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o meu pai

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O meu pai é o pai que eu gostaria de ser. Não sou ainda, falta-me ser pai, falta-me ser bom, falta-me ser feito do jeito que ele tem para estar, sorrir, brincar e sorrir, já disse sorrir? já disse brincar? Gostaria de ter a alegria que ele tem em tudo o que é. Mas sou o André, não sou o meu pai, Manuel José. E ainda bem que ainda não sou, assim terei o meu pai para sempre, sempre que fico, sempre que vou, e ele sempre comigo, que me é pai, que me é amigo, que me é tudo o que não consigo escrever. Não fosse o meu pai e eu não seria metade. Não fosse o meu pai e eu já teria perdido a vontade de ser feliz, de acreditar que a felicidade tem a sua raiz no nosso comportamento. Eu tento, o meu pai consegue. E a minha vida segue com a vida dele. É do meu pai que eu herdei aquilo que eu ainda não sou. Diria que a felicidade não me calhou. Mas digo que sim, que a felicidade já me aconteceu, a mim, e ela insiste e já não me sai. Tenho quem me fez eu, quem me existe, tenho o meu pai.


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a nossa morte

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Não é por ser famosa, por ser filha deste ou daquela, por ser talentosa, por ser bonita, por ser jovem. Não é por isso que devemos chorar. Mas também é. Há gente anónima que morre todos os dias, de acidente, de doença, jovem, velha, sem fama e filha de ninguém. Há. Mas, por ignorância, despreocupação ou sobrevivência mental, não nos interessa. Não nos incomoda, não nos faz pensar, não nos faz chorar. A morte de uma figura pública, seja ela quem for, com o talento que tiver, é a morte de uma pessoa. Mas mais. A morte de uma figura pública é a morte de pedaços de várias pessoas, porque nós também morremos um pouco quando damos de caras com o fim de alguém. Mais ainda quando esse fim nos enche os jornais, a televisão, as redes sociais e, por consequência, o coração. Não é por ser famosa que o choro é mais forte, mas é por ser famosa que o choro é diferente, porque olhamos de frente a nossa própria morte.

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plano de treino

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Vou ao ginásio e treino bíceps, tríceps e peito. Mais peito, na verdade, que, para mim, ir ao ginásio tem sido tão terapia como a que faço todas as terças-feiras às duas no consultório. Costas, abdominais e peito. Sempre peito, que, às vezes, o treino é tão forte que todo o suor sai de lá pela foz que nos há nos olhos. E levanto halteres, com pesos de fantasmas, medos e sentimentos de culpa, mas de forma perfeita, sem pressionar a lombar nem compensar com os ombros. E corrida, corrida, muita corrida, para trabalhar o cardio, que o coração corre, corre, corre, e faz bem em correr, se não, morre, e não é bom morrer. E, por fim, alongamentos. Do peito, sempre do peito, para ver se há jeito de queimar os pensamentos.

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e vamos nós, sozinhos

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Não sei quanto a vocês, mas o meu sítio preferido onde chorar é no banho. Se for por uma merdinha de nada, as lágrimas são varridas pela água do chuveiro, dando-lhes a importância que elas têm, naquela torrente imensa. Vão as gotas, vão os pensamentos e ficamos nós, limpinhos. Se for por um daqueles vazios que nos estremecem, as lágrimas transformam a água do chuveiro em lágrimas também, dando-lhes ainda mais importância do que aquela que elas têm, naquela torrente que parecia ínfima. Vão as gotas, vão os pensamentos e vamos nós, sozinhos.

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ele ri-se, ele não se chora

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Ele ri-se, ele não se chora.
O que é estranho
porque, de onde venho,
chorar é para dentro, e demora.
Deveria ser ele chora-se, que é ser-se,
e ele ri, que rir é oferecer-se,
é para fora.

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a alegria nunca me foi

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Não sei se o que faço é arte. Nem sei, na verdade, o que faço. Mas, não sabendo, sendo arte, é o que me salva. É o que me tem mantido à tona sempre que os fantasmas do vazio me puxam para o poço escuro da depressão. Não é contacto com a alegria que me deixa menos triste, é o contacto corpo a corpo com a arte. Não é uma piada, não é um ninho de labradores bebés, não é uma refeição em família, não é um orgasmo. É a arte. É uma canção, mesmo que triste, é um poema, mesmo que aflito, é uma dança, mesmo que pobre, é um corpo, mesmo que fraco. A alegria nunca me foi bóia de salvação para nada, muito menos para quando eu mais preciso dela. É por isso que eu não páro de escrever. Para que, mesmo de pés no poço, roído até ao osso, eu continue a viver.

