e que eu tento calar e que eu tento parar e que eu não consigo. Tudo isso não me pára de gritar. Nada aconteceu. Nem eu comigo.
fartinho de chorar
Ainda éramos miúdos, ainda jogávamos, cada um na sua modalidade, quando o Simão me ofereceu o seu stick de hóquei – já não o usava, e achou que ficaria melhor nas mãos de quem nunca o iria usar. Eu nunca soube jogar. Nunca soube, sequer, andar de patins. Mas aquele stick que ele me deu, e eu nunca lhe disse isto, foi uma das coisas mais bonitas que recebi. Guardo-a como uma relíquia. Sei do Simão desde sempre. Das brincadeiras, das escolas, das férias, das catequeses, das festas, das ruas, dos Marrazes – da paixão pela terra, da paixão pelo clube. Conheço muita gente apaixonada, não conheço ninguém com a paixão do Simão. Uma paixão que vem do amor imenso, que lhe vem da história, pela sua gente e pela sua camisola – mesmo quando foram outras que vestiu. O Simão é o Simão porque, à paixão do amor, sabe ter o trabalho, a humildade, o profissionalismo, a exigência, a seriedade e tantas outras qualidades, e defeitos, claro, como qualquer ser humano que se preze, que fazem dele quem ele é. A nossa equipa de hóquei garantiu a subida à Segunda Divisão. Ele é o treinador. Ele, um puto da minha idade a ser treinador dos seniores. Estamos velhos. No domingo, eu vi o Simão como poucas vezes vi. Feliz da vida, fartinho de chorar. Ao seu lado, dentro dele, toda a gente – atletas, amigos, dirigentes, adeptos, família – que lutaram por esta alegria com tudo o que tinham, acima de tudo, suor. Pela nossa terra, pelo nosso clube. Com o nosso Simão.
fausto, ninguém dança
“Fausto” é uma peça de teatro que é uma peça de dança. Ninguém dança nesta peça. Mas tudo o que acontece não pode ter outra definição. Dança quem representa, quem entra e sai, dança quem nem sequer tenta, quem vai andando por ali à procura do seu papel na plateia que não há, porque apenas há palco. E todos dançamos como se fôssemos todas as personagens que ali estão. Ninguém dança, é tudo invenção. Mas acreditamos que sim, que dançamos – toda a gente. Culpa e talento de quem nos faz dançar. O Diabo não existe. O Hugo só existe com ele. Não poderia ser outro a vestir-lhe a carne – a que anda, a que corre, a que sorri, a que ri, a que grita, a que fala, a que canta, a que sussurra, a que range, a que beija, a que morde, a que desaparece. “Fausto” tem arte em muitos lugares e em muitas pessoas. O Hugo, sendo este Diabo que não existe, é arte de todos os lugares e de todas as pessoas. Pelo meio de todos eles e de todas elas, lá vai dançando e lá vai fazendo dançar como se esta dança da representação fosse, para ele, uma infantil forma de brincar. O Hugo agarra toda a gente pela boca e não deixa ninguém respirar ao longo de toda a peça. Ele é personagem de dentro e é personagem de fora, de quem representa e de quem não. É uma espécie de encenador em pontas que vai dizendo o que devemos fazer, pensar, temer e venerar. O Diabo não existe e poderia ser outra pessoa, como é em todas as outras representações de “Fausto”. Mas, quando o Hugo dança, ninguém sabe dançar.
| “Fausto”, no Teatro da Comuna. Texto de Goethe, com adaptação e direcção de João Mota. Interpretação de Hugo Franco, Carlos Paulo, Rogério Vale, Luís Garcia, Miguel Sermão, Gonçalo Botelho, Francisco Pereira de Almeida, Ana Lúcia Palminha e Patrícia Fonseca. Cenografia de Renato Godinho |
Fotografia: Bruno Simão
uma canção do medo
A escuridão magoa. Mais do que uma bolada na cara ou um pontapé nos tomates. A escuridão, que nem sequer nos toca, tem o incrível talento para nos deixar estendidos numa valeta. Quando estamos com ela, quando ela nos tem, não tem mais nada, não temos mais ninguém. Estamos inteiramente dentro do escuro, que é incerto, indefinido, indeterminado, desconhecido e que, pela certeza de toda esta incerteza, nos faz ter medo. E o medo, por muito que nos digam que faz parte de quem é inteligente, é bem capaz de nos partir, destruir, como faz com tanta gente. A escuridão traz o medo num carrinho de bebé. Tão pequenino que parece, tão grande que ele é. A escuridão tem outro talento além da força. A escuridão é sempre uma coisa e o seu oposto. A escuridão é sempre o monstro e a formiga, apenas sendo o monstro ou a formiga quando deixa de ser escuridão. Mas, sendo escuridão, é sempre maior do que é na realidade, porque é sempre monstro e formiga, nunca só um.
