não és tu, sou eu
Não és tu, sou eu. Entendes, mundo? Tudo o que me magoa está cá dentro, não aí fora. Tu não tens nada que ver com isto. Tu existes com as tuas pessoas, as tuas ruas, os teus rios, as tuas auroras boreais, os teus sismos, os teus vírus, por aí fora. Eu é que, por vezes, não sempre, não consigo existir com as pessoas, as ruas, os rios, as auroras boreais, os sismos, os vírus e por aí fora que eu tenho por aqui dentro, que, na verdade, eu sou. Não és tu, mundo. Nada tens que ver com as minhas euforias nem com as minhas quedas para melancolias. Nada, sou eu, está tudo em mim. Tudo o que amo e tudo o que odeio está em mim. E eu preciso de saber lidar com isso, e isso sou eu. Quando digo a alguma pessoa que a amo ou quando mando alguém para o caralho, estou, apenas, a projectar coisas lindas ou merdas que vão cá dentro. Amo o outro, odeio o outro, amo-me, odeio-me. Acho que é assim que funciona. E funciona lindamente quando é o ódio a mandar. A culpa não é dos pretos nem do trânsito, não é dos chineses nem do tempo, a culpa não é de nada nem de ninguém. Sendo, talvez seja nossa, que a inventamos para podermos justificar comportamentos que não têm justificação, e cuja causa não queremos destapar. Não queremos saber o porquê de odiarmos. Nem sequer queremos saber o quê ou quem odiamos. É ódio e pronto, nada mais interessa. O que eu acho, e eu não tenho qualquer autoridade para atribuir valor ao que eu acho, é que nós vivemos para os outros um pouco como espelhos de nós mesmos. E que a sujidade das palavras, os dentes cerrados e a saliva a espumar na boca são meros reflexos do que se passa dentro de cada um de nós. Não és só tu, também sou eu.
da cegueira (da estupidez)
Eu tenho uma almofada. É uma almofada. É mesmo uma almofada. Não há dúvida nenhuma. Vem uma pessoa e diz que aquela almofada não é uma almofada, mas sim uma carrinha de caixa aberta. Atenção, é uma almofada, mas a pessoa diz que é uma carrinha de caixa aberta. Como é que eu convenço a pessoa de que a almofada é uma almofada e não uma carrinha de caixa aberta? Eu mostro-lhe a almofada, a pessoa não é cega, a pessoa vê que é uma almofada, vê que é um objecto fofinho, uma espécie de saco estofado para assento, para encosto da cabeça ou para fins decorativos, é uma almofada, caraças, não há dúvida nenhuma de que é uma almofada. Mas aquela pessoa, vendo uma almofada, diz que é uma carrinha de caixa aberta. Como é que se discute, como é que se debate, como é que se conversa com uma pessoa destas? Pronto, é assim que me sinto sempre que me aparece um idiota xenófobo, homofóbico, racista, machista, anti-máscara (em separado ou acumulando, tanto faz) à frente. Não consigo. É difícil. É impossível debater, discutir, conversar com pessoas que são paredes. Mesmo assim, continuo a achar que é debatendo, discutindo, conversando e, essencialmente, deixando que esta gente debata, discuta e converse para que todas as pessoas que olham para uma almofada e vêem uma almofada saibam quem é esta gente que não é cega, mas que é cega e tenta cegar os outros através da estupidez.
todas as coisas maravilhosas
Vi a minha vida dita por ele. Vi eu e toda a gente, que toda a gente sente o que se disse, se cantou, se ouviu, se chorou. Se não fosse verdade, bonita e feia como deve ser, alegre e triste como se vê, não teria chorado com vontade, e eu chorei, toda a gente chorou. Porquê? E riu, que a vida é bela e tem canções, pessoas aos trambolhões, gelados! Mas chorou, que a vida dela era depressões, pessoa às desilusões por todos os lados. Esta peça – que não é peça, que é teatro e que, por isso, é vida – sou eu, também. Já alguém ponderou a morte? Decidida. Sou forte, por sorte ainda ninguém disse é a vida, morreu. E a felicidade, doutor? Será ela verdade? Nunca lhe tive vontade, só horror, temor, terror, nem amor. Serei alguma vez o que escrevi? Coisas maravilhosas que acho da vida, que vi, toquei, cheirei, comi, mas que, em papel, não existem… Nem sei qual é o meu, nem sei sequer quem sou eu, não quero ser dos que desistem. Não sou. Por isso, vou. E o meu cão também lá estava, centro da vida, vida que escava, e escavei eu, ainda escavo, ao ouvir o Palma e a Regina e tudo o que… Bravo! Bravo! Aplausos de toda a gente a toda a gente que viu a vida dita por ele. Disse a minha, também. Ali, inteiramente sozinha. Sem. Querida, bondosa, moída, chorosa. Que ela não desista, que nela há uma lista com esta peça – que não é peça, que é teatro e que, por isso, é vida -, coisa maravilhosa.
voltar ao que ainda tenho
Voltar a Lisboa, mesmo que por brevidades, é voltar ao que ainda tenho escondido debaixo do tapete das vontades. É dar de caras com fantasmas que ainda existem, dormindo, e, devagarinho, dizer-lhes acordem, acordem, vamos brincar àquele jogo do chorando e rindo, combater memórias como se fosse dança, ir ao chão como nas histórias sem vitórias, sem vingança. Criança que me sinto neste parque infantil do terror, do medo, da culpa, do amor e do ciúme. De tudo o que há de certo e de errado, que este aperto é como lume, e eu queimado. Voltar a Lisboa é ir por um caminho sujo com destino à luz clarinha, ao céu, ao rio quase mar. Mas ainda volto devagarinho, que esta dor ainda é minha, e ainda me custa voltar.
estar longe
Há um grande equívoco nisto do vírus: a promoção do distanciamento social. Um engano. Não é o distanciamento social que devemos incentivar, pedir, desejar até. É o distanciamento físico. Físico. Devemos evitar a aproximação de corpos, sim, não a aproximação de conversas, ideias, discussões, carinhos, preocupações, vontades. Os cartazes de rua e as manchetes de jornal não deveriam obrigar ao afastamento social, mas sim à aproximação social. O afastamento de mãos, de braços, de bocas, sim, tudo bem, que é isso que, de facto, transmite o vírus. O afastamento de tudo o resto que há além disso, não, que é tudo o resto que há além disso que transmite o que somos. Acho mesmo que deveria haver, ao contrário da errada medida que é imposta, um incentivo à aproximação social. Nunca, aliás, foi tão necessário, tão indispensável, tão essencial aproximarmo-nos uns dos outros. Estamos longe, caraças, cada vez mais longe. E claro que não falo da aproximação de peles, que isso é o menos importante quando nos tocamos. Distanciamento físico de dois metros, aceito, distanciamento social de menos dois, a ponto de, não só tocarmos, mas entrarmos no outro, irmos lá dentro, sem tocar, e falar, perguntar, ouvir, acariciar e existir, quero. Aproximemo-nos socialmente, mesmo sem tocar, que o vírus só nos afasta dos corpos, não daquilo que temos dentro, e que nos faz ser. E sonhar.
