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bloco de notas
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a repetição das coisas boas

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Foi mais do mesmo. E ainda bem, que a repetição das coisas boas faz bem e quase ninguém as faz – mesmo não sendo exactamente repetição. Cada palavra e cada gesto são improvisação, mas tudo é feito com o talento que se repete em cada palco onde eles estão. Eles são o César, o Carlos e o Gustavo. Com eles, o Guilherme, o Jaume e o Nuno. Todos são tudo o que um espectáculo deve ser: arte. E, apesar do espalhafato de caixas e luzes, o que há em palco é apenas vazio, invenção, regresso à infância pelo caminho mais simples e mais bonito, o da imaginação. Agora ele era um pescador, e há barco e há mar. Agora ele era uma beata, e há deus e há sacristia. Agora ele era um cão, e há cauda e há chão. E, sendo tudo o que imaginam, havendo tudo o que não existe, levam a gente dali para fora para um lugar que, de tão alegre, chega a roçar o triste sem chegar a ser tristeza. É uma espécie de beleza melancólica que, de tanto nos fazer rir, nos aproxima do que somos: crianças com o talento mágico de ver quem não está e o que não há. E isso faz-nos sentir. Não apenas rir.

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o lugar onde não nasci

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Não nasci nos Marrazes. Os meus pais não nasceram nos Marrazes. O meu irmão também não. Ninguém da minha família. Mas não me sinto de outro lugar. Sendo de algum, sou deste. Porque este lugar recebeu-me, deu-me casa, deu-me amigos e deu-me clube. O meu clube deu-me escola. O meu clube é muito mais do que duas balizas e uma bola. O meu clube é ir sempre, esteja a torrar ou a chover, é saber ganhar e aprender – embora com forte resistência – a perder, é entrar a pés juntos quando tem de ser. E pouco disto tem que ver com futebol. Não nasci nos Marrazes. Mas não me vejo noutro lugar que não no círculo central do velho pelado, número 7 nas costas e corvo coladinho ao lado esquerdo do peito. O meu clube faz hoje anos. Eu, não fazendo, mas sendo quem sou graças a ele, faço também.

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clareza: o falhanço

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Julgo sempre que falhei. E, sim, talvez tenha falhado. Não deveria ter dito, ter feito nem ter estado. E o efeito de tudo isso é este julgamento constante onde estou sozinho e sou bastante. Tenho este compromisso de desilusão e balanço entre a dúvida e a certeza do que aconteceu. Mas sempre com esta clareza: o falhanço sou eu.

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sou ironia (nada)

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Sou uma pessoa muito humana, amiga do seu amigo, que está de bem com toda a gente. (menos consigo) Sou muito humilde e tenho a mania da perfeição. Estou sempre contigo. (comigo é que não) Sou muito frontal, sou dono de mim. Sou apaixonado pela vida. (embora mais pelo seu fim) Sou a minha melhor versão, a minha arma é o sorriso. (sou vítima do que quero e não do que preciso) Só me atrevo a escrever aquilo que não sou. Quando escrevo, sei não ser e recebo mais do que dou. Sou um sonhador, um perfil de fachada. Sou ironia. (nada)

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eu com ele, onde ele não há

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Para eu estar num lugar, tenho de estar na iminência de o deixar. É uma urgência que tenho em mim, estar. Mas só estou se sentir a dor da perda por antecipação. Só estando, não. E o lugar pode ser casa, café ou coração. É tudo aquilo que é e que eu só quero quando estou a perder. E, depois, quando ele não está, estou eu com ele onde ele não há, longe de mim. Para eu estar num lugar, tenho de estar na iminência do seu fim.

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o dia são tambores

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É o barulho. Tudo é barulho. O sol, o almoço, o vento, o cheiro, os cafés, os cães, as janelas, os cigarros, os carros, os pensamentos, as cores, os sorrisos, as flores, a rua, a estrada, a escada, o passeio a pé. Nunca sei o que ouvir porque oiço tudo como tudo é. Porque oiço tudo, se tudo é? Se o tudo fosse leve… mas o tudo são dores. O dia não me serve. O dia são tambores. Não quero ouvir tambores. Não quero ouvir estrondos no peito. Mordo o dedo indicador e fica a marca. Aceito, e sinto a carne e o osso ao morder. É uma espécie de grito contra mim. Mordendo, vomito, e doendo e aflito vou sendo o que grito, uma espécie de aproximação do fim. Culpo o dia, mas a culpa vem de mim. Não devia, não sejas assim… Sou, e ela é minha. E eu só verdade. Mas só à noitinha, quando me chega a saudade.

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uma espécie de batota

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Quem me vê sozinho, não me vê sem um livro. Ando sempre com um para não me sentir apenas um – por medo do vazio aonde isso me possa levar. Andando sozinho, com um livro, não ando sozinho. O livro é-me companhia, é-me bóia de salvação para quando começo a ficar sem forças por falta de talento para estar assim, só eu, em mim. É uma espécie de batota, eu sei, andar com alguém que não é alguém, que é só papel, mas sem ele custa mais andar, estar e permanecer quando ando, estou e permaneço sozinho – que, em boa verdade, é quase sempre. Mesmo quando estou acompanhado sem um livro. Com gente.

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o silêncio faz parte

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E agora? O que é que eu faço? O que é que eu digo? Sorrio? Não sei sorrir. Desvio o olhar e a atenção para outro lugar? Finjo não estar? Como é que eu posso fingir não estar se toda a gente me vê? Para fingir não estar, tenho de estar. Se não, não seria fingimento, seria realidade. E todo este momento não seria momento porque seria verdade. É melhor não ser. E eu não sei. Não sei quem sou nem sei quem são estas pessoas que me olham. São más? São boas? Podem acumular ambas as condições – são pessoas, não são soluções. E eu sou outra pessoa. Ou outras, uma só, multidão… Por enquanto, sou tanto. Um dia, serei pó. Tudo em vão. O que é que eu sou? O que é que eu faço? O que é suposto fazer? (além de esconder o embaraço de não saber) Poesia… Deveria dizer poesia. Aqui, em cima destas mantas, perante estas pessoas que eu não conheço. E são tantas! Poesia… O que raio é isso? O que tem de ser? É rimar? Ou é só parecer? “Arte”… O que é que eu vou dizer?