Nós estamos na escuridão. E o medo já não vem de carrinho, vem pela mão. Tudo o que lá está – que é tudo o que nos tem – é muito menos do que aquilo que imaginamos. É a imaginação que nos trama, o idealizar que há ali qualquer coisa que é chama, que nos chama. E nós vamos, acreditamos no que imaginamos, e a imaginação é real como um corpo ou um sonho. E está lá o monstro, a formiga, as famílias dos dois, os passados e futuros dos dois, os sonhos dos dois, as conversas dos dois, as fodas dos dois, e depois? Depois não há razão, pelo menos enquanto houver escuridão. Mas há pele, há guerra, há mel, há terra, há chão, há sorte, há não, há morte. À escuridão, nada lhe falta, por pouco ou nada que ela tenha. Quietinha no seu canto, completamente alastrada em nós, a escuridão não faz barulho, grita como se toda ela fosse voz. Não mexe uma palha, deixa-se estar à espera da canalha que venha brincar. E claro que a canalha, que somos nós, vem sempre. A gritar.
Desejamos a escuridão na exacta medida em que a negamos. Somos todos gente feliz nos cafés, nas ruas e nas redes sociais. A escuridão não nos existe. Jamais! Mas assim que pagamos a bica, cruzamos olhares ou bloqueamos o telemóvel, lá vem ela, essa galdéria escondida, trincar-nos as ilusões. Nós, que andamos por aí a fingir nas entrelinhas da vida, esquecemo-nos de ouvir a nossa batida. Vivemos vidas que não são as nossas, vestimos roupas que não temos, usamos máscaras que nos tapam da cabeça aos pés. Eu não sei como sou. E tu, sabes como és? Verdadeiramente, sem merdas, sem adjectivos com caracteres contados para a bio do Instagram ou do Facebook. Realmente, sem maquilhagem, sem photoshop, sem mamas, sem abdominais. Eu não sei para onde vou. E tu, sabes para onde vais?
Há qualquer coisa de atracção na escuridão. Eu sei, cedo-lhe tantas vezes. E tardo-me em sair de lá, culpa minha, claro, que a escuridão não existe sozinha, só com gente que a veja. A escuridão parece que beija. Com dentes. Aleija. Eu acho que sinto. E tu, sentes? A escuridão é uma espécie de materialização do futuro. Sabemos o que é, mas não sabemos o que tem. Olhamos, pensamos, imaginamos, mas não vamos além. Não conseguimos, não sabemos, e seguimos e logo vemos. A escuridão tem tudo o que julgamos que ela tem. É por isso que nos intimida, que nos faz sentir ainda mais sós. A escuridão é a nossa vida. A escuridão somos nós.
, texto na Grotta #5 (edição Letras Lavadas).
não chorei, claro que não
Não chorei, claro que não. Eu sou lá gajo de choradeiras. Este puto, que este domingo deixou a bola, é o puto que, há mais de trinta anos, me deixou na pré-primária para ir para a escola dos maiores. Naquele dia, eu chorei. Neste, não chorei, claro que não. Nem disfarcei nem nada. Nem me lembrei das futeboladas de rua, com pedras a fazer de baliza. Nem dos passes teleguiados deste menino para os golos deste puto. Há provas. O meu pai filmou alguns jogos ao lado do pai do Miguel. E as mães ao lado uma da outra. Só partilhávamos um ano por escalão. Ele descia a equipa, eu subia. Miguel, sabes que é verdade. Mas também é verdade que ele dava uma magia diferente àquela magia que é o futebol. Mesmo em campos de terra, com linhas tortas, sem relva. À homem. À garoto. Não conheço ninguém que não goste do Miguel. Também não me lembrei da escola. Nem dos copos. Não vale a pena falar disso agora. Felizmente, não há provas. Só tive um clube, o Sport Clube Leiria e Marrazes. O Miguel teve outros, mas só teve um. Este clube deu-nos família. Eu já tinha, e ainda tenho, o Miguel.