não consigo a vida
Preciso de ajuda, assim não consigo a vida. Há quase três anos que disse estas palavras, por esta ordem, com esta boca. Preciso de ajuda, assim não consigo a vida. Nem ver, nem ouvir, nem tocar, nem brincar, nem sorrir, nem estar, nem ser. A vida, não conseguia a vida. Ela mesma, eu próprio. A sala de consultório sempre me intimidou um pouco. O silêncio, as estantes carregadas de livros, os cadeirões ao fundo, junto à janela. Pouco a pouco, fui deixando de dar por ela – como se fosse ela o que eu sou. Nela, ou em mim, fui dizendo palavras que eram palavras, crenças e fantasmas. Na penumbra dela, ou na escuridão de mim, dei-me a mão e permiti-me entrar, mexer, escavar, cheirar, tocar, lutar, provar, cuspir, engolir, morder, gritar. Não tem sido uma maravilha, não, mas tem sido uma descoberta, de porta aberta, pela ilha que eu sou, em que me tornei. Não sei por onde vou, não sei para onde vou, sei que vou, isso sei. Mais nada. Tenho, ainda, muita lama nos meus pés, muita merda que me chama e me seduz a ser errado. Mas também acho que tenho, que estranho, coisas bonitas em todo o lado. E é o que me faz continuar, saber que eu posso ser quem quero ser, sabendo, primeiro, o que me há no interior – e o que é isto do querer. Acho que há amor. É só voltar a aprender.
passos em volta
A poesia tem forma. Braços, bocas, pernas, costelas, línguas, pés, cabelos, dentes. A poesia tem forma. E transforma e transgride e transporta a vida para as veias e vozes e vazios de quem a morde, trinca, saboreia e engole. O Herberto Helder fez poesia. O João, o Duarte, o David e a Beatriz deram-lhe forma. Materializaram-na, deram-lhe um corpo que ela usou que era o seu mas que não era. Era dela, claramente. Às escuras, aos saltos, às danças, às merdas puras que têm só quem sente. O João foi riso e verdade. O Duarte foi corpo, arte e loucura. O David foi puta, crueldade. A Beatriz foi, mesmo calada, apenas dançando sem voz, o grito aflitivo do nada, a vida quieta dançada, foi todos nós. Só agora voltei a ter respiração. Sinto que estive morto a viver. Quieto, no meu lugar. Corre-me o coração. A poesia também é ser. A forma é o seu estar.
“Passos em Volta”, encenação de João Garcia Miguel.
dá a patinha
Quando veio, ficou. Pequenino, aos pulos, comigo. Correu, sorriu, brincou, entristeceu, ganiu e agora voou, e eu perdi um amigo. O Freud estava velhinho. Já mal se mexia, gemia, e já não sabia ser cão. No último dia, foi ninho. Foi ele que nos deu carinho, nos olhou devagarinho e nos lambeu o coração. Ele tinha o dele de criança, de puto reguila, velho teimoso. O coração também se cansa. O dele, maior do que a pança, deixou-nos o tempo-lembrança, deixou-nos o rosto chuvoso. Resta a alegria que tinha, que dava aos outros e aos seus. O resto é vida sozinha. Amor, dá a patinha. Senta, deita… adeus.
só de olhos fechados
Deveria haver um Tinder só connosco. Com mais ninguém. Só nós mesmos. Nem outras mulheres, nem outros homens. Só a mulher ou o homem que nós somos, que cada um de nós é. Cada um, por inteiro, embora partido – só está aqui quem está partido – à procura de si mesmo. Não à procura de alguém para uma foda, mas à procura de alguém – que somos nós – para uma conchinha. Seria tudo, e o tudo, pelo pouco que nos temos dado, poderia ser tão pouco como um tanto de um olá, de um sorriso ou de um olhar. Não precisamos de muito mais quando o que nos damos é tão menos. Haveria uma app, igualzinha à outra, mas invertida, mas obrigatória, com pesquisa imediata. A distância máxima seria a mínima, a localização seria aqui, cá dentro. Em loop, apenas nós. André, 35 anos, a 0km daqui. Fotos em tronco nu, fotos com um gato e fotos a realçar os olhos azuis. Mas todas a preto, sem se verem o tronco, o gato nem os olhos. Só faríamos swipe right se estivéssemos dispostos a ver o escuro. Só haveria match se estivéssemos dispostos a ver o escuro além do escuro. Apesar de tudo o que envolve um primeiro encontro – da ilusão ao medo, do prazer à queda. Um blind date de realidade – que só de olhos fechados nos conseguimos olhar, tocar e ser. Com verdade.
o gustavo
Um dos meus melhores amigos fez anos hoje. Vim a casa dele beber cerveja e comer pizza. Vi o Benfica. Falámos da infância e regressei a ela quando, puxado pela lembrança, brinquei com o Gustavo e fui novamente criança. O Gustavo é filho do Cacola, um dos meus melhores amigos, desde os bibes amarelos às barbas brancas que agora temos. E vivemos. Durante tanto tempo que parece perto mas que é afastado. Deitei-me no chão com um Capitão América. O Gustavo tinha, e era, o Homem-Aranha. Tudo real, tudo inventado. Combatemos vilões, salvámos o mundo, e eu recordei corações que tinha lá no fundo.
o esquecimento
Não nos ensinaram o esquecimento. Nem os professores, nem os pais, nem os amores. Só os ais que vamos berrando enquanto a vida nos vai mostrando o que é a vida. Ora coisa lembrada, ora coisa esquecida. E, num instante, durante, somos nada. Esquecemos. Deixamos de lembrar. Queimamos o que aprendemos, sabemos, conhecemos, não por nossa vontade, mas pela triste fatalidade do deixarmos de estar. O meu tio esqueceu. Não sabe quem é ninguém – parece, não sabe quem sou eu – esquece. No lar, refém da cadeira e da vida, já não tem a brincadeira que tinha antes da despedida. Não tem olhar no olhar nem estado na forma de estar. Está assim, parado, pertinho do fim de ter estado. E eu olho para ele, do lado de fora, vejo uma espécie de frio, vejo e não vejo o meu tio, ele está mas já foi embora. O meu tio esqueceu. Não é dele este lamento. Lembra pouco, talvez demasiado, o que viveu, e sofrem outros como eu por não lhes terem ensinado o esquecimento. São lamentos meus, não do meu tio. Digo-lhe adeus do portão. Ele sorriu. Também o meu coração.