Respira, André. O silêncio faz parte. A poesia é também o que não é. Como o amor, o vazio, a fé. Sorrio, é melhor sorrir. Sim, mesmo não sabendo como fazer. Acho que é assim. Pelo menos, vejo pessoas a sorrir para mim. Deve ser por compaixão. Umas olham, outras não, e eu em revolução por não saber fingir. Nem sorrir. Tenho de me mexer! A mão. Sim, a mão! Faz qualquer movimento com a mão! Abre. Fecha. Abre. Fecha. Não. Deixa… Não faças nada! Tens de falar. Sim, fala! Diz qualquer coisa, abre a boca, mostra os dentes, ajeita o cabelo, aclara a garganta e diz o que sentes. Não deixes que a ansiedade te obrigue a calar. Tens de falar! Não quero falar. Não quero estar aqui. Quero chorar… Sorri. Não consigo. Sorri! O que é que eu digo?! Falar, ou o ensaio para a fala, cansa-me o peito. Se calhar é defeito de fabrico o meu peito querer sempre fugir do lugar onde eu fico. E eu fico aqui. Sorri. Não consigo. Sorri! Não tenho jeito… O meu peito manda e anda e corre e quase morre de cansaço. E agora? O que é que eu faço?

Sei sempre o que fazer. Tudo! Nunca fico calado, parado, mudo, à espera que algo aconteça. Não sou desses malucos que ouvem vozes na cabeça. (embora pareça, eu sei) Como se desse para ouvir vozes noutro lugar que não na cabeça. No umbigo, no pé, no braço… Sou tudo aquilo que digo e não digo, sou o André, só não sei o que faço.

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eram gentes escondidas

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Duvido sempre de definições. Eu, que nunca soube quem era, mas que julgava ser alguém, dou por mim, agora, a ser ainda alguém, sendo outro que não o que julgava ser. Sempre me achei alguém com medo de gente, de praia e de solidão. Julgava ser assim. Parece que não. Hoje vim à praia conhecer gentes que ando a escrever de livre vontade, por trabalho e por amor. Não as conhecia, fui eu que as quis conhecer e escrever. Pisei a areia, fui ao mar. Sempre pensei que fossem duas coisas que eu iria sempre odiar. Parece que não. Senti-me bem sozinho, andando devagarinho, sem pingo de solidão. Enfrentei, como tenho tentado quase sem querer, alguns medos ou receios ou ilusões de tudo aquilo que eu julgava ser. Definições indefinidas do que eu achava de mim. Eram gentes escondidas. Parece que sim.

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eu sei que é um gato

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Os nomes dos animais só são nome de gente para a gente corajosa. Perder um Vitorino dói bem mais do que perder um Pantufas. Aconchegar um Vitorino ou um Pantufas, pelo contrário, aconchega-nos de igual modo. A coragem está no enfrentar da dor e não no enfrentar da alegria. Esta coragem de dar nome de gente a um animal nasce, no entanto, de uma cagufa da solidão. O meu gato, tendo o nome Vitorino, sendo um nome de gente, é um gato que transporta todo o peso, não sendo, de ser gente. Se fosse Pantufas, seria um gato, não poderia ser outra coisa, sendo Pantufas. Não é o problema de ser gente ou de ser gato, é a questão de ser gato sendo gente ou de ser gato sendo gato. E a verdade é que os gatos são gatos sendo gatos, sempre, apesar de todas os jeitos de gente que os donos dos Vitorinos lhes possam dar. Nós, eu, é que lhes atribuímos nomes de gente para alimentar a ilusão de que eles não miam mas falam, de que eles não nos adormecem em cima pelo calor mas pelo carinho, de que eles não são gatos mas são gente. E gente precisa de gente, ou de ilusão de gente, para se sentir parte. O meu Vitorino é um gato, eu sei que é um gato, mas é gente. E eu para aqui todo medricas cheio de coragem.

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a margem do tempo

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Uma peça de cinco minutos que demora sessenta. Uma pessoa em duas personagens. Uma velha, uma nova. Vivem pela casa e não se cruzam. A velha vê a nova, vendo a lembrança do que foi. A nova sente a velha, sentindo o que será. Não há palavras ditas e todas as que há estão nas que imaginamos pela tremenda seca que a peça causa em quem a vê e tenta compreender. A verdade é que a peça vê-se e compreende-se nos primeiros cinco minutos. Tudo o resto é desnecessário. Há música a acompanhar o desnecessário, música perfeitamente em linha com ele: inquieta ao início (primeiros dois minutos e meio), reveladora durante (segundos dois minutos e meio) e repetitiva no fim (últimos cinquenta e cinco minutos). Todos os (poucos) momentos que aproximam personagens e público são criados, apenas, pela música e pela luz. Sem música e sem luz, esta peça não seria teatro – o que significa que esta peça, se fosse apenas teatro, não seria teatro. É uma pena ver uma actriz como a Eunice fazer isto, mas também acaba por ser bonito – há uma espécie de beleza na decadência da peça que, por qualquer razão, vai bem com ela. A neta está lá e parece-me que o que faz faz bem. A peça, como está, não dá para mais. Talvez porque não seja uma peça, mas sim um exercício teatral que tem mais cinquenta e cinco minutos do que aqueles que deveria ter.

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robocop vs. ansiedade

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Estou aqui com uma dúvida. Quem acham que venceria esta luta: o Robocop ou a minha ansiedade? Por um lado, este meu estado é muito forte na previsão de qualquer golpe. Por outro, gasta muitas energias a combater inexistências. Já o Robocop é uma máquina de guerra e tem uma pontaria dos diabos. No entanto, é mais chapa do que carne. E segue um pensamento lógico. E é previsível. E não tem coração. Robocop. Sim, o Robocop. Ganha o Robocop.


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contentamento e cagufa

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Contentamento e cagufa. É o que sinto sempre que subo a palco para falar sobre mim ou sobre o que eu faço – nem sempre o que eu faço é sobre mim. Fico contente por me darem voz e por a quererem ouvir. Fico a tremer por me darem voz e por a quererem ouvir. Acho sempre, sem falsas modéstias e sem estar aqui a pedinchar elogio, que vou falhar perante os outros e que, sei lá eu porquê nem com que fundamento, irei ser desmascarado – afinal o gajo não sabe escrever, afinal é igual aos outros, afinal é só uma carinha laroca com uns lindos olhos azuis a temperar um incrível corpo escultural. Ontem, senti contentamento e cagufa. Por ter falado sobre mim e sobre o que eu fiz, o meu Lágrima, e por ter estado tanta gente de quem tanto gosto, da plateia ao palco, a ouvir-me e a querer saber de mim – e do que eu faço. Obrigado. Tremo, mas sorrio.