nada a não ser ver sofrer
Não decorei o texto. Não subi a palco. Não representei. Não tenho como agradecer à Neide, que fez tudo isto por uma personagem que eu apenas escrevi. Não fiz nada a não ser ver sofrer, sofrendo também. Custou-me a antecipação das luzes. Doeu-me a barriga. Tive prazer. Disse todas as palavras que a Maria disse. Fiz todas as marcações que a Neide fez. Fui o que ela foi. Estive onde elas estiveram. Ver a Maria viva, real, criada pelo nervo e pelo corpo da Neide, foi de uma estranheza tão assustadora quanto bonita. Como ela é. Como elas são. As duas. E toda a gente que encheu a sala. Não tenho como agradecer a ninguém. Ela sem lugar, e eu sem palavras.
do choro uma coisa bonita
A Carminho tem o dom de chorar com a garganta. Quando canta, faz do choro uma coisa bonita com todo o desespero e com todo o prazer que só a beleza tem. A voz da Carminho é verdade, e é ela que vem quando ela a chama. Ela não embala, estremece. É uma voz que cala quem não a esquece e a continua a lembrar mesmo depois de ela deixar de cantar. A voz da Carminho é uma espécie de lágrima arrastada arrancada ao coração. Não precisa de mais nada. Só assim, já é canção.
A Carminho veio ao Teatro José Lúcio da Silva cantar com a Orquestra Jazz de Leiria. Chorou com a garganta, mas pouco se ouviu, porque se ouvia o que não se deveria ouvir, o típico virtuosismo gabarola de quem tem talento a tocar, mas não o tem a compreender o que se ouve, o choro. É habitual em quem procura mais o aplauso do que a emoção, por só encontrar a sua vaidade no lugar do coração. A Carminho veio sozinha e foi sozinha que ela esteve em palco – apesar de toda a gente que o pisava. Eles não ouviam, mas ela chorava.
vitorino sem angústias
Tenho a impressão de que o meu gato sabe tudo da vida e por isso é que não anda para aí com angústias sobre o que é ou deixa de ser. Limita-se a viver, e viver assim, desta maneira, parece-me ser demonstração de uma inteligência fora do vulgar, inteira. Desde que tenha comida e protecção, o meu gato está onde tem de estar, aqui, e é o que tem de ser, feliz. É, pelo menos, o que me parece. Tem, também, um ou outro coração que lhe dá colinho, festinhas e algumas palmadas – que tantas vezes merece, tantas vezes de mim -, e isso é capaz de ajudar à minha crença de que ele é feliz. Espero que sim. Ele não me diz.
Vitorino, a viver sem angústias – e com algumas palmadas, que tantas vezes merece – desde 17 de Março de 2016.
é a maria, e a maria sou eu
A Neide é a Maria, e a Maria sou eu – eu sou sempre o que escrevo, e a Neide é sempre o que ela quiser. Ela pediu-me palavras, eu escrevi Maria. Sem lugar.
MARIA SEM LUGAR
Teatro, Monólogo
25 de Março, 21h
Auditório Municipal Padre Bento da Guia, Moimenta da Beira
Sinopse: Maria não tem lugar porque não sabe que lugar é o seu. Maria tem dúvidas sobre o que é e sobre o que quer, mas tem certezas de que o seu lugar nunca é o lugar onde ela está. Ao longo de 40 minutos, Maria desabafa a sua normalidade que tanto parece anormal aos olhos do mundo segmentado e polarizado dos dias de hoje. Uma mulher e algumas palavras num palco que, naturalmente, também não sente como seu.
uma coisa que não tem nome
“Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos”. As palavras de Saramago deram origem a esta coisa que tem o meu nome, o nome do Ruben e o nome do Nuno. A estes, juntaram-se outros nomes, de alunos das escolas secundárias Francisco Rodrigues Lobo e Domingos Sequeira. Tantos nomes, uma só ideia: criar.