sopa
Desde criança que sou fiel ao artigo 1.º da Constituição da República das Crianças, alínea a) que diz que “toda a criança tem o dever humano, cívico e patriótico de odiar sopa”. Agora adulto, embora ainda criança, sou capaz de cometer o (maravilhoso) crime de adorar uma sopa da pedra, mas só. Continuo fiel ao André criança quando era criança. E, nesse tempo, fiel ao manual imaginário, rejeitava qualquer tentativa maternal dessa tortura chamada comer a sopa. Olhava o prato, cheio, sempre cheio, o sacana do prato, e evitava a colher, a de sopa junto ao prato, a de pau junto à mãe. E resmungava. A sopa está muito quente, está muito fria, está muito sopa. E, enquanto ganhava tempo para a fatalidade da ingestão de batata e legumes esmigalhados com água, olhava o admirável voo da mosca que, todas as noites, me sobrevoava a cabeça a gozar comigo ou a incentivar-me ao cumprimento da lei inventada. Eu lá ia perdendo infinitos com asas nos olhos e a minha mãe lá ia perdendo paciência com a colher nas mãos. E, no fim, apesar da minha luta pelo respeito ao mandamento irreal, perdia eu e perdia o prato, que perdia a sopa que lá tinha. E eu ali, derrotado, triste, desolado, mas de punho em riste para a próxima batalha na cozinha.
(eu contei isto tudo à Maria Carvão ® e ela fez esta coisa bonita)
irmão coração
Amanhã vou aprender as letras, tenho medo de não conseguir, dizia eu. Amanhã vou aprender as letras, estou tão entusiasmado, dizia ele. O meu irmão sempre olhou a vida de joelho levantado, pronto a correr com ela – ou contra ela, se fosse preciso. Eu não. Preso ao chão, indeciso, braços fechados e olhar escondido (embora nunca fechado), sempre olhei a vida desconfiado. Mas fui mudando, pouquinho sozinho, mas tanto com ele ao lado. Não deixei de ser o que era no epicentro, mas comecei a ter coragem para ser o que não era e queria ser por dentro. O meu irmão trouxe-me as pernas do sonho, o arranque do desconhecido, a coragem do coração. Eu, sem ele, escondido, continuaria a ser o que era, sonhando, desconhecendo e amando, mas sem o amor – que é o impulso da vida passando – que tenho pelo meu irmão.
é o improviso a acontecer
Lembro-me de ser pequenino e de ter, pequenino, vontade de ser maior, de ter, fazer, olhar, criar amor – qualquer coisa que fizesse os outros felizes por instantes que, nisto da felicidade, os deslizes são constantes e o imprevisto tanto anima como entristece. E eu, desde pequenino, improvisava, e procurava ser acima para ajudar, estar do lado deste não-estado para estar. Sempre tentei ver de fora para ver, atento e espantado com o tempo passado a correr. Ajudando. E acho que tenho ajudado, mas a verdade é que fica tarde e eu vou estando posto de lado. De fora, consigo ver, mas é de dentro que preciso ser, maior. É o improviso a acontecer, amor.
o recreio sempre foi
O recreio sempre foi o lugar dos sonhos. Atrás das casinhas que eram salas de aula, sonhava-se como as crianças devem sonhar, vivendo o que sonham. A minha vida, naquele recreio, foi quase sempre a de camisola dez do Benfica, de Luz cheia até ao terceiro anel e de bolas no ângulo. Agora, estão as bolas no chão e os sonhos não estão. Tomaram lugar as lembranças de quando, mais do que sonhos, éramos crianças.
havia aqui um escorrega
Havia aqui um escorrega gigante que demorava seis meses a subir e cinco segundos a descer, ora sentado ora em pé, a correr, para os mais fortes e corajosos e completamente loucos. Cheguei a ser tudo isso graças a esse topo do mundo feito de ferro. Havia aqui um baloiço onde eu me lançava ao céu de pernas esticadas e a tremer. Havia aqui muros riscados a pedaços de tijolo para o jogo do três em linha. Havia aqui barrocas para os berlindes, os abafadores e as pitoninhas. Havia aqui uma pista de alta tecnologia manual onde se faziam corridas de caricas. Havia aqui bicicletas que subiam e desciam e joelhos que esfolavam e rabos que raspavam na radical descida dos skates. Havia aqui infância pura sem futuros e com cheiro a eucalipto e a leite achocolatado dos Tempos Livres. Havia aqui eu. E ainda há. Nada se perdeu, especialmente tudo o que já não está.
feitos de escuro
Somos seres feitos de escuro. Seres sós. Os tecidos, os órgãos e os sistemas do nosso corpo são apenas coisa irrelevante que nos limita o constante do futuro, não são nós.
parece que a escuridão
Às vezes, parece que a escuridão ganha forma de rosto – como se a emoção fosse o oposto do que se deveria ver, nada, vazio, escuro, ausência, bruma, coisa nenhuma. Mas vejo o rosto que ganha forma na escuridão, não sendo rosto, não sendo. Não. Não é rosto, nem sequer escuridão. É espelho meu, espelho meu, o rosto sou eu, o resto é ilusão.
cão outono
É Verão, e o meu cão Outono. Calor cá fora, e ele, devagarinho, passo a passinho, olha o seu dono com outro olhar. Olha mais perto por estar mais perto de acabar. E lentamente, olha a gente que o sente, que o lembra arrebitado, e ele olha de volta e volta para a volta que o mantém acordado. E eu não cedo perante a tristeza. Tenho medo, mas tenho a certeza da sua felicidade. Também a minha de o lembrar, de o ver olhar apesar dos pesares da idade. É Verão, e o meu cão é Outono. Ão ão, dá a patinha ao dono.
ela à minha espera
Três dias depois, regressei a casa. Não foi tempo nenhum, mas foi tempo suficiente para estar ausente ela à minha espera. Esteve o dia inteiro a pensar na melhor forma de me dizer saudades e de se mostrar contente, feliz, eufórica por me voltar a ver – mesmo que por apenas três dias ausente. Foi buscar os meus dois livros e uma das minhas pulseiras. Foi buscar um boneco do Benfica. Foi buscar o senhor Alfredo, tão importante para mim como para ela, tão família minha como família dela – foi ele, este homem de bigode muito parecido com uma marioneta, que lhe alegrava todas as noites de um ano quando ela era pequenina, quando me ligava em videochamada, não para falar comigo, mas com o senhor Alfredo que, todas as noites de um ano quando ela era pequenina, falava com ela com a inocência de um homem do campo que a fazia rir e estar atenta e rir e perguntar e rir e falar e rir e, acima de tudo, acreditar. Escreveu-me que eu era fixe e escreveu o que o Vitorino lhe disse para mim. Escreveu-me um desenho e escreveu-me um poema. Recebeu-me assim, com a vontade mais pura e inocente de me agradar. E eu, chegando, deixei-me abraçar. Mas, acima de tudo, acreditar.