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queda para a saudade

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Tenho uma queda para a saudade. Não sei se é do fado que me há na História, se do sangue, se dos astros, se da memória. Sei que tenho uma queda para a saudade. Muitas vezes, sem querer, com vontade. Como se ela fosse a razão para uma espécie de criação que só existe se eu estiver triste. E a tristeza, causa ou origem da saudade, é-me uma forma de beleza que, usando para escrever, me dá liberdade. Que, usando para lá ir, vindo, me deixa caindo, sem cair.

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um descanso cansado

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A ansiedade pesa-me nos olhos. Como se tivesse chorado durante muito, muito tempo e, ao fim do muito, muito tempo, ao fim do dia, ao fim do choro, todas as lágrimas se acumulassem nas pálpebras e se deitassem. É um descanso cansado, por ter terminado, mas por ainda doer, por ter ainda cavalos a correr, e por eu ter corrido também, por estar sem. Vontade, energia, prazer. Ansiedade, mais um dia a chover.

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na ilusão da posse

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Vivemos na ilusão da posse. Nunca nada é, foi ou será verdadeiramente nosso. Nem a boca, nem o abraço, nem a patinha. Mas vivemos na ilusão de que é, foi e será. A boca, o abraço, a patinha. E, quando perdemos o que julgamos ter, vem a desilusão. Vã desilusão. E gritamos, entristecemos, choramos. Não por algo que tenhamos perdido, mas por tomarmos noção de que esse algo nunca foi nosso. Nem a boca, nem o abraço, nem a patinha. Não é uma desilusão com ela, com ele ou com ele. É uma desilusão connosco, que caímos no engano da conjugação-ilusão do verbo ter. Queda sozinha. Sem boca, sem abraço, sem patinha.

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professora-lágrima

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Sem ela, eu não seria eu. Não seria, pelo menos, este que escreve a vida desta maneira e que só encontra maneira de viver escrevendo. A professora Madalena é a minha professora primária. É, nunca vai deixar de ser. Foi ela quem me ensinou a escrever e a ler e a contar e a respeitar. Mas ensinou-me muito mais do que aquilo que eu aprendia naquela sala de rés-do-chão da Escola Primária dos Marrazes. A vida. Acho que foi o que a professora Madalena mais me ensinou. A vida. No seu estado mais puro de respeito, carinho, disciplina, amizade e sonho. Há quase 30 anos, era eu um ruço tímido caixa de óculos sentadinho quietinho na sua cadeira a ver a letra bonita da professora escrever Lição número qualquer coisa, Dia tal, do mês tal do ano antigo de 1990 e tal, Sumário. E eu sentadinho quietinho, a aprender. Este ano, pedi-lhe que trocasse o quadro negro pelo meu livro. Em vez de Lição, Dia, mês, ano ou Sumário, pedi-lhe, apenas, que escrevesse lágrima. E a minha professora, de mão tremida, escreveu. E eu, de coração tremido, li. Hoje, essa palavra, com essa caligrafia, está escrita no quadro negro da capa do meu livro. Quem me ensinou a escrever (e a ler e a contar e a respeitar) merece o melhor lugar no lugar das minhas palavras.

Lágrima, a triste odisseia de um homem feliz. À venda em Dezembro. Já disponível em pré-reserva.

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na espuma dos dias banais

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Não é o sermos proibidos de estar com outros, é o sermos obrigados a estar connosco. Fechados em casa, abertos em nós mesmos, completamente escancarados, com ventanias de pensamentos a entrar-nos pelas portas e janelas da nossa casa. Vulneráveis a nós mesmos, ao que nos inquieta que nos navega no subterrâneo rio que vamos conseguindo ignorar na espuma dos dias banais. Não é o confinamento dos outros, é o encontro connosco. É o sermos obrigados a ser o que realmente somos. E a ver, a tocar, a falar, a ouvir, a cuidar de nós. Os outros vão-nos tendo, e sendo, sempre que nos ignoramos. Nós vamos vivendo, e crescendo e morrendo e renascendo, sempre que temos a coragem de estarmos, e sermos, com quem somos. Custa, faz doer. Mas custa mais o vazio, o deixar correr o rio, o não ser.