Ao longo de cinco sessões – a primeira foi esta semana – iremos explorar o processo criativo através de três artes: Escrita, Música e Fotografia. Em cada sessão, uma peça artística de cada arte: todas as semanas, a divulgação dessa peça artística nas páginas de Instagram e de Facebook do projecto; no dia 9 de Abril, a divulgação de todas elas numa exposição na Biblioteca Municipal Afonso Lopes Vieira.
Por enquanto, arte. Toda essa coisa de tantos nomes que existe dentro de nós.
Aqui.
quietinhos e caladinhos
Hoje é o Dia da Mulher. Mas, homens, muita atenção! Não podemos dizer que hoje é o Dia da Mulher. Qualquer menção ao Dia da Mulher, qualquer gesto de carinho para com a mulher neste dia, apenas vai reforçar a discriminação do homem em relação à mulher por haver um Dia da Mulher. Portanto, nada de dizer que hoje é o Dia da Mulher. E nada de gestos carinhosos, de beijos, de poemas, de chocolates, de flores, de jantares. Não devemos pronunciar Dia da Mulher em lado nenhum, em nenhum momento. É discriminatório. Reforça a desigualdade. A mulher que aproveita o Dia da Mulher para condenar o Dia da Mulher não quer que o homem aproveite o Dia da Mulher para elogiar a mulher. Deixemos a mulher criticar, no Dia da Mulher, quem utiliza o Dia da Mulher para não a criticar. Deixemos a mulher usar o Dia da Mulher como bastião de uma relevância que a mulher não precisa de ter (pela simples razão de a mulher já ser igual e não precisar de nenhum dia para que essa evidência seja realçada) para ela criticar quem usa o Dia da Mulher como bastião de uma relevância que a mulher não precisa de ter (pela simples razão de a mulher já ser igual e não precisar de nenhum dia para que essa evidência seja realçada). Hoje é o Dia da Mulher. Mas, homens, muita atenção! Vamos defender a igualdade, obedecendo, quietinhos e caladinhos, às ordens da mulher.
não ter medo não existe
Não ter medo não existe. Todos temos medo. Quem foge e quem luta. Quem diz que não tem medo não quer dizer que não tem medo, quer dizer que tem coragem. “Não tenhas medo”, “Por que é que tens medo?”, “Não sejas medricas” são frases de uma narrativa da fraqueza sobre o medo que nos é metida pela goela abaixo desde o berço. Ter medo não é fraqueza. Só é corajoso quem tem noção do perigo que enfrenta e que teme. Não é corajoso quem enfrenta o que não faz mal, o inofensivo. A coragem vem da noção da existência do medo, não da sua negação. Todos temos medo. Sobretudo quem acha que não.
só um bocadinho
Um garoto a curtir Moonspell. Cinco anitos, mais coisa menos coisa, de mini-metaleiro empoleirado aos ombros da mãe. Eu, mais velho um bocadinho, quase nada, fui também aquele pirralho de cabelo em pé e deditos trocados no ar. Foi bom voltar a sentir aquela inocência de quem ouve metal pela primeira vez. Caraças, que maravilha, bateria, guitarra, baixo, teclas, voz, potência, irmandade e delicadeza. Fiquei à beira de chorar mas, como bom metaleiro que sou, chorei mesmo. Só um bocadinho, quase nada.
génio e sombra de génio
Hipólito, Fedra, Teseu, pouco importa. Poderia ser João, Maria, Manuel. Importa a culpa. Só ela, sempre ela, do princípio ao fim da peça, do princípio ao depois do fim das personagens. A culpa assumida por Fedra por estar apaixonada por quem não deveria estar, a culpa atirada a Hipólito por não venerar uma deusa que deveria venerar e por desejar uma humana que nunca desejou e nunca teve, a culpa escondida de Teseu por ter condenado à morte quem não merecia morrer. Fedra escolhe a morte, Hipólito rende-se a ela, Teseu morre deixando-se viver. Há palavras e gestos que não são deste tempo, tal como há génio e sombra de génio que não deveriam existir no mesmo palco. E isso importa, apesar de tudo. E tudo é culpa. Não deixando de ser teatro.