levado pela corrente
Senti-me mais perto quando me afastei. Custou o frio da água, mas nada mais. Olhei o longe e mergulhei, como se tivesse entrado na primeira dimensão da nossa vida, na placenta da mãe, desta vez, porém, na placenta de mim mesmo. Nadei até onde consegui e parei. Emergi. Fiz-me pesado para cair – o peso leva-me ao fundo – para ver se tinha pé. Deixei-me ir, queria tocar o mundo, mas vi que não era no fundo que ele estava. Deixei-me levar, fosse o que fosse, e vi-me a boiar. Boiava, e o mar salgado fez-se doce e eu fiz-me parte do mar. Senti-me mais perto quando me afastei. Mais perto de mim, afastado da gente. Mergulhei sem um fim, e deixei-me assim, levado pela corrente.
solidão, uma proposta curricular
A solidão devia ser ensinada na escola. Devia ser uma disciplina, mas das obrigatórias, como Português e Matemática. Talvez até mais obrigatória do que essas. Não, de certeza mais obrigatória do que essas. Antes da primeira letra ou do primeiro número, já o nosso peito fez as contas ao aeiou da solidão. E ela vai-nos existindo ao longo da vida, especialmente em épocas de recurso. Mas sem qualquer ensinamento. Sem nenhum dicionário nem tabuada do ratinho que nos ajude a lidar com ela – uma espécie de tabuada do um, na sua primeira multiplicação, sempre um vezes um, até decorarmos que, de facto, um vez um é mesmo um e que tudo o resto é elevado a ilusão.
A solidão devia ser ensinada na escola. Um módulo em cada semestre: Solidão – Introdução ao Estar Sozinho; Solidão – Ser Sozinho Não é Não Ser; Solidão – Estudo do Meio; Física e Química da Solidão; Educação Visual para Dentro; Educação Física da Memória; Língua Estrangeira I, II ou III (Loneliness, Soledad ou Einsamkeit), e por aí fora. Estas disciplinas seriam leccionadas em pouquíssimo tempo e com um único aluno por turma, no meio de uma única sala, para o aluno se habituar rapidamente ao mercado de trabalho. E sem teoria que, na solidão, a teoria já é prática. Os exames seriam no final de cada aula, sem consulta nem acesso a calculadora (para evitar ser acompanhado por cábulas) e não assim de repente, como nos acontecem ao longo da existência, logo depois de uma qualquer maravilha no recreio. Não devia ser assim. É que nem sequer somos avisados com uma semana de antecedência. Hoje há exame, André. Mas eu nem sequer estudei. Tens ali aquela mesa no meio da sala. Mas… e quanto tempo tenho? O tempo que tu quiseres. A princípio, pode parecer que vai durar uma eternidade mas, se te esforçares, pode ser que dure menos, meia eternidade, vá. E lá vai o aluno, eu, nós, para aquela cadeira sozinha em frente à mesa sozinha numa sala sozinha com um exame cheio de respostas de escolha múltipla, muitas de escolha nenhuma, e nenhuma certa.
Precisamos aprender a solidão. Mesmo que demoremos a outra metade da eternidade a preencher o enunciado da folha de exame – a tentar lembrarmo-nos de quem somos.
o peso do medo
Serei a única pessoa com medo? com dúvidas do que faz e do que pensa e do que sente e do que tudo? A única a tomar anti-depressivos, três por dia, por vezes quatro e cinco, e a ter consultas de psicoterapia e psiquiatria para tentar lidar com este escuro? a acordar com manadas de angústia e incerteza no peito todo? a chorar tantas vezes por medo de errar, de ter errado, de não ter força nem esperança nem casa nem família nem filhos nem dinheiro nem sucesso nem colo nem amor nem paz nem ninho? a ter fobia a multidões e atracção por gentes sozinhas que mais sozinhas a deixam? a sentir-se culpada por pouca ou nenhuma ou partilhada culpa que tenha havido em algum momento em algum lugar? a culpar os pensamentos? a desculpar a culpa? a preocupar-se com o que pensam os outros de si, do que faz, do que veste, do que sente, do que beija? a não conseguir dormir por culpa dos fantasmas cá de dentro? a rir para os muitos e a chorar aos muitos só para si só para não dar parte fraca porque a parte fraca é forte forte forte como a certeza de que, um dia, qualquer dia será morte? a precisar constantemente de aprovação externa porque a interna é um grande xis vermelho carregado pela ausência de confiança? a lembrar o passado só com a inglória e dolorosa e vã vontade de o mudar? a sentir-se irrelevante no viciado e sujo curso do mundo? a ter tanto aos olhos dos outros sem razão para sentir isto? O que é isto? a ter ataques de pânico pelo sofrimento do outro e pela expectativa do sofrimento do outro outro que sou eu? a ter medo de falhar a própria vida?
o fernando
Hoje, reencontrei o Fernando. O Fernando foi meu treinador no clube do meu coração, e é no meu coração que está o Fernando. Eu era o número 7, o médio centro criativo, o pacemaker (o mesmo que playmaker mas na linguagem especializada do Mister), o marcador de cantos, o distribuidor de jogo, o médio que fazia o bico do triângulo quando jogava o Edi e o Caldeira. Durante cinco épocas, de iniciados a juniores, o Fernando foi mais do que meu treinador. Foi meu líder, foi meu companheiro, foi meu amigo. E nunca foi o que foi porque me punha a titular ou porque me dava a responsabilidade dos penáltis, dos cantos e de falar no primeiro treino depois do jogo – o futebol, na verdade, nunca foi o mais importante. O Fernando foi o que foi e o que ainda é por ter sido um dos grandes pilares da minha vida. Foi o meu professor da bola, ensinando-me bem mais de vida do que de escola, bem mais de amizade do que de bola. Tanto recebi raspanetes como abraços, pré-épocas loucas nas dunas da praia da Vieira como jantaradas de comer e chorar a rir. Tanta coisa boa que lá vai. Tanta coisa boa que me fez do Fernando uma espécie de segundo pai. Não é exagero nenhum o que escrevo – muito do que sou é a ele que eu devo. O Fernando é, acima de qualquer táctica, um homem bom, com coração escondido atrás da barba e do boné que lhe escondem a criança que ainda é. O Fernando fez de mim um homem. E de tantos que nunca deixou para trás. Nunca. Levantou-os, tantas vezes do seu próprio bolso e todas as vezes do seu próprio amor. Hoje, reencontrei o Fernando. Quase chorou por me voltar a ver e me saber bem. Quase chorei também, vendo, ouvindo, lembrando – uma espécie de golo do coração. E é no meu coração que está o Fernando.