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a elis regina não tem razão

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Desculpa, Elis Regina, mas eu acho que já não somos os mesmos nem vivemos como os nossos pais. Essa é, até, uma das nossas grandes angústias. Falo da minha geração, mas falo por mim. Eles, os nossos pais, apresentaram-nos uma vida completamente diferente daquela que nós, que eu, levamos. Eu não casei aos 20 anos, não tive filhos aos 22, nem arranjei emprego para a vida aos 25. Não tenho uma casa em meu nome, não tenho conta na mercearia, nem álbuns de fotografias de vida em conjunto. A minha vida, apesar da felicidade de uma estrutura familiar feliz, está fragmentada em memórias dispersas e descoladas. Desde que saí de casa, tive amores, paixões, desilusões, recibos verdes e casas arrendadas. Pouco mais. Não tive a capacidade de construir, nem de ajudar a construir, um único castelo onde pudesse fortalecer raízes de uma vida em linha recta, sem zigue-zagues de percurso. Os castelos que tenho são pequeninos, e muitos são de areia com bandeira a meia-haste. São vários os lutos por que tenho passado por não conseguir ser o que sonhei e por não conseguir ser o que são os meus pais. Sei bem que são outros tempos e que são outras pessoas. Eu, curiosamente, sou eu. Não sou os meus pais. Nem eles querem que eu seja eles. Mas também não é isso que me impede de ouvir constantemente um grito de angústia a ecoar-me nesta imensa sala da existência. Fracasso, desapontamento, e o cansaço de não saber se algum dia saberei ser como sonhei. E o tempo passa, cabrão do tempo, e os cabelos vão caindo, as vontades morrendo e a barba branqueando, e eu cá vou andando, com a memória carregadinha de estilhaços, alguns deles maravilhosos, mas estilhaços, pedaços que cabem numa caixa de sapatilhas e não cabem no coração. Bater de frente com a realidade da minha existência dói, inquieta e angustia. Por não estar onde eles estão, por não saber onde estou e por não saber para onde vou. Mas é precisamente a dor, a inquietação e a angústia que me estimulam na vivência do desconhecido. Por não estar onde eles estão, por não saber onde estou e por não saber para onde vou. O sonho é um lugar bonito onde estar. Mas, por vezes, não. E é aqui, Elis Regina, que te dou razão: viver é melhor que sonhar.

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o vazio da vida

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O vazio da vida é mais vazio, menos vida, ao domingo. Mais vazio, menos vida ainda, hoje. As ruas desertas, as nuvens estendidas, as pessoas fechadas, os astros alinham-se para um recolher interno obrigatório onde apenas estamos nós com o nosso silêncio, que é o nosso ruído, e os nossos fantasmas. E é quando nos recolhemos em nós próprios que damos de caras com o pesado vazio que carregamos e que a vida carrega. O aconchego do sofá não se sente além do corpo, a alma – ou a mente ou o que for que nos faz sentir – deveria recostar-se e aproveitar a incontrolável e inevitável inércia da vida, mas só se agita, só se inquieta, só se torna mais só e, por mais só, mais nossa, mais grita e mais nós a ouvimos. E ouvi-la, que é ouvir quem a tem, que somos nós, é abrir as portas ao vazio. Julgamos ser tudo, somos tudo, e, por julgarmos e por sermos tudo, não sabemos lidar com o nada que também nos existe. O confronto dói porque é raro, porque, sempre que ele nos espreita, nós ignoramo-lo e vamos fazer a nossa vidinha das nove às cinco, tomamos o café que não saboreamos, assistimos ao jogo que não nos interessa, falamos com as pessoas que não nos questionam, comemos a sopa que não nos sabe a nada, vemos o episódio que não nos estimula e vamos para a cama que nos adormece. A espuma dos dias afasta-nos do vazio, mas também nos aproxima dele. Porque, quanto mais o evitarmos, maior ele se torna quando, inevitalmente, ele nos aparecer. Como hoje. Aconchega-se, desaconchega-nos e fica, não foge, até nos adormecer.

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não és tu, sou eu

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Não és tu, sou eu. Entendes, mundo? Tudo o que me magoa está cá dentro, não aí fora. Tu não tens nada que ver com isto. Tu existes com as tuas pessoas, as tuas ruas, os teus rios, as tuas auroras boreais, os teus sismos, os teus vírus, por aí fora. Eu é que, por vezes, não sempre, não consigo existir com as pessoas, as ruas, os rios, as auroras boreais, os sismos, os vírus e por aí fora que eu tenho por aqui dentro, que, na verdade, eu sou. Não és tu, mundo. Nada tens que ver com as minhas euforias nem com as minhas quedas para melancolias. Nada, sou eu, está tudo em mim. Tudo o que amo e tudo o que odeio está em mim. E eu preciso de saber lidar com isso, e isso sou eu. Quando digo a alguma pessoa que a amo ou quando mando alguém para o caralho, estou, apenas, a projectar coisas lindas ou merdas que vão cá dentro. Amo o outro, odeio o outro, amo-me, odeio-me. Acho que é assim que funciona. E funciona lindamente quando é o ódio a mandar. A culpa não é dos pretos nem do trânsito, não é dos chineses nem do tempo, a culpa não é de nada nem de ninguém. Sendo, talvez seja nossa, que a inventamos para podermos justificar comportamentos que não têm justificação, e cuja causa não queremos destapar. Não queremos saber o porquê de odiarmos. Nem sequer queremos saber o quê ou quem odiamos. É ódio e pronto, nada mais interessa. O que eu acho, e eu não tenho qualquer autoridade para atribuir valor ao que eu acho, é que nós vivemos para os outros um pouco como espelhos de nós mesmos. E que a sujidade das palavras, os dentes cerrados e a saliva a espumar na boca são meros reflexos do que se passa dentro de cada um de nós. Não és só tu, também sou eu.