| “Hipólito”, pela Companhia de Teatro de Almada, no Teatro Municipal Joaquim Benite. Texto de Eurípides, encenação de Rogério de Carvalho, interpretação de Carolina Dominguez, Cláudio da Silva, Elsa Valentim, Joana Francampos, Marques Arede, Miguel Eloy, Pedro Fiuza, Sofia Correia e Teresa Gafeira |
palavra bonita dita pela boca
António Costa, rejeitando qualquer conversa com o CHEGA, está a rejeitar qualquer conversa com 385.559 pessoas. Para ele, por pensarem diferente, estas pessoas não existem. Ele não diz que elas têm ideias diferentes – isso ele diz sobre todas as outras que votaram noutros partidos ou que não votaram, de todo. O que ele diz é que esta gente que votou neste não existe. É vazio. É nada. Ele nem considera a hipótese de tentar perceber as razões para esta gente ter as ideias que tem – ou, não as tendo, ter votado em quem votou. Ele, simplesmente, olha para o lado e finge, dizendo, que esta gente não existe. É ele que diz ser o primeiro-ministro de todos os portugueses. É ele que tem o dever de o ser – mesmo daqueles que têm ideias diferentes, por muito abjectas que possam parecer ou ser. António Costa, rejeitando qualquer conversa com o CHEGA, está a rejeitar aquilo que diz defender: a democracia, a igualdade, a liberdade – nada disto pode ser apenas palavra bonita dita pela boca de qualquer um. Tudo isto deve ser dito por inteiro, com toda a definição que tem. Catalogar parte do seu povo como inexistência é catalogar-se como isento de pensamento, de tolerância e de humanidade. Rejeitar quem é como nós – porque somos todos iguais, ou não somos? – é rejeitar-se a si próprio. É assumir uma única inexistência, a sua.
benfica vs. benfica
Se aquele golo tivesse contado, talvez o Benfica tivesse vencido. Mas duvido que tivesse começado a jogar um futebol incrível. O Benfica tem sido prejudicado uma ou outra vez pela arbitragem, mas não me parece que isso tenha assim tanta relevância. A arbitragem é sempre o bode expiatório de qualquer clube que está mal. É a tal necessidade de um vilão. A História explica isso, como diria o filósofo António Costa. E essa explicação vai da realidade à banda desenhada – o Batman não seria tão herói se o Joker não fosse tão vilão. Quando o Benfica não tem hipóteses de ter o Sporting nem o FCPorto como vilões (tendo em conta as distâncias pontual e de futebol praticado), atribui esse papel à arbitragem. Esta atitude de transferir o alvo para outro que não para si é natural no comportamento humano, mas não é uma inevitabilidade. Mas, ao que parece, parte da nação benfiquista acha que sim – ou melhor, não acha, aceita sem pensar em achar o que quer que seja. Mas só aceita porque não pensa, ou porque pensa mal. Porque, na verdade, o vilão do Benfica é o Benfica. E isso, se já custa pensar, custa ainda mais assumir. Mas é a verdade, é o passe a rasgar. E é o único caminho para o crescimento, para o golo.
somos todos chega
Ao longo do ano, somos todos CHEGA: todos criticamos, provocamos, insultamos quem nos governa. Cuspimos frases feitas, sem conteúdo, sem noção e sem saber. Assim que uma pessoa igual a nós faz exactamente o mesmo que nós, mas na televisão, à frente de um partido, com gente aos ombros, nós deixamos de ser CHEGA. O nosso ódio ao CHEGA não vem do que ele diz ou defende. O nosso ódio ao CHEGA vem da nossa parecença com a gente que faz dele o que ele é. Não somos contra ele, somos contra nós. E bem. Mas seria saudável, e inteligente, se tivéssemos coragem para o admitir.
não votar também é votar
Não votar também é votar. Quem não se interessa, quem não quer saber, quem não acredita, quem é contra, toda esta gente que não vota por não querer é gente que diz tanto como a gente que vota. Eu voto. Acho que toda a gente deveria votar. Mas também acho que, se nem toda a gente o faz, que é tanta, e se devemos caminhar para uma sociedade que seja representativa de toda a gente, devemos aceitar quem não se interessa, quem não quer saber, quem não acredita e quem é contra. Que não votar também é votar.