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não sei do meu caderno

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Não sei do meu caderno e não sei onde ele está. Sei que não saber onde ele está é a definição de não saber de, mas, ao dizer que não sei onde ele está, digo que sei que não está nesta realidade, está noutra, ele ainda agora estava aqui na mesa, junto ao portátil e agora não está, peguei nele, no caderno, e, de um momento para o outro, é sempre de um momento para o outro que as coisas acontecem, desapareceu. O meu escritório é pequeno e ele não saiu dele, do escritório, talvez tenha saído dele, do caderno, sendo agora outra coisa que não era, que era caderno. Mas aqui não está. Procuro em lugares onde não cabe o meu caderno, nem metade do meu caderno, nem metade de metade do meu caderno, vou com as mãos a sítios que já olhei por desconfiar de que não estou a ver bem. É muito aflitivo não saber como se traz uma coisa que foi para uma outra realidade por não se saber, lá está, como se vai para outra realidade, e essa coisa lá está, e eu aqui, sem saber dela. Repito movimentos de mãos e de pés, repito lugares, repito pensamentos e o caderno continua sem estar. Eu tenho a certeza de que ele não está, porque não o vejo. As coisas não estão se não as vemos, mas, se não estão, continuam a ser ou deixam, também, de ser por não as vermos? Se deixa de estar, pode não deixar de ser, mas, se deixa de ser, deixa de estar. Resta saber se continua a existir, ou sendo e estando ou estando e sendo ou não sendo e não estando. O meu objectivo já nem é encontrá-lo aqui, é ir ao outro lado buscá-lo. É essa a minha aflição, como é que eu vou lá? E vem outra, como é que eu o trago de lá? Como é que se abre a porta da realidade paralela? Será paralela? Se fosse, não tocaria nesta e não me levaria o caderno. Não, não é paralela. Como se vai? Como se entra? Há bilheteira? Onde é? Onde está? Se calhar não há e é tudo invenção minha. Vá, distracção de pessoa habituada a ser e a estar sozinha. Não sei de nada, não aponto nada. Só no caderno que não tenho. É nele que aponto o que fiz. Se eu não o encontro, não encontro o que fiz, se não encontro o que fiz, não fiz nada e não posso fazer nada porque o futuro passado do que faço deixa de existir. O que é que eu faço? Quem sou eu? O meu caderno?


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na ilusão de pertença

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Preciso de likes para continuar a viver na ilusão de pertença e de companhia que a constante aprovação externa me dá porque a interna é uma merda talvez nem exista por ser de um ser demasiado exigente que por medo de falhar aos outros mas essencialmente a si mesmo deposita toda a responsabilidade do seu bem-estar em duplos toquezinhos de dedinhos de seres aleatórios que muitos deles não conhece além do ecrã e que chama de amigos mas que não são mais do que seres aleatórios que fazem duplos toquezinhos com os dedinhos num ecrã numa foto de alguém que não conhecem ou que apenas conhecem da internet e que por isso não sabem quase ninguém sabe se a pessoa está feliz triste apática gorda ou com vontade de gritar e de fugir porque não sabe lidar com esta constante necessidade de se mostrar para existir sabendo no entanto que não é mostrando que existe mas que por vezes não resiste à tentação de uma enxurrada de likes para lhe matar a fome à ilusão. Obrigado.

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gosto do sporting

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Sou do Benfica. Gosto do Sporting. Quando era pequenino, gostava sem saber nem conhecer. Gostava porque via os meus tios a gostar, e gostava dos meus tios, e gostava do Sporting – como gosto ainda. E tinha uma bandeira que, por qualquer asneira minha, foi atirada para a fogueira como castigo. Fiquei triste e devo ter chorado – porque choro sempre que fico triste. Foi aqui, talvez, que me encontrei pela primeira vez com este sentimento de perda que ainda não fui capaz de perder – o verbo, sendo esta a cor, não poderia ser outro. Este ano, mudou, é outro, e ainda bem. Mas eu sou o mesmo. Sendo do Benfica, gostando do Sporting e gostando de ver os meus tios – e mãe e irmão e primos e amigos e tanta gente – a gostar também.

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os movimentos do ego

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Fui ver. O Ruben toca, a Daniela canta e o Rodrigo estraga. O Ruben e a Daniela interpretam letras do Rodrigo. O Ruben e a Daniela são uma espécie de Chopin a musicar cocó. O Ruben e a Daniela são o Anthony Hopkins a recitar O Prédio do Vasco. O Ruben e a Daniela estão na sombra do Rodrigo. O Rodrigo é o sol que neles faz sombra e que nas palavras faz cancro. O Rodrigo não sabe estar em palco. Não sabe onde pôr as mãos nem o ego, então, mete-os em todo o lado. Nos bolsos, na cara, na postura e no desprezo com que interpreta, haha, “interpreta” aquilo que escreveu. Ele lê, ele canta – porquê?, ele faz movimentos com os braços imaginando ser Hamlet sendo João Baião. Ele é ridículo, não ao ponto de dar a volta e ser bom, como é o caso das coisas muito más, mas ao ponto de ser muito mau, não dando volta nenhuma porque não há volta a dar naquele vazio, como é caso das coisas que não chegam a ser coisa alguma. O amontoado de letras a que o Rodrigo chama de poesia é isso mesmo, um amontoado de letras a que o Rodrigo chama de poesia. Mais ninguém chama, só ele. E é só ele em palco. O Ruben e a Daniela lá estão e lá sorriem com a clara vergonha de quem chafurda em hemorróidas, e tentam ser Midas, mas não conseguem, coitados, não são mágicos e o Rodrigo não é poeta. Nem escritor. Nem actor. Nem intérprete. O Rodrigo queria ser tudo isso, é o que os movimentos do ego dizem a quem os vê, mas o Rodrigo não é. E ele não vê. Fala do amor, da depressão, da violência doméstica, dos maus-tratos aos animais, mas não fala de nada disso. Quando grunhe, vomita clichês linguísticos e conceptuais que envergonham, desculpem, eu falei em cocó?, cocó é génio! Agora é sobre amor entre duas pessoas, uau, incrível, Rodrigo, e, agora, o que é esse amor? Ele não sabe e, como não sabe, escreve e vai para palco “interpretar” e “cantar” – porquê? – o que escreveu. Falou dos seus livros, da sua exposição pública, das suas lutas e de tudo o que não interessa num espectáculo que não é sobre ele. Se fosse, seria perfeito. E o Ruben e a Daniela não estariam ali a fazer nada. Seria Rodrigo como ele foi e como ele gosta, não sendo, de ser: o país e o mundo.