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da cegueira (da estupidez)

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Eu tenho uma almofada. É uma almofada. É mesmo uma almofada. Não há dúvida nenhuma. Vem uma pessoa e diz que aquela almofada não é uma almofada, mas sim uma carrinha de caixa aberta. Atenção, é uma almofada, mas a pessoa diz que é uma carrinha de caixa aberta. Como é que eu convenço a pessoa de que a almofada é uma almofada e não uma carrinha de caixa aberta? Eu mostro-lhe a almofada, a pessoa não é cega, a pessoa vê que é uma almofada, vê que é um objecto fofinho, uma espécie de saco estofado para assento, para encosto da cabeça ou para fins decorativos, é uma almofada, caraças, não há dúvida nenhuma de que é uma almofada. Mas aquela pessoa, vendo uma almofada, diz que é uma carrinha de caixa aberta. Como é que se discute, como é que se debate, como é que se conversa com uma pessoa destas? Pronto, é assim que me sinto sempre que me aparece um idiota xenófobo, homofóbico, racista, machista, anti-máscara (em separado ou acumulando, tanto faz) à frente. Não consigo. É difícil. É impossível debater, discutir, conversar com pessoas que são paredes. Mesmo assim, continuo a achar que é debatendo, discutindo, conversando e, essencialmente, deixando que esta gente debata, discuta e converse para que todas as pessoas que olham para uma almofada e vêem uma almofada saibam quem é esta gente que não é cega, mas que é cega e tenta cegar os outros através da estupidez.

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todas as coisas maravilhosas

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Vi a minha vida dita por ele. Vi eu e toda a gente, que toda a gente sente o que se disse, se cantou, se ouviu, se chorou. Se não fosse verdade, bonita e feia como deve ser, alegre e triste como se vê, não teria chorado com vontade, e eu chorei, toda a gente chorou. Porquê? E riu, que a vida é bela e tem canções, pessoas aos trambolhões, gelados! Mas chorou, que a vida dela era depressões, pessoa às desilusões por todos os lados. Esta peça – que não é peça, que é teatro e que, por isso, é vida – sou eu, também. Já alguém ponderou a morte? Decidida. Sou forte, por sorte ainda ninguém disse é a vida, morreu. E a felicidade, doutor? Será ela verdade? Nunca lhe tive vontade, só horror, temor, terror, nem amor. Serei alguma vez o que escrevi? Coisas maravilhosas que acho da vida, que vi, toquei, cheirei, comi, mas que, em papel, não existem… Nem sei qual é o meu, nem sei sequer quem sou eu, não quero ser dos que desistem. Não sou. Por isso, vou. E o meu cão também lá estava, centro da vida, vida que escava, e escavei eu, ainda escavo, ao ouvir o Palma e a Regina e tudo o que… Bravo! Bravo! Aplausos de toda a gente a toda a gente que viu a vida dita por ele. Disse a minha, também. Ali, inteiramente sozinha. Sem. Querida, bondosa, moída, chorosa. Que ela não desista, que nela há uma lista com esta peça – que não é peça, que é teatro e que, por isso, é vida -, coisa maravilhosa.

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voltar ao que ainda tenho

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Voltar a Lisboa, mesmo que por brevidades, é voltar ao que ainda tenho escondido debaixo do tapete das vontades. É dar de caras com fantasmas que ainda existem, dormindo, e, devagarinho, dizer-lhes acordem, acordem, vamos brincar àquele jogo do chorando e rindo, combater memórias como se fosse dança, ir ao chão como nas histórias sem vitórias, sem vingança. Criança que me sinto neste parque infantil do terror, do medo, da culpa, do amor e do ciúme. De tudo o que há de certo e de errado, que este aperto é como lume, e eu queimado. Voltar a Lisboa é ir por um caminho sujo com destino à luz clarinha, ao céu, ao rio quase mar. Mas ainda volto devagarinho, que esta dor ainda é minha, e ainda me custa voltar.