a minha prima clarinha
A minha prima Clarinha tem um escurinho parecido com o meu. Lá no seu peito, como cá no meu, há trovões leões canhões que despertam apertam inquietam o que há. Pequenina, também tem vontade de rugir gritar fugir chorar. E ruge grita foge e chora – epicentro. E tudo treme lá fora, lá dentro. Há dias, tremia eu por inteiro, quando a minha prima Clarinha me tirou do escurinho quando me disse que também o tinha, que também o via. Eu falei-lhe do meu, como se ela não fosse uma criança, que é e não é por sentir que sente coisas que não devia, nem devia, ninguém devia, mas sente tanta gente e tanta gente mente. E tentámos enganar o escurinho com palavras e números. Ela ensinou-me a fazer contas de dividir e conversões. Eu tracinhos e um verso. E acalmaram-se as convulsões – tornaram-se então coisa pouca. Iluminou-se o universo. Há palavras que nos beijam como se tivessem boca.
não tenho amigos brancos
Eu tenho amigos pretos, mas não tenho amigos brancos. Os meus amigos pretos são amigos pretos. Os meus outros amigos são só amigos. Não lhes dou cor porque nunca lhes dei, porque nunca precisei de lhes dar cor, porque eram da minha cor. É assim que somos, mas não é assim que os nossos amigos são – é assim que os pintamos. Culpa da sociedade, da cultura, da educação, do que seja, de tudo um pouco, que se entranha em nós em pequenos e não se estranha em nós em adultos quando cuspimos cores, por muito que seja sem querer, sem pensar. ⠀
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Não sou eu, mas também sou. Os meus amigos são os meus amigos, quer sejam brancos, pretos, carecas ou com nariz. Não são os meus amigos brancos, os meus amigos pretos, os meus amigos carecas nem os meus amigos com nariz. São os meus amigos. Mas há quem tenha amigos pretos e, tendo-os, é porque tem mais a cor do que a amizade, porque tem mais o preconceito do que a verdade.⠀
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Não somos todos, mas somos. Por muito que custe admitir, custa mais sentir na pele a cor da pele. Eu não sinto porque sou branco, porque tenho a cor que a sociedade, a cultura, a educação nos diz que é a certa, e que é a cor a que, por norma, ninguém aperta o pescoço, a cor que não vai até ao osso até sangrar até morrer. Sem ar. Porque nunca fui discriminado, porque nunca fui insultado, porque nunca fui morto por ter esta cor que, sendo branca, sendo diferente de todas as outras, é igualzinha a todas as outras que vestem os corações de quem anda, canta, chora, ri, falha, conquista, come, dorme, pensa, sonha e ama como eu, como nós.⠀
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Não sou eu, mas também sou. Somos todos. E, para sermos um e todos como devemos ser, precisamos de pensar antes de ver. Combater. Enquanto ainda nos deixarem respirar.
de lá voltar
Não são saudades de ser criança, são saudades de lá voltar, ao sítio que se era. Só para saber como se faz, como se brinca, como se ri, como se sente, como se confia. Só para isso. Seria breve, que a vida é breve, e bela também, assim, mas seria, embora breve, embora bela, seria, com fim, para voltar. Iria lá longe, lá dentro, bem debaixo das camadas do medo que a vida trouxe, só para saber como se faz, como se era, como se é, como essência. Só para saber disto que sou quando era tudo em bruto, sem metades. Não são saudades de ser criança, são vontades de ser esperança em permanência. E não um conjunto de camadas que, de tantos medos, são tantos nadas.
parabéns, gaiato
O meu avô faria hoje 95 anos. Nunca lá chegarei. Ele chegou perto porque, tendo quase 95 anos, não tinha mais de 10. O meu avô, enquanto meu avô, e não enquanto severo pai do meu pai e dos meus tios, sempre foi uma criança, um gaiato rebelde que nos dava calduços à sucapa e não aceitava uma derrota na brincadeira das damas, das cartas ou do dominó. Levava a brincadeira a sério – como todas as crianças levam – e amuava quando um dos netos ou, em tantos casos, todos os netos lhe davam uma cabazada histórica de meia-noite. O meu avô de 10 anos, com quase 95, fazia corridas com os netos e com os bisnetos. E ganhava. E fazia pirraça a quem perdia. O meu avô criança, já velhote, tinha um olhinho azul que brilhava sempre que lembrava uma ou outra catraia que tinha catrapiscado há mais de 70 anos. O meu avô pequenino, já grande, tinha um sorriso malandro sempre que lhe oferecíamos, assim às escondidas, um xiripiti depois de almoço. O meu avô faria hoje 95 anos. Mas é a criança que ainda me anda para aqui a correr na memória. O gaiato do meu avô…
a minha madrinha
Desde aquele dia que o meu maior objectivo de vida mudou. Desde aquele dia que, em primeiro lugar, não está o meu sucesso como artista, a minha felicidade como homem ou a minha bebedeira no Marquês todos os anos até ao fim dos meus tempos. Desde aquele dia que o meu maior objectivo de vida é fazê-la rir. Tudo o resto vem depois. Se lhe provocar um riso, um simples esgar de felicidade que lhe aliene do espírito do lugar onde o espírito está, fico feliz. Sempre que falo com ela, sinto o ar pesado pela presença de quem ela já não tem, mais pesado comigo pelas parecenças que eu e ele tínhamos. Sempre que falo com ela, sei que ela fala, também, com ele. Sempre que falo com ela, sei que falo, também, em nome e em voz dele. Aquele dia foi o dia em que ele morreu. Ele é, porque nunca nenhum deixa de ser, o filho dela. Ela é a minha madrinha. A minha madrinha é, por tudo o que nunca conseguirei dizer, minha mãe também. Eu não sou o filho, mas sim o palerma que a tenta trazer à tona do mundo através de um dos mais primários reflexos humanos, o riso. Isso não faz de mim absolutamente nada, mas faz dela uma mãe que ri. Que é assim que todas as mães deveriam ser. E esta minha, apesar de longe e apesar de não ser de verdade, é a mãe mais bonita que eu – que o meu primo – poderia desejar.