RUGE

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fotografia de um cravo

Comentários fechados em fotografia de um cravo bloco de notas

A liberdade custa-me um bocadinho, dá-me opção, deixa-me escolher, e eu fico sempre sozinho na inquietação de não saber o que fazer. Escolhendo, acabo, inevitavelmente, por excluir. E não ir. Mas parece que é esse caminho excluído que eu começo a caminhar. Não vou, mas é como se tivesse ido. É ele que fica a carburar cá dentro, perguntando porquê, pensa outra vez, olha para mim, sou o que és. É quase sempre assim. Olho a possibilidade de escolher como uma obrigatoriedade de deixar morrer. É mais isto, e não tanto a liberdade como definição. De qualquer jeito, não desisto. Mesmo custando, vou lutando, sou revolução.

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estar sem estar com ele

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Hoje não estou. Sou o que sou nos outros dias. Mas não estou. Desde que o meu primo foi, neste dia, que eu não consigo estar sem estar com ele. Se ele não está, eu não estou. Se a minha madrinha, o meu tio e a minha prima estão não estando, eu estou com eles, assim, não estando também. Só com ele, nas lembranças, quando éramos – ainda somos – crianças.

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deste nó que me é descalçar

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Não sei se é falta de tempo se de vontade mas, sempre que me descalço, tenho pressa no momento. Não sou capaz de me parar, de me sentar, de me inclinar, de me desatar deste nó que me é descalçar. Piso os calcanhares, um por um, claro está – que a impossibilidade ainda não me é permitida, chuto o que calço à baliza invisível e deixo, descalço, o calçado ao deus dará. Ao ladooo! Ao voltar, é que é tramado. Os reencontros são sempre tristes, isso é sabido. Lá está eu e o calçado, cada um para seu lado com nós por desatar. O jogo regressa, jogo perdido. Tanta pressa, tanta pressa, mas tenho sempre de parar.

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penso que sou pouca coisa

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Olho para dentro como se dentro fosse o único lugar. E dentro é como se fosse sempre o passado. Olhar para fora, para os outros, para o mundo, para o acaso, para o indefinido, é olhar para o futuro. E isso custa-me. Sinto que tenho mais atracção por dentro. Entro sempre neste processo quando são accionados gatilhos: a lembrança de qualquer lugar, a minha presença com alguém, a minha diferença (quase fraqueza) de, ao estar com os outros, não estar com ninguém. Isso faz-me sentir que estou em falha, que estou a perder tempo, que não vou encontrar, que o melhor é voltar. E, se o melhor é voltar, vamos arranjar o que está. Mas nunca há real vontade de voltar. Pelo menos, não por inteiro. É sempre a vontade de voltar a ter momentos, sentimentos que lá ficaram e que, por qualquer motivo, tenho medo de que se tenham perdido. O passado passou e parece que desapareceu. Se os sentimentos já não se sentem, é porque já não existem. Este processo de ruminação, de me olhar dentro em constante loop, faz-me reviver esses sentimentos, faz-me mantê-los vivos, como se eu quisesse, constantemente, confirmar a existência do que aconteceu e, talvez em última análise, confirmar a existência de mim mesmo, do que sou. Porque penso muitas vezes no que sou e, por vezes, penso que sou pouca coisa, que sou só presente e que tudo passa a correr, que não há espessura temporal, e que a vida é “só viver”. Tenho a necessidade de me sentir robusto, cheio, convicto do que sou e do que já conquistei na vida. Mas pareço-me sempre um conjunto de fragmentos dispersos à procura de uma cola qualquer que os junte. Estou sempre à procura no passado – que é, talvez, o sítio errado.

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se não doer, minto

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Voltei ao dentista, voltou a dor, voltei a pensar. Da próxima vez que lá for, gostaria de não estar. Estaria o corpo, estaria eu, mas não estaria a consciência de mim. Assim, sentado, lá estaria um não-eu anestesiado. Mas corpo inteiro, não parcial, que eu sinto sempre o que doeu e o que não doeu, falso ou verdadeiro, porém, sempre real. Dói mais o medo da dor do que a dor em si, e eu cedo ao que for sem saber de mim. Assim que sinto o que realmente é, há desilusão por não ter sentido o que previa e alívio por ter sentido tão aquém. Ainda bem, mas porquê a previsão? Não queria sentir constantemente este medo pela dor do dente que já nem sinto. Se doer, penso. Se não doer, minto.

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o amor que não sei escrever

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Não sei escrever o amor de mãe. Nem tão pouco o de filho que a tem naquele lugar onde ninguém consegue entrar – não há realidade se ele não há. É onde estou desde que sou, lá. E, vá eu por onde for, não encontro nada tão meu como o amor que não sei escrever. Se vou, ele vem, e onde estou tenho sempre a minha mãe.


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na morte é que não

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Acreditamos na ressurreição, na morte é que não. Por isso é que acreditamos. Inventamos. Ressurreição é contradição, falsidade, ilusão, vontade de dar sentido à nossa aflição. A morte é fim e não suportamos que seja. Porque o fim aleija quem fica pela ausência de quem foi e pela iminência de ir também, de deixar de ser, e isso dói. Isso é morrer, e nós não suportamos deixar. Acreditamos que tudo vai continuar noutro lugar, que somos imortais pela suposta importância de sermos reais, de existirmos, de termos de ter alguma razão para aqui estar. Mais vale desistirmos, o que somos é ser e a razão é estar. Estamos errados. É por isso que acabamos, todos os anos, crucificados.

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pelo abismo da aflição

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Fui ao dentista. Tive dores e pensei. Penso muito quando tenho dores. Tenho muitas dores quando penso. Estava eu vulnerável, com uma broca a perfurar-me um nervo qualquer do molar, quando pensei, doendo, no tão na moda “viver o agora”. Raramente vivemos “o agora”. Diria que sim. A sociedade corre e nós corremos com ela, como sem fim. Não aproveitamos o filme que estamos a ver, o sofá onde estamos sentados, o sol que nos aquece, pouca coisa, nada nos apetece. Estamos constantemente neste estado ansioso de futuro constante que não nos larga. Isso é verdade – eu estou sempre além longe do agora, mas também é mentira. Eu, com aquela broca a perfurar-me um nervo qualquer do molar, estava a viver o agora. Queria pensar no passado ou estar já a viver a chamada que iria receber mais tarde, mas não. Estava ali, naquele momento, inteiramente de corpo e pensamento, a sofrer. E isso fez-me pensar, doendo, que nós, de facto, vivemos o agora. Mas só se o agora for dor. Se não for, sendo prazer ou coisa indiferente, passamos à frente em busca de nova dor onde ancorar o pensamento. No passado ou no futuro, tanto faz, mas sempre em movimento. Há pessoas que não, certamente. Mas há pessoas que sim, como eu, que têm uma espécie de atracção pelo abismo da aflição. Uma atracção que não é voluntária – eu não quero viver a broca a perfurar-me um nervo qualquer do molar, mas que vem de mim. E não sei se o problema é ter inclinação para viver a dor ou não conseguir sequer viver o prazer – ou até mesmo a coisa indiferente. Mas, naquele momento, vivi sem querer o agora que ainda me demora no dente.