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estar longe

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Há um grande equívoco nisto do vírus: a promoção do distanciamento social. Um engano. Não é o distanciamento social que devemos incentivar, pedir, desejar até. É o distanciamento físico. Físico. Devemos evitar a aproximação de corpos, sim, não a aproximação de conversas, ideias, discussões, carinhos, preocupações, vontades. Os cartazes de rua e as manchetes de jornal não deveriam obrigar ao afastamento social, mas sim à aproximação social. O afastamento de mãos, de braços, de bocas, sim, tudo bem, que é isso que, de facto, transmite o vírus. O afastamento de tudo o resto que há além disso, não, que é tudo o resto que há além disso que transmite o que somos. Acho mesmo que deveria haver, ao contrário da errada medida que é imposta, um incentivo à aproximação social. Nunca, aliás, foi tão necessário, tão indispensável, tão essencial aproximarmo-nos uns dos outros. Estamos longe, caraças, cada vez mais longe. E claro que não falo da aproximação de peles, que isso é o menos importante quando nos tocamos. Distanciamento físico de dois metros, aceito, distanciamento social de menos dois, a ponto de, não só tocarmos, mas entrarmos no outro, irmos lá dentro, sem tocar, e falar, perguntar, ouvir, acariciar e existir, quero. Aproximemo-nos socialmente, mesmo sem tocar, que o vírus só nos afasta dos corpos, não daquilo que temos dentro, e que nos faz ser. E sonhar.

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não consigo a vida

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Preciso de ajuda, assim não consigo a vida. Há quase três anos que disse estas palavras, por esta ordem, com esta boca. Preciso de ajuda, assim não consigo a vida. Nem ver, nem ouvir, nem tocar, nem brincar, nem sorrir, nem estar, nem ser. A vida, não conseguia a vida. Ela mesma, eu próprio. A sala de consultório sempre me intimidou um pouco. O silêncio, as estantes carregadas de livros, os cadeirões ao fundo, junto à janela. Pouco a pouco, fui deixando de dar por ela – como se fosse ela o que eu sou. Nela, ou em mim, fui dizendo palavras que eram palavras, crenças e fantasmas. Na penumbra dela, ou na escuridão de mim, dei-me a mão e permiti-me entrar, mexer, escavar, cheirar, tocar, lutar, provar, cuspir, engolir, morder, gritar. Não tem sido uma maravilha, não, mas tem sido uma descoberta, de porta aberta, pela ilha que eu sou, em que me tornei. Não sei por onde vou, não sei para onde vou, sei que vou, isso sei. Mais nada. Tenho, ainda, muita lama nos meus pés, muita merda que me chama e me seduz a ser errado. Mas também acho que tenho, que estranho, coisas bonitas em todo o lado. E é o que me faz continuar, saber que eu posso ser quem quero ser, sabendo, primeiro, o que me há no interior – e o que é isto do querer. Acho que há amor. É só voltar a aprender.

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passos em volta

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A poesia tem forma. Braços, bocas, pernas, costelas, línguas, pés, cabelos, dentes. A poesia tem forma. E transforma e transgride e transporta a vida para as veias e vozes e vazios de quem a morde, trinca, saboreia e engole. O Herberto Helder fez poesia. O João, o Duarte, o David e a Beatriz deram-lhe forma. Materializaram-na, deram-lhe um corpo que ela usou que era o seu mas que não era. Era dela, claramente. Às escuras, aos saltos, às danças, às merdas puras que têm só quem sente. O João foi riso e verdade. O Duarte foi corpo, arte e loucura. O David foi puta, crueldade. A Beatriz foi, mesmo calada, apenas dançando sem voz, o grito aflitivo do nada, a vida quieta dançada, foi todos nós. Só agora voltei a ter respiração. Sinto que estive morto a viver. Quieto, no meu lugar. Corre-me o coração. A poesia também é ser. A forma é o seu estar.

“Passos em Volta”, encenação de João Garcia Miguel.

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dá a patinha

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Quando veio, ficou. Pequenino, aos pulos, comigo. Correu, sorriu, brincou, entristeceu, ganiu e agora voou, e eu perdi um amigo. O Freud estava velhinho. Já mal se mexia, gemia, e já não sabia ser cão. No último dia, foi ninho. Foi ele que nos deu carinho, nos olhou devagarinho e nos lambeu o coração. Ele tinha o dele de criança, de puto reguila, velho teimoso. O coração também se cansa. O dele, maior do que a pança, deixou-nos o tempo-lembrança, deixou-nos o rosto chuvoso. Resta a alegria que tinha, que dava aos outros e aos seus. O resto é vida sozinha. Amor, dá a patinha. Senta, deita… adeus.