na comuna, aconteci
Fui eu, fui outro, fui outros, aprendi, sorri, chorei, sofri, agradeci, quase morri de vergonha, quase me vim de alegria, abracei, fui abraçado, gritei, cantei, caí, amei, fui amado, vi gente que me amava, amei gente que me via, fui às nuvens, fui à lama, fingi e fui sincero, tive medo e tive medo e tive medo e tive medo e superei o medo e vi luz depois do escuro e vi tudo e ganhei tudo e perdi tudo e senti tudo. Aqui, na Comuna, aconteci. Aqui, na Comuna, fui vida. No palco como aqui deste lado em que me encontro agora. Atrás das cortinas. Com tudo e tanto, apesar de tudo e tanto, e dói e dói e dói e amo e vivo. Vivo vida que, para mim, é palco. E vivo palco que, sendo vida, é este. O da Comuna. Um aniversário que também é meu. E nunca viverei o suficiente para o agradecer. Por muito que doa. Foda-se, e dói.
ao fundo, os tambores
Já não saía de casa há 14 dias. Finalmente, estava a ver que nunca mais. Mas vi, e nunca mais. O entusiasmo da saída deu lugar ao medo da saída. Já não sabia o que era a rua, receava ter desaprendido de caminhar e receava ter receio das pessoas. Tentei não respirar muito, ele pode andar no ar, não falar muito, ele pode ouvir, não fazer muito, ele pode estar. Sinto o corpo fechado em si mesmo, em mim mesmo, contraído, rijo, pequeno. Sou pequeno e tenho medo. Ao fundo, os tambores, ao perto, os pesados e graves e longos rasgos de violoncelos, como num filme. Tenho medo, quero voltar para casa. Quero voltar para a minha prisão de que tanto queria fugir. Uma espécie de Síndrome de Estocolmo puxa-me para dentro, para fora dali, para casa, para junto do meu agressor de quatro paredes e uma porta. Trancada, como a minha liberdade. Volto a respirar muito, fundo, dentro. De casa.
na linha da frente
Há várias formas de lutar. A minha, neste momento, nesta guerra, é cá dentro, longe das pessoas. A da minha mãe, neste momento, nesta guerra, é lá fora, perto das pessoas. Sempre fomos muito diferentes, mas iguaizinhos. Mas, hoje, não sou eu, é ela. A minha mãe trabalha na área da saúde. Está, portanto, na linha da frente do combate ao inimigo. Protegida com máscara, regras e fé, mas desprotegida, como estamos todos, um bom bocado mais do que todos, na verdade. A minha mãe, que não é médica nem enfermeira, tem a função (e o dom) de ouvir, acolher e encaminhar. Recebe as crianças e os velhos, as queixas e os medos, os murmúrios e os gritos. A minha mãe não desiste nem deserta. Está e vai continuar a estar lá na frente até isto acabar, mesmo que isto não acabe nunca. Ela é assim, teimosa na bondade. A minha mãe, por ser minha mãe, está mais desprotegida do que todos. É a minha mãe, os outros todos são apenas os outros todos. Eu sou os outros todos. E a minha luta não é luta nenhuma quando luta a minha mãe. Só quero que isto acabe para ela voltar. Há mais de demasiado tempo que não a abraço. Há várias formas de abraçar.
somos todos
E eu que pensava que o mundo não me colocaria à prova além das banalidades que me foi apresentando ao longo da vida, como os desgostos amorosos, as mortes de familiares e amigos ou as derrotas do Benfica. Mais coisa, menos coisa, mais dor, menos dor, seriam coisas que acabariam por surgir de forma inevitável na minha vida, sabia que sim, sabia que as iria apanhar a qualquer momento, estava, de certa forma, preparado para elas. Mas esta coisa que agora apanhei pela frente é coisa que não vinha em nenhuma previsão, até porque não sei que coisa é, como é, de onde vem nem como combater. É o desconhecido que bate à porta e entra sem eu a abrir. A porta está trancada, como as portas de toda a gente, mas o desconhecido bate à minha e bate a todas, e entra, e fica aqui a pairar nas nossas casas, nas nossas roupas, nas nossas cabeças. E não fazemos a mínima ideia do que seja. Não é nenhum ultramar – que eu não vivi, não é nenhuma fome – que eu não senti, não é nenhuma doença – que eu não tive. Não. E o sofrimento não é o mesmo. É outro. É outra coisa. E digo isto sentado no sofá e não entrincheirado no meio do mato com uma g3 e o cheiro a morte, com mesa farta e não com uma sardinha para cinco, saudável e não numa cama do IPO com uma agulha a injectar-me químicos na veia. Eu sei. Estou em casa, confortável, com comida, saúde, tecto, cama, amor, carinho, playstation e vinho. Nada me coloca na mesma situação dos meus pais quando tinham fome, dos meus tios quando foram à guerra nem de tanta gente que tem um cabrão de um tumor para destruir. Coloca-me no desconhecido, à prova de mim mesmo. Sou eu o mundo. Somos todos.
uma luta no escuro
Uma luta no escuro. Luzes apagadas, olhos vendados. O inimigo está, mas não o vemos. Não lhe sentimos o cheiro, sequer. Mas está. E levamos golpes vindos não sabemos de onde. Não lhe sabemos a forma nem o tamanho. Não lhe conhecemos os truques nem as fraquezas. Estamos às escuras, em constante estado de alerta perante tudo, até mesmo o nada. É a angústia de não saber, é a ansiedade de sofrer. É respirar desconfiando do futuro. É mais do que o medo de combater. É o medo do escuro.
mais forte do que via
Era o dia do funeral da minha avó quando vi, pela primeira vez, o meu pai chorar. Enfraqueci porque vi, ali, em estreia absoluta na sala da minha existência, o meu super herói ficar sem poderes. Não estava à espera. Nem sequer pensava ser possível. Mas foi. Ao mesmo tempo, senti que o meu pai não controlava tudo e que era humano. Desde esse dia que o vejo de forma diferente. Mais forte do que via, enquanto super herói. Mais humano. Ele não ficou sem poderes. Eu pensava que não mas, hoje, sei que chorar, que é sentir, é um super poder. Dos humanos. O maior.
já éramos sozinhos
Nós não temos vontade de estar com os outros. Nós temos é medo de estar sozinhos. Os outros, na verdade, na crua e triste verdade, já pouco existiam para nós. Apenas estavam, apenas faziam figura de corpo presente na nossa necessidade primária de aconchego e aprovação. Já éramos sozinhos, mas não estávamos sozinhos. Os outros davam-nos essa ilusão de companhia. Eram eles, não éramos nós. Não precisávamos de nos olharmos dentro para ver quem realmente éramos, somos, virtudes, belezas, maravilhas, mas defeitos, rugas, medos, traumas, guerras e lixo, também. Agora, que nos obrigam à clausura, fechamos a porta, abrimos os olhos e só estamos nós. E só somos nós. E estar, e ser, connosco, dá medo. Não são os outros, somos nós.