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alerta giveaway de ilusão

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Sou uma pessoa de manhãs. Acordar cedo é uma das bênçãos que deus nosso senhor me deu com a felicidade no rosto de um dia que está a começar e que me dá a linda luz da vida que se vive agora neste momento agora mesmo porque o passado já foi e o futuro não vem e sinto-me muito grata por ser assim e estar neste mundo que é este e por ter as minhas friends que são estas também lindonas como eu que me acompanham neste caminho que se faz caminhando com deus no comando e a deusa shiva da nutrição deitada em posição de pombo daltónico no meu chacra do meio sou dona do meu tempo e eu sou o meu mesmo próprio universo sou feliz e agora vou meditar e sorrir e espalhar alegria por toda a gente que não come carne de porco viva a beterraba e a soja. E tu, vais escolher a felicidade? Olha para dentro e sente tipo com o coração. Alerta giveaway de ilusão.

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somos o teria sido

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Conheço quem já tenha desistido da vida. Quem já não se importe com nada. Quem já não saiba sequer quem é. Se soubesse, certamente se lembraria de que, quando era quem não é hoje, queria ser feliz. Não sabe, então não se lembra, então não é feliz. O sonho é uma daquelas merdas que vai e vem. Nesta gente, foi e não veio. E a vida é apanhada no meio desta desistência da essência humana, a felicidade. Um homem vai perdendo sonhos com a idade. Já não vai a tempo de vestir o fato de astronauta, de ter uma banda de rock nem de ser o camisola 10 do Benfica. Então, o sonho vai, e o que fica é esse vazio de frio no dia-a-dia de quem se limita a existir. A respirar. A ouvir. A falar. A não ir. A ficar. Conheço quem já tenha desistido da vida. O que é fodido. Somos o teria sido. Em despedida.

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nem sempre somos nós

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É normal não te sentires normal. Não há preocupação. As coisas são como são e tu és tão normal como toda a gente. Não igual, diferente. Mas que sente tal e qual como quem está ao lado, também confinado. É normal esses cavalos no peito ao acordar que, durante o dia, te andam a cavalgar e que, de noite, não adormecem, parece que sim, desaparecem, mas aparecem por fim sem que ele seja. O cavalgar aleija. Mói o peito e o efeito é despertar pensar pensar pensar pensar pensar. Dói. Não devia. É normal. Deve porque é o dia que se vai repetindo e a angústia que se vai engolindo encobrindo com vinho e televisão. A nós é que nos falta carinho, compreensão. É normal, o mundo está fodido. É normal o comprimido, é normal o não teres dormido a noite inteira por medo sabes lá de quê, nem sabes se é verdadeira a emoção de quem te vê. É normal quereres chorar. Desaparecer. Gritar com os pais, com os irmãos, com os vizinhos. Estamos onde não deveríamos viver, e parece que estamos sozinhos. É normal, não havendo normalidade, sentirmos que o passado é que era o lugar certo e que o futuro nunca esteve tão longe, mesmo estando tão perto. Essa vontade de tocar comer beijar foder parece doença e há quem se convença, e com a sua razão – cada um tem a sua, que tudo se leva com meditação. E quem não consegue? Vai para a rua? Quem não tenta – está no direito de não tentar, quem não quer, quem tem medo de falhar? Quem não, o que faz? Não há só uma solução. É normal dizer que não, não sou capaz. E sinto angústia e raiva e medo e minto nas redes sociais porque lá somos todos felizes todos iguais, criando raízes de seres “normais”. Não é essa a normalidade. Horror, saudade, vontade de amor. É normal tudo o que for. E não estamos sós. Somos humanos, falhas, inquietações e as multidões nem sempre somos nós.


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um antónio é um tó

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Quem se chama António, José, António José, José António, Rafael, Francisco ou outro nome do género, nunca deveria ter um nome invulgar junto deste. Um António é um Tó, um José é um Zé, um António José é um Tó Zé, um José António é um Zé Tó, um Rafael é um Rafa, um Francisco é um Chico e por aí fora. Um António Braz, por exemplo, deixa de ser Tó para ser Braz, desperdiçando um diminutivo simples, eficaz e fácil que os pais nos puseram a saltitar mesmo ali à frente da baliza. Um António Braz não pode ser Tó, porque seria ridículo ocultar o Braz. Mas também não fica bem ao Braz tirar valor ao tão simples, eficaz e fácil Tó. Em que ficamos? Pois. Estamos perante um problema grave e raramente – talvez nunca – discutido. Andamos para aí a debater o vírus, a ascensão da extrema-direita e a economia deixando temas tão importantes como este ao deus dará. Enfim.

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vem o medo, está bem

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Vem o medo, está bem, que venha, não há segredo nem emoção estranha e treme o corpo e o coração corre, é normal, está tudo bem, ninguém morre, o medo desperta e alerta, diz que vem perigo, mas diz comigo, não vem, acredita, deixa o medo existir, é a dúvida a fazer fita, não lhe digas para não vir, deixa-o estar para ele ver que não há nada a temer, está tudo bem, ele vem e vê que é só a vida a acontecer.

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o livro dos filósofos mortos

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“Filosofar é aprender a morrer”. Um livro sobre a maneira como alguns filósofos viram e viveram a morte. Tem Cícero, Camus, Nietzsche, Schopenhauer, Sartre, Simone de Beauvoir, Sócrates, Kant, Pascal, Marx, Kierkegaard e outros mortos. Depois de ter lido um livro sobre um gajo que não se considera humano e, por isso, deseja o suicídio, li agora este sobre a morte ela mesma. Estou a ir por uns ricos caminhos, estou.

O Livro dos Filósofos Mortos, de Simon Critchley.