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só de olhos fechados

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Deveria haver um Tinder só connosco. Com mais ninguém. Só nós mesmos. Nem outras mulheres, nem outros homens. Só a mulher ou o homem que nós somos, que cada um de nós é. Cada um, por inteiro, embora partido – só está aqui quem está partido – à procura de si mesmo. Não à procura de alguém para uma foda, mas à procura de alguém – que somos nós – para uma conchinha. Seria tudo, e o tudo, pelo pouco que nos temos dado, poderia ser tão pouco como um tanto de um olá, de um sorriso ou de um olhar. Não precisamos de muito mais quando o que nos damos é tão menos. Haveria uma app, igualzinha à outra, mas invertida, mas obrigatória, com pesquisa imediata. A distância máxima seria a mínima, a localização seria aqui, cá dentro. Em loop, apenas nós. André, 35 anos, a 0km daqui. Fotos em tronco nu, fotos com um gato e fotos a realçar os olhos azuis. Mas todas a preto, sem se verem o tronco, o gato nem os olhos. Só faríamos swipe right se estivéssemos dispostos a ver o escuro. Só haveria match se estivéssemos dispostos a ver o escuro além do escuro. Apesar de tudo o que envolve um primeiro encontro – da ilusão ao medo, do prazer à queda. Um blind date de realidade – que só de olhos fechados nos conseguimos olhar, tocar e ser. Com verdade.

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o gustavo

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Um dos meus melhores amigos fez anos hoje. Vim a casa dele beber cerveja e comer pizza. Vi o Benfica. Falámos da infância e regressei a ela quando, puxado pela lembrança, brinquei com o Gustavo e fui novamente criança. O Gustavo é filho do Cacola, um dos meus melhores amigos, desde os bibes amarelos às barbas brancas que agora temos. E vivemos. Durante tanto tempo que parece perto mas que é afastado. Deitei-me no chão com um Capitão América. O Gustavo tinha, e era, o Homem-Aranha. Tudo real, tudo inventado. Combatemos vilões, salvámos o mundo, e eu recordei corações que tinha lá no fundo.

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a lembrança

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quando ela vem
– mesmo que esperada –
leva tudo o que nos tem
e nós ficamos sem
nada
só a lembrança permanece
– mesmo que esbatida –
tudo o resto desaparece
e logo adormece
a vida

de todos os que são teus
dói dizer a realidade
além da lembrança, saudade
adeus.

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o esquecimento

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Não nos ensinaram o esquecimento. Nem os professores, nem os pais, nem os amores. Só os ais que vamos berrando enquanto a vida nos vai mostrando o que é a vida. Ora coisa lembrada, ora coisa esquecida. E, num instante, durante, somos nada. Esquecemos. Deixamos de lembrar. Queimamos o que aprendemos, sabemos, conhecemos, não por nossa vontade, mas pela triste fatalidade do deixarmos de estar. O meu tio esqueceu. Não sabe quem é ninguém – parece, não sabe quem sou eu – esquece. No lar, refém da cadeira e da vida, já não tem a brincadeira que tinha antes da despedida. Não tem olhar no olhar nem estado na forma de estar. Está assim, parado, pertinho do fim de ter estado. E eu olho para ele, do lado de fora, vejo uma espécie de frio, vejo e não vejo o meu tio, ele está mas já foi embora. O meu tio esqueceu. Não é dele este lamento. Lembra pouco, talvez demasiado, o que viveu, e sofrem outros como eu por não lhes terem ensinado o esquecimento. São lamentos meus, não do meu tio. Digo-lhe adeus do portão. Ele sorriu. Também o meu coração.

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sei que estás

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sei que estás
que me lês
e eu peço que não vás
sou ainda o que tu vês
sabes que estou
que te leio
não me peças, eu vou
tu bem vês que eu anseio