perto, longe
Nós já estávamos isolados. Colados aos ecrãs, fechados em avatares, muralhados por um individualismo egocêntrico. Nós já evitávamos as pessoas de carne e osso sem nickname. Nós já tínhamos substituído o toque pelo touch, o beijo pelo like e o abraço pelo scroll. Já não havia convívio, havia scroll. Já não havia gosto de ti, havia swipe right. Já não havia ajuda, havia hashtags. Hoje, há um olá à beira de ser trocado por um adeus. Nós já estávamos isolados. Só não queríamos saber. Trancados em nós mesmos, longe dos outros.
uma só criatura
Um único homem, uma só criatura, transmitiu um vírus que, em 102 dias (1 Dezembro 2019 – 12 Março 2020), atingiu 130.164 pessoas, matando 4.754. Tudo começou num único homem, numa só criatura. Mais do que qualquer outra análise que possamos fazer, este contágio galopante mostra-nos a influência que cada ser individual tem em milhares de milhões. Um, em 102 dias, contagiou 130.164 pessoas. Um, sozinho, fez estremecer o planeta, fechar fronteiras, monitorizar governos, segregar pessoas, amedrontar consciências, trancar portas, esvaziar esperanças. A influência de um único homem, a consequência da acção de uma só criatura, na vida do mundo inteiro. Eu, tu, que somos um único homem, uma só criatura, temos o poder de atingir e condicionar o comportamento de 7 mil milhões de pessoas. É assustador. Eu, tu, somos a borboleta que bate asas na China e causa uma tragédia no mundo inteiro. É aterrador. Desta vez, foi o vírus errado, o Covid19. Imagina quando for amor. É possível.
a minha luta
É aqui dentro que estou. Desde pequenino, talvez desde o parto, que esta é a casa que me existe nas entranhas de todos os sítios vitais do meu corpo: da mente, do coração, dos pulmões, do estômago, das pernas, das mãos, dos olhos, da placenta. Raras vezes saí, muitas vezes tentei sair, bati à porta, bati na porta, abri a porta e fechei a porta. A porta abriu-se, partiu-se, fechou-se, sem qualquer vontade própria, fui eu que a abri, que a parti, que a fechei. E sou eu que continuo a fazer tudo isso a uma porta de madeira velha de uma casa de tijolo e cimento e crenças. Por medo de sair, por medo de não voltar a entrar, por medo de decidir, não decido e não faço nada, além de abrir a porta, partir a porta e fechar a porta. Fico dentro. A minha luta tem sido esta, sair. Mesmo com medo de tudo o que possa estar além-fora desta porta. Dentro de outra casa qualquer.
ali ao meu lado
Faz um ano que foi o meu avô, que deixei de o ter, que deixei de o ver, que deixei de o deixar sentar-se ao meu lado a beber um xiripiti e a piscar-me o olho e a sorrir-me o rosto e a fazer-me sentir feliz por ele estar a fazer tudo aquilo ali ao meu lado, o meu avô, o único avô que me restava. Há um ano que me resta a lembrança deste homem que sempre sendo velho, foi sempre criança.
não foram monstros
Não foram monstros, foram pessoas como nós, iguaizinhas a nós, que estiveram de um lado e do outro, que torturaram e que sofreram, que mandaram e que obedeceram, que mataram e que morreram. Tinham cabeça, troncos, braços, pernas, coração, fígado, pulmões, pele, músculos, nervos, água, oxigénio, hidrogénio, nitrogénio e carbono. Seres humanos, de um lado e de outro. Nazis e judeus, nazis e ciganos, nazis e homossexuais, nazis e deficientes. Nazis e todos os outros. Todos os outros e nazis. Seres humanos, não monstros. Não seres de outro mundo, inumanos, Pessoas como nós, iguaizinhas a nós. Faz hoje 75 anos que o campo de Auschwitz foi libertado. Não foi assim há tanto tempo. Não está assim tão longe. Está sempre na iminência do retorno pelo simples facto de continuar a existir a única causa do horror: seres humanos, pessoas como nós, iguaizinhas a nós.
manhã
Não é por ser domingo. É por ser manhã. Poderia ser qualquer outro dia, segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábado ou infinito, que seria sempre por ser manhã. E manhã é sempre recomeço, e recomeço é sempre alerta, e alerta é sempre cavalos a galopar no peito. É o recomeço do tic-tac tic-tac tic-tac acelerado do tempo, é o alerta do pensamento atrás de pensamento atrás de pensamento atrás de pensamento, são os cavalos da luta, da falha e do fracasso. Não é por ser domingo. É por ser, simplesmente. Poderia ser qualquer outra coisa. Seria sempre.
feito até ao fim
Perfeito, em latim, significa “feito até ao fim”. Eu não sou perfeito, tenho muito por ser acabado, ainda. Na verdade, nem eu nem ninguém nem nada seremos, alguma vez acabados, feitos até ao fim. Nada está concluído, tudo está em mudança. Nem as almas, nem as pedras, nem as nuvens, nem os cadáveres. Tudo muda, tudo mexe, tudo está em transformação para outra coisa que não a que é, nada está feito até ao fim, fechado, embrulhado, ensacado e pronto a enviar para o código postal da Plenitude. Morada não encontrada, remeter ao destinatário. André Pereira, Rua Incompleta, 1500-370 Coração.
1984
“Era um dia claro e frio de Abril, nos relógios batiam as treze. Winston Smith, queixo aninhado no peito, num esforço para se proteger do malvado vento, esgueirou-se depressa por entre as portas de vidro das Mansões Vitória, não tão depressa, porém, que não encontrasse com ele um turbilhão de poeira arenosa”.
George Orwell
o peso da vida
Não é o meu peso. É o peso da vida comigo nela. Eu sou leve como um ser humano minúsculo neste mundo ínfimo neste universo infinito deve ser. Mas, perante a vida, perante a vida real, ganho um peso maciço que não é o meu. É o peso da vida, que é o peso das responsabilidades, o peso das decisões, o peso dos medos, o peso dos outros. E todos estes pesos, que não são meus, que são da vida, toldam-me os movimentos, amarram-me os braços e, tantas vezes, os desejos.
O peso da vida é-nos mais pesado conforme vamos crescendo, creio eu. Quando eu era criança, o peso da minha vida resumia-se ao medo da cama e à ansiedade para completar a caderneta do Mundial 94. Hoje, o peso da vida é-me pesado no trabalho, no amor, nos sonhos, na solidão e no futuro. No salário, nas contas para pagar ao final do mês, na formação de família, na mudança de casa, na criação de um espectáculo, na escrita de um livro, na reedição de outro, no aperfeiçoamento de um projecto, na urgência do tempo, na certeza de estar tudo certo.