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é calando e proibindo

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496.655 pessoas votaram no André Ventura. Se continuarmos a achar que este quase meio milhão de pessoas não existe, então é bem provável que, dentro de pouquíssimo tempo, sejamos governados por inexistências. É calando e proibindo que se destroem pessoas, mas não ideias. As ideias nascem no lamaçal da proibição e na clandestinidade da suposta inexistência. É lá que elas nascem, crescem e ganham massa muscular. Mas é cá, deste lado, que elas morrem – quando, à luz do dia e à vista de toda a gente, são confrontadas com outras ideias melhores. 496.655 pessoas, quase meio milhão de seres humanos, têm ideias com as quais eu não concordo, mas que merecem ser ouvidas e discutidas. E, só depois, e tendo em conta o seu óbvio vazio, serem facilmente destruídas.

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vota ventura!

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Vota Ventura, se o teu candidato for Ventura. Ou Tino, se for Tino. Ou Marcelo, Ana, Marisa, Mayan ou João. Ou em branco. Ou nulo. Ou não votes. Qualquer acção é uma acção da realidade. E a realidade não é o que nós achamos que ela é.

A realidade é linda, mas feia também, horrível, nojenta, com borbulhas, queimaduras e pus. A realidade tem gente fascista, comunista, do centro, inclinada para a direita, para a esquerda ou para lado nenhum. Tem gente estúpida, inteligente, ignorante, sonhadora e pragmática. Tem gente pobre, rica, com fome, cancro, casas na praia e vida na merda. Tem gente de cravo na lapela e gente que se está a cagar para a democracia. Toda esta gente é realidade. E é a realidade que é essencial conhecer, e é a realidade que não conhecemos. Nós não sabemos quem somos. Desconhecemos as ruas, as emoções e as ideias. E, desconhecendo, desvalorizamos. Mas as ruas, as emoções e as ideias têm gente dentro e, desvalorizando ruas, emoções e ideias, desvalorizamos gente. Surpresa! Há gente com outras ruas, emoções e ideias que não as nossas – por muito estúpidas que sejam, as da gente ou as nossas. E essa gente faz parte da realidade, e essa gente é realidade. E a realidade não se combate com proibições nem com discursos ocos de lábios pintados. A realidade combate-se, não combatendo, começando com a vontade de a conhecer. Saber que há quem vote neste, naquela, em branco, nulo ou nem sequer vote, mas também perguntar, perceber, conhecer. Mas isso custa. Implica trabalho, dedicação, luta, paciência, tanta coisa que nos falta – e de que temos tanta urgência. Talvez daí a ilusão de não termos tempo. Queremos tudo agora, sem perguntas, só respostas, desde que as respostas sejam as que nós escrevemos no nosso caderno vazio de lixo. Surpresa! Nós também somos lixo.

O resultado de hoje não é a vitória de uns nem a derrota de outros. O resultado de hoje é sempre a derrota de todos e sempre a vitória da realidade – mesmo que ela não seja o que nós achamos que ela é. Bem, ela não é o que nós achamos que ela é. Mas talvez fosse boa ideia tentarmos olhá-la e percebê-la. Só assim percebemos o que somos. Só assim podemos ser o que quisermos.

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fala, ó facho

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Fala, ó facho! Não oiças os que te pedem para te calares. Fala, ó facho! Grita, berra, vocifera, clama. Mostra-te, deixa que te vejam. Diz, deixa que te oiçam. Além de ser justo, é bem mais fácil identificar um idiota se soubermos onde ele está e o que ele diz. Se o obrigarmos ao silêncio, não só fica difícil de o identificar como também fica difícil de combater o que ele (não) diz. Mandar calar é impedir de ouvir. E, por muita sujidade que possa vir daquela boca, sei que é sujidade e sei que é daquela boca. Prefiro continuar a ouvir do que ser impedido de falar. Portanto, fala, ó facho! Preciso de ir tomar banho.

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não-humano

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“A minha vida tem sido vergonhosa. Não consigo sequer imaginar como deve ser viver como um ser humano”. São estas as primeiras palavras do primeiro livro que li este ano. Uma maravilha da literatura japonesa – na verdade, não conheço mais, mas esta, que conheço, é um mimo. E é triste, como qualquer maravilha que se preze.

Não-Humano, de Osamu Dazai.

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autobiografia

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Sempre me foi difícil dizer quem sou. Não por vergonha ou medo. Por ignorância. Não sei, não é segredo. Nem tem importância.

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tudo me é imortal

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Foi-me um ano de mortes. Todas elas reais, mesmo as que não foram. Deixei de ter gente, lugares, até silêncios, mas não perdi ninguém. As memórias, todas elas boas, mesmo as que não são, fazem viver em mim tudo o que me morreu. Tudo me é imortal, menos eu. Tenho o infinito no meu pequenino lugar de dentro onde nem eu caibo. E ter o que não acaba, sem espaço para o ter, aperta, esmaga e faz doer. Nunca me doeu tanto. Bati todos os recordes de idas ao psicólogo, ao psiquiatra e ao chão. Quis fugir, encharcar-me em comprimidos para me adormecer, mas fiquei e os comprimidos lá foram deixando de ser. Refugiei-me em amigos, em família e em palavras. Menos em mim. Tinha medo, ainda tenho. Mas, talvez pela necessidade causada pelo fim, tentei deixar de me ser um estranho, e entrei. É lá, aqui, que me tem custado estar. Por encontrar o que escondo, ou tento esconder, por dar de caras com o que sou e não queria ser. Mas também tenho encontrado coisas bonitas, acho eu. Também acho que as tenho, que as sou. Mas eu, por crença ou ilusão, teimo em não acreditar que elas existem, que elas são. Mas vou escavando, e percebendo que, mergulhando neste ser, é a forma mais verdadeira de me ir sendo e de aceitar o que encontro, o que sinto, o que sou. Dar-me a mão, pegar-me ao colo, dizer-me que está tudo bem assim, que nem sempre sou não, e que o consolo pode, e deve, vir de mim. Tenho tido, também, muita sorte na gente que eu vou tendo comigo. Não foi apenas a morte, e ainda bem, o ingrediente do que digo. Conheci gente que me levantou, me abraçou e me foi levando pelo abominável desconhecido da vida. E o escuro clareou um bocadinho. Que bonito, o acaso também ajuda quem se julga sozinho. E, apesar de todas as escuridões, lá fui conseguindo iluminar alguns corações. Falta o meu. É só arranjar um jeito de não me olhar como se estivesse sempre a cair. Ou a sufocar com a imortalidade de quem me tem morrido. Sim, é o segredo, não viver o teria sido. Mas eu tenho medo e o medo está comigo. E não basta querer que ele vá embora. Sim, tenho de viver o agora. Não consigo, por enquanto. Preciso ser meu amigo, gostar de estar comigo, ser o André. Mas tudo o resto é tanto, mesmo o que não é.