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sopa

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Desde criança que sou fiel ao artigo 1.º da Constituição da República das Crianças, alínea a) que diz que “toda a criança tem o dever humano, cívico e patriótico de odiar sopa”. Agora adulto, embora ainda criança, sou capaz de cometer o (maravilhoso) crime de adorar uma sopa da pedra, mas só. Continuo fiel ao André criança quando era criança. E, nesse tempo, fiel ao manual imaginário, rejeitava qualquer tentativa maternal dessa tortura chamada comer a sopa. Olhava o prato, cheio, sempre cheio, o sacana do prato, e evitava a colher, a de sopa junto ao prato, a de pau junto à mãe. E resmungava. A sopa está muito quente, está muito fria, está muito sopa. E, enquanto ganhava tempo para a fatalidade da ingestão de batata e legumes esmigalhados com água, olhava o admirável voo da mosca que, todas as noites, me sobrevoava a cabeça a gozar comigo ou a incentivar-me ao cumprimento da lei inventada. Eu lá ia perdendo infinitos com asas nos olhos e a minha mãe lá ia perdendo paciência com a colher nas mãos. E, no fim, apesar da minha luta pelo respeito ao mandamento irreal, perdia eu e perdia o prato, que perdia a sopa que lá tinha. E eu ali, derrotado, triste, desolado, mas de punho em riste para a próxima batalha na cozinha.

(eu contei isto tudo à Maria Carvão ® e ela fez esta coisa bonita)

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irmão coração

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Amanhã vou aprender as letras, tenho medo de não conseguir, dizia eu. Amanhã vou aprender as letras, estou tão entusiasmado, dizia ele. O meu irmão sempre olhou a vida de joelho levantado, pronto a correr com ela – ou contra ela, se fosse preciso. Eu não. Preso ao chão, indeciso, braços fechados e olhar escondido (embora nunca fechado), sempre olhei a vida desconfiado. Mas fui mudando, pouquinho sozinho, mas tanto com ele ao lado. Não deixei de ser o que era no epicentro, mas comecei a ter coragem para ser o que não era e queria ser por dentro. O meu irmão trouxe-me as pernas do sonho, o arranque do desconhecido, a coragem do coração. Eu, sem ele, escondido, continuaria a ser o que era, sonhando, desconhecendo e amando, mas sem o amor – que é o impulso da vida passando – que tenho pelo meu irmão.

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é o improviso a acontecer

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Lembro-me de ser pequenino e de ter, pequenino, vontade de ser maior, de ter, fazer, olhar, criar amor – qualquer coisa que fizesse os outros felizes por instantes que, nisto da felicidade, os deslizes são constantes e o imprevisto tanto anima como entristece. E eu, desde pequenino, improvisava, e procurava ser acima para ajudar, estar do lado deste não-estado para estar. Sempre tentei ver de fora para ver, atento e espantado com o tempo passado a correr. Ajudando. E acho que tenho ajudado, mas a verdade é que fica tarde e eu vou estando posto de lado. De fora, consigo ver, mas é de dentro que preciso ser, maior. É o improviso a acontecer, amor.

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o recreio sempre foi

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O recreio sempre foi o lugar dos sonhos. Atrás das casinhas que eram salas de aula, sonhava-se como as crianças devem sonhar, vivendo o que sonham. A minha vida, naquele recreio, foi quase sempre a de camisola dez do Benfica, de Luz cheia até ao terceiro anel e de bolas no ângulo. Agora, estão as bolas no chão e os sonhos não estão. Tomaram lugar as lembranças de quando, mais do que sonhos, éramos crianças.

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havia aqui um escorrega

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Havia aqui um escorrega gigante que demorava seis meses a subir e cinco segundos a descer, ora sentado ora em pé, a correr, para os mais fortes e corajosos e completamente loucos. Cheguei a ser tudo isso graças a esse topo do mundo feito de ferro. Havia aqui um baloiço onde eu me lançava ao céu de pernas esticadas e a tremer. Havia aqui muros riscados a pedaços de tijolo para o jogo do três em linha. Havia aqui barrocas para os berlindes, os abafadores e as pitoninhas. Havia aqui uma pista de alta tecnologia manual onde se faziam corridas de caricas. Havia aqui bicicletas que subiam e desciam e joelhos que esfolavam e rabos que raspavam na radical descida dos skates. Havia aqui infância pura sem futuros e com cheiro a eucalipto e a leite achocolatado dos Tempos Livres. Havia aqui eu. E ainda há. Nada se perdeu, especialmente tudo o que já não está.

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feitos de escuro

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Somos seres feitos de escuro. Seres sós. Os tecidos, os órgãos e os sistemas do nosso corpo são apenas coisa irrelevante que nos limita o constante do futuro, não são nós.

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parece que a escuridão

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Às vezes, parece que a escuridão ganha forma de rosto – como se a emoção fosse o oposto do que se deveria ver, nada, vazio, escuro, ausência, bruma, coisa nenhuma. Mas vejo o rosto que ganha forma na escuridão, não sendo rosto, não sendo. Não. Não é rosto, nem sequer escuridão. É espelho meu, espelho meu, o rosto sou eu, o resto é ilusão.