Hoje, mais do que em qualquer altura da minha vida, creio eu, o peso da vida é-me asfixiante. E eu, sendo leve, voo, pesado, para a terapia, para o yoga, para apps de meditação, para o escitalopram e até para a astrologia. Só queria voar para mim mesmo, que é lá que está o que realmente importa, leve.
cem anos de solidão
“Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencionálas se precisava apontar com o dedo”.
Gabriel García Márquez
ta, ma, sa
Caralho ta foda, Caralhos ma fodam, Que sa foda. Quando estamos irritados, falamos mal, embora bem, português. Nunca dizemos Caralho te foda, Caralhos me fodam nem Que se foda. Dizer bem o se, o te e o me, nestes casos, seria desrespeitar a irritação que sentimos. E não é certo desrespeitar o que quer que seja. Falar mal, nestes casos, é falar bem. Está gramaticalmente errado? Que sa foda.
não sei quando nasci
Não sei quando nasci. Fui parido no dia 7 de Janeiro de 1985, mas acho que ainda demorei uns bons anos a nascer. Não sei quantos. Não sei muita coisa. Especialmente, não sei aquilo que sei. Duvido do que sei, quero eu dizer. E também duvido de saber.
A minha mãe está amarrada a mim desde que me desamarrei dela. E isso tem tanto de bom, como o cuidado e o mimo, como de mau, como o cuidado e o mimo. A minha mãe sente e chora antes sequer de eu sentir e chorar, e sente mais e chora mais mesmo depois de eu ter sentido muito e chorado muito. O meu pai é um pilar com sentimentos mais quietos e disciplinados. O meu pai também sente e também chora, mas o que sente só diz às vezes e o que chora não mostra. O meu irmão é o meu inverso e é por isso que eu gosto tanto dele. Mais novo, é ele quem manda e quem me ensina, é ele o racional e o pragmático. O que me explica nas calmas e o que me agarra pelos colarinhos, se for preciso. Eu sou o puto emocional que chora, escreve e faz teatros. O palerma que já tinha idade para ter juízo. Mais ao largo, tenho outra gente que me quer bem e que, tantas vezes, ignoro, algumas vezes, sem querer.
Quero sempre mais do que tenho e mais do que sou, tenho ânsias e sou medricas. Amo em exagero e odeio em fúria, tanto estou nas nuvens como na lama. Tenho um horror pavoroso à morte e uma ansiedade assustadora ao dia. Não sei viver o presente e apetece-me, algumas vezes, não viver de todo. Mas finjo bem, parecendo um tipo calmo, alegre e decidido. Sou, algumas vezes, feliz, culpa, quase sempre, da arte e de um ou outro sorriso matinal. Não creio em nada, odeio o ginásio e o meu prato preferido é bolacha maria com manteiga. O meu terapeuta diz que escolher é excluir e eu dou por mim sem escolher, excluindo.
Tenho alguma esperança nas merdas, apesar de tudo. E, contra o que penso, sinto que há coisas boas por nascer. Hoje, faço 35 anos e, na verdade, ainda não sei se nasci.
josé carlos
, com as mãos nos bolsos e os pés em todo o lado, José Carlos desconcertava os nervos dos outros. Mas já era normal. José Carlos é que não era. Ou talvez fosse, não se sabe, é impossível saber-se. Era visto como o maluquinho da aldeia, e ganhou esse estatuto pelo simples facto de fazer as coisas de forma diferente do resto da gente. Muito diferente. Sentia uma adoração imensa por Afonso, uma adoração de amigo impossível de descrever, uma adoração de sangue do mesmo sangue, uma adoração de carne da mesma carne. Para isso, bastou não ser desprezado por Afonso, bastou que Afonso fosse o único a falar com ele sem se preocupar com o que as outras pessoas fossem pensar, fosse o único a brincar com ele sem qualquer tipo de gozo mal-intencionado, fosse o único a ouvi-lo quando ele precisava de falar, fosse o único a dar-lhe de comer, de beber e de vestir sem uma única réstia de caridadezinha achada superior, fosse o único a ser amigo dele, amigo mesmo amigo. O único. O seu nome revelava a sua maior anormalidade, a tendência para saber todos os poemas do poeta. De cor. Para ele, era sempre tarde, tão tarde, que a boca nunca tardava a dizer o que sentia, e o que sentia, dava-lhe um ar de um bando de pardal à solta, o puto, o puto. Já não era novo, mas a idade não era para ali chamada. Falava sempre em poesia, para este, para aquele e para todos os que não existiam. Inventava mundos e universos, via coisas e não via outras. Dançava nas ruas, corria que nem um louco, chorava que não era pouco. Ajoelhava-se perante qualquer mulher e dizia, meu amor, meu amor, meu nó de sofrimento, minha voz à procura do seu próprio lamento. E corria, corria, como um cavalo à solta, com um travo de sabor a laranja amarga e doce na mente, e uma coragem imensa de correr contra a ternura no corpo. Estava vestido com roupas que não lembravam ao diabo. Uma camisa de um naipe, as calças de outro. A roupa não jogava a bota com a perdigota. Mas ele pouco se importava. O mundo era-lhe imenso e ele era feliz assim. Feliz na sua tristeza tamanha de não pertencer àquele lugar, mas de não haver outro a que ele pertencesse tão bem como àquele. Tinha o seu mundo, diziam que ele era chalupa, maluquinho, louco, estroina, palerma. Diziam tudo mas, na verdade, pouco se sabia. Ele era isto, ele era aquilo. Ele era tudo o que diziam, por inveja ou negação, cabeçudo, dromedário, fogueira de exibição, teorema, corolário, poema de mão em mão, lãzudo, publicitário, malabarista, cabrão. Era tudo o que diziam, poeta castrado não. Apenas louco,
lágrima | romance – 2015
origens
Hoje, fui às origens, ao alto da serra com cheiro a verde e a frio. Antes do almoço, a tasca do senhor Zé não tinha ninguém. Entrou o meu primo, entrei eu, entrou o João, a Beatriz e a Clara. Tantos e o senhor Zé e a sua mulher atrás do balcão. Minis e martinis. Ela fugiu mal viu a máquina fotográfica, ele ficou sem medo, embora a custo para se manter em pé. Conversas da terra e de quem éramos, de onde, netos de quem, do Álvaro, dissemos nós. O Álvaro… fomos a tantos bailes… disse ele. E contou, e ouvimos. E entrou mais gente que sorriu e ajudou a servir e a sorrir também. Tasca velha, com calendários da Nossa Senhora e da Super Bock, paredes de cimento e trabalho duro nas mãos. Fim de manhã nas origens no alto da serra, onde o meu avô falou pela voz amável e clarinha do senhor Zé.