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quem está sempre

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Nestes dois dias, só família, somos mais de cem. Ontem e hoje, só família, somos quatro. Mas não falta quem não está. Falta quem está sempre. O meu primo Henrique, o meu avô Zé Pereira, a minha avó Maria José, o meu avô Álvaro, a minha avó Maria Augusta, o meu tio António, a minha tia Nhanha, a minha tia Carminda, o meu cão Freud. Estar, lembrando, é uma forma de ter. Estar, não estando, é uma de viver.

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o meu pai

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O meu pai é o pai que eu gostaria de ser. Não sou ainda, falta-me ser pai, falta-me ser bom, falta-me ser feito do jeito que ele tem para estar, sorrir, brincar e sorrir, já disse sorrir? já disse brincar? Gostaria de ter a alegria que ele tem em tudo o que é. Mas sou o André, não sou o meu pai, Manuel José. E ainda bem que ainda não sou, assim terei o meu pai para sempre, sempre que fico, sempre que vou, e ele sempre comigo, que me é pai, que me é amigo, que me é tudo o que não consigo escrever. Não fosse o meu pai e eu não seria metade. Não fosse o meu pai e eu já teria perdido a vontade de ser feliz, de acreditar que a felicidade tem a sua raiz no nosso comportamento. Eu tento, o meu pai consegue. E a minha vida segue com a vida dele. É do meu pai que eu herdei aquilo que eu ainda não sou. Diria que a felicidade não me calhou. Mas digo que sim, que a felicidade já me aconteceu, a mim, e ela insiste e já não me sai. Tenho quem me fez eu, quem me existe, tenho o meu pai.


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a nossa morte

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Não é por ser famosa, por ser filha deste ou daquela, por ser talentosa, por ser bonita, por ser jovem. Não é por isso que devemos chorar. Mas também é. Há gente anónima que morre todos os dias, de acidente, de doença, jovem, velha, sem fama e filha de ninguém. Há. Mas, por ignorância, despreocupação ou sobrevivência mental, não nos interessa. Não nos incomoda, não nos faz pensar, não nos faz chorar. A morte de uma figura pública, seja ela quem for, com o talento que tiver, é a morte de uma pessoa. Mas mais. A morte de uma figura pública é a morte de pedaços de várias pessoas, porque nós também morremos um pouco quando damos de caras com o fim de alguém. Mais ainda quando esse fim nos enche os jornais, a televisão, as redes sociais e, por consequência, o coração. Não é por ser famosa que o choro é mais forte, mas é por ser famosa que o choro é diferente, porque olhamos de frente a nossa própria morte.

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plano de treino

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Vou ao ginásio e treino bíceps, tríceps e peito. Mais peito, na verdade, que, para mim, ir ao ginásio tem sido tão terapia como a que faço todas as terças-feiras às duas no consultório. Costas, abdominais e peito. Sempre peito, que, às vezes, o treino é tão forte que todo o suor sai de lá pela foz que nos há nos olhos. E levanto halteres, com pesos de fantasmas, medos e sentimentos de culpa, mas de forma perfeita, sem pressionar a lombar nem compensar com os ombros. E corrida, corrida, muita corrida, para trabalhar o cardio, que o coração corre, corre, corre, e faz bem em correr, se não, morre, e não é bom morrer. E, por fim, alongamentos. Do peito, sempre do peito, para ver se há jeito de queimar os pensamentos.

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e vamos nós, sozinhos

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Não sei quanto a vocês, mas o meu sítio preferido onde chorar é no banho. Se for por uma merdinha de nada, as lágrimas são varridas pela água do chuveiro, dando-lhes a importância que elas têm, naquela torrente imensa. Vão as gotas, vão os pensamentos e ficamos nós, limpinhos. Se for por um daqueles vazios que nos estremecem, as lágrimas transformam a água do chuveiro em lágrimas também, dando-lhes ainda mais importância do que aquela que elas têm, naquela torrente que parecia ínfima. Vão as gotas, vão os pensamentos e vamos nós, sozinhos.

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a alegria nunca me foi

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Não sei se o que faço é arte. Nem sei, na verdade, o que faço. Mas, não sabendo, sendo arte, é o que me salva. É o que me tem mantido à tona sempre que os fantasmas do vazio me puxam para o poço escuro da depressão. Não é contacto com a alegria que me deixa menos triste, é o contacto corpo a corpo com a arte. Não é uma piada, não é um ninho de labradores bebés, não é uma refeição em família, não é um orgasmo. É a arte. É uma canção, mesmo que triste, é um poema, mesmo que aflito, é uma dança, mesmo que pobre, é um corpo, mesmo que fraco. A alegria nunca me foi bóia de salvação para nada, muito menos para quando eu mais preciso dela. É por isso que eu não páro de escrever. Para que, mesmo de pés no poço, roído até ao osso, eu continue a viver.

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queda para a saudade

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Tenho uma queda para a saudade. Não sei se é do fado que me há na História, se do sangue, se dos astros, se da memória. Sei que tenho uma queda para a saudade. Muitas vezes, sem querer, com vontade. Como se ela fosse a razão para uma espécie de criação que só existe se eu estiver triste. E a tristeza, causa ou origem da saudade, é-me uma forma de beleza que, usando para escrever, me dá liberdade. Que, usando para lá ir, vindo, me deixa caindo, sem cair.

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um descanso cansado

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A ansiedade pesa-me nos olhos. Como se tivesse chorado durante muito, muito tempo e, ao fim do muito, muito tempo, ao fim do dia, ao fim do choro, todas as lágrimas se acumulassem nas pálpebras e se deitassem. É um descanso cansado, por ter terminado, mas por ainda doer, por ter ainda cavalos a correr, e por eu ter corrido também, por estar sem. Vontade, energia, prazer. Ansiedade, mais um dia a chover.

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na ilusão da posse

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Vivemos na ilusão da posse. Nunca nada é, foi ou será verdadeiramente nosso. Nem a boca, nem o abraço, nem a patinha. Mas vivemos na ilusão de que é, foi e será. A boca, o abraço, a patinha. E, quando perdemos o que julgamos ter, vem a desilusão. Vã desilusão. E gritamos, entristecemos, choramos. Não por algo que tenhamos perdido, mas por tomarmos noção de que esse algo nunca foi nosso. Nem a boca, nem o abraço, nem a patinha. Não é uma desilusão com ela, com ele ou com ele. É uma desilusão connosco, que caímos no engano da conjugação-ilusão do verbo ter. Queda sozinha. Sem boca, sem abraço, sem patinha.