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cão outono

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É Verão, e o meu cão Outono. Calor cá fora, e ele, devagarinho, passo a passinho, olha o seu dono com outro olhar. Olha mais perto por estar mais perto de acabar. E lentamente, olha a gente que o sente, que o lembra arrebitado, e ele olha de volta e volta para a volta que o mantém acordado. E eu não cedo perante a tristeza. Tenho medo, mas tenho a certeza da sua felicidade. Também a minha de o lembrar, de o ver olhar apesar dos pesares da idade. É Verão, e o meu cão é Outono. Ão ão, dá a patinha ao dono.

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ela à minha espera

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Três dias depois, regressei a casa. Não foi tempo nenhum, mas foi tempo suficiente para estar ausente ela à minha espera. Esteve o dia inteiro a pensar na melhor forma de me dizer saudades e de se mostrar contente, feliz, eufórica por me voltar a ver – mesmo que por apenas três dias ausente. Foi buscar os meus dois livros e uma das minhas pulseiras. Foi buscar um boneco do Benfica. Foi buscar o senhor Alfredo, tão importante para mim como para ela, tão família minha como família dela – foi ele, este homem de bigode muito parecido com uma marioneta, que lhe alegrava todas as noites de um ano quando ela era pequenina, quando me ligava em videochamada, não para falar comigo, mas com o senhor Alfredo que, todas as noites de um ano quando ela era pequenina, falava com ela com a inocência de um homem do campo que a fazia rir e estar atenta e rir e perguntar e rir e falar e rir e, acima de tudo, acreditar. Escreveu-me que eu era fixe e escreveu o que o Vitorino lhe disse para mim. Escreveu-me um desenho e escreveu-me um poema. Recebeu-me assim, com a vontade mais pura e inocente de me agradar. E eu, chegando, deixei-me abraçar. Mas, acima de tudo, acreditar.

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levado pela corrente

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Senti-me mais perto quando me afastei. Custou o frio da água, mas nada mais. Olhei o longe e mergulhei, como se tivesse entrado na primeira dimensão da nossa vida, na placenta da mãe, desta vez, porém, na placenta de mim mesmo. Nadei até onde consegui e parei. Emergi. Fiz-me pesado para cair – o peso leva-me ao fundo – para ver se tinha pé. Deixei-me ir, queria tocar o mundo, mas vi que não era no fundo que ele estava. Deixei-me levar, fosse o que fosse, e vi-me a boiar. Boiava, e o mar salgado fez-se doce e eu fiz-me parte do mar. Senti-me mais perto quando me afastei. Mais perto de mim, afastado da gente. Mergulhei sem um fim, e deixei-me assim, levado pela corrente.

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solidão, uma proposta curricular

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A solidão devia ser ensinada na escola. Devia ser uma disciplina, mas das obrigatórias, como Português e Matemática. Talvez até mais obrigatória do que essas. Não, de certeza mais obrigatória do que essas. Antes da primeira letra ou do primeiro número, já o nosso peito fez as contas ao aeiou da solidão. E ela vai-nos existindo ao longo da vida, especialmente em épocas de recurso. Mas sem qualquer ensinamento. Sem nenhum dicionário nem tabuada do ratinho que nos ajude a lidar com ela – uma espécie de tabuada do um, na sua primeira multiplicação, sempre um vezes um, até decorarmos que, de facto, um vez um é mesmo um e que tudo o resto é elevado a ilusão.

A solidão devia ser ensinada na escola. Um módulo em cada semestre: Solidão – Introdução ao Estar Sozinho; Solidão – Ser Sozinho Não é Não Ser; Solidão – Estudo do Meio; Física e Química da Solidão; Educação Visual para Dentro; Educação Física da Memória; Língua Estrangeira I, II ou III (Loneliness, Soledad ou Einsamkeit), e por aí fora. Estas disciplinas seriam leccionadas em pouquíssimo tempo e com um único aluno por turma, no meio de uma única sala, para o aluno se habituar rapidamente ao mercado de trabalho. E sem teoria que, na solidão, a teoria já é prática. Os exames seriam no final de cada aula, sem consulta nem acesso a calculadora (para evitar ser acompanhado por cábulas) e não assim de repente, como nos acontecem ao longo da existência, logo depois de uma qualquer maravilha no recreio. Não devia ser assim. É que nem sequer somos avisados com uma semana de antecedência. Hoje há exame, André. Mas eu nem sequer estudei. Tens ali aquela mesa no meio da sala. Mas… e quanto tempo tenho? O tempo que tu quiseres. A princípio, pode parecer que vai durar uma eternidade mas, se