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professora-lágrima

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Sem ela, eu não seria eu. Não seria, pelo menos, este que escreve a vida desta maneira e que só encontra maneira de viver escrevendo. A professora Madalena é a minha professora primária. É, nunca vai deixar de ser. Foi ela quem me ensinou a escrever e a ler e a contar e a respeitar. Mas ensinou-me muito mais do que aquilo que eu aprendia naquela sala de rés-do-chão da Escola Primária dos Marrazes. A vida. Acho que foi o que a professora Madalena mais me ensinou. A vida. No seu estado mais puro de respeito, carinho, disciplina, amizade e sonho. Há quase 30 anos, era eu um ruço tímido caixa de óculos sentadinho quietinho na sua cadeira a ver a letra bonita da professora escrever Lição número qualquer coisa, Dia tal, do mês tal do ano antigo de 1990 e tal, Sumário. E eu sentadinho quietinho, a aprender. Este ano, pedi-lhe que trocasse o quadro negro pelo meu livro. Em vez de Lição, Dia, mês, ano ou Sumário, pedi-lhe, apenas, que escrevesse lágrima. E a minha professora, de mão tremida, escreveu. E eu, de coração tremido, li. Hoje, essa palavra, com essa caligrafia, está escrita no quadro negro da capa do meu livro. Quem me ensinou a escrever (e a ler e a contar e a respeitar) merece o melhor lugar no lugar das minhas palavras.

Lágrima, a triste odisseia de um homem feliz. À venda em Dezembro. Já disponível em pré-reserva.

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na espuma dos dias banais

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Não é o sermos proibidos de estar com outros, é o sermos obrigados a estar connosco. Fechados em casa, abertos em nós mesmos, completamente escancarados, com ventanias de pensamentos a entrar-nos pelas portas e janelas da nossa casa. Vulneráveis a nós mesmos, ao que nos inquieta que nos navega no subterrâneo rio que vamos conseguindo ignorar na espuma dos dias banais. Não é o confinamento dos outros, é o encontro connosco. É o sermos obrigados a ser o que realmente somos. E a ver, a tocar, a falar, a ouvir, a cuidar de nós. Os outros vão-nos tendo, e sendo, sempre que nos ignoramos. Nós vamos vivendo, e crescendo e morrendo e renascendo, sempre que temos a coragem de estarmos, e sermos, com quem somos. Custa, faz doer. Mas custa mais o vazio, o deixar correr o rio, o não ser.

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a elis regina não tem razão

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Desculpa, Elis Regina, mas eu acho que já não somos os mesmos nem vivemos como os nossos pais. Essa é, até, uma das nossas grandes angústias. Falo da minha geração, mas falo por mim. Eles, os nossos pais, apresentaram-nos uma vida completamente diferente daquela que nós, que eu, levamos. Eu não casei aos 20 anos, não tive filhos aos 22, nem arranjei emprego para a vida aos 25. Não tenho uma casa em meu nome, não tenho conta na mercearia, nem álbuns de fotografias de vida em conjunto. A minha vida, apesar da felicidade de uma estrutura familiar feliz, está fragmentada em memórias dispersas e descoladas. Desde que saí de casa, tive amores, paixões, desilusões, recibos verdes e casas arrendadas. Pouco mais. Não tive a capacidade de construir, nem de ajudar a construir, um único castelo onde pudesse fortalecer raízes de uma vida em linha recta, sem zigue-zagues de percurso. Os castelos que tenho são pequeninos, e muitos são de areia com bandeira a meia-haste. São vários os lutos por que tenho passado por não conseguir ser o que sonhei e por não conseguir ser o que são os meus pais. Sei bem que são outros tempos e que são outras pessoas. Eu, curiosamente, sou eu. Não sou os meus pais. Nem eles querem que eu seja eles. Mas também não é isso que me impede de ouvir constantemente um grito de angústia a ecoar-me nesta imensa sala da existência. Fracasso, desapontamento, e o cansaço de não saber se algum dia saberei ser como sonhei. E o tempo passa, cabrão do tempo, e os cabelos vão caindo, as vontades morrendo e a barba branqueando, e eu cá vou andando, com a memória carregadinha de estilhaços, alguns deles maravilhosos, mas estilhaços, pedaços que cabem numa caixa de sapatilhas e não cabem no coração. Bater de frente com a realidade da minha existência dói, inquieta e angustia. Por não estar onde eles estão, por não saber onde estou e por não saber para onde vou. Mas é precisamente a dor, a inquietação e a angústia que me estimulam na vivência do desconhecido. Por não estar onde eles estão, por não saber onde estou e por não saber para onde vou. O sonho é um lugar bonito onde estar. Mas, por vezes, não. E é aqui, Elis Regina, que te dou razão: viver é melhor que sonhar.

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o vazio da vida

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O vazio da vida é mais vazio, menos vida, ao domingo. Mais vazio, menos vida ainda, hoje. As ruas desertas, as nuvens estendidas, as pessoas fechadas, os astros alinham-se para um recolher interno obrigatório onde apenas estamos nós com o nosso silêncio, que é o nosso ruído, e os nossos fantasmas. E é quando nos recolhemos em nós próprios que damos de caras com o pesado vazio que carregamos e que a vida carrega. O aconchego do sofá não se sente além do corpo, a alma – ou a mente ou o que for que nos faz sentir – deveria recostar-se e aproveitar a incontrolável e inevitável inércia da vida, mas só se agita, só se inquieta, só se torna mais só e, por mais só, mais nossa, mais grita e mais nós a ouvimos. E ouvi-la, que é ouvir quem a tem, que somos nós, é abrir as portas ao vazio. Julgamos ser tudo, somos tudo, e, por julgarmos e por sermos tudo, não sabemos lidar com o nada que também nos existe. O confronto dói porque é raro, porque, sempre que ele nos espreita, nós ignoramo-lo e vamos fazer a nossa vidinha das nove às cinco, tomamos o café que não saboreamos, assistimos ao jogo que não nos interessa, falamos com as pessoas que não nos questionam, comemos a sopa que não nos sabe a nada, vemos o episódio que não nos estimula e vamos para a cama que nos adormece. A espuma dos dias afasta-nos do vazio, mas também nos aproxima dele. Porque, quanto mais o evitarmos, maior ele se torna quando, inevitalmente, ele nos aparecer. Como hoje. Aconchega-se, desaconchega-nos e fica, não foge, até nos adormecer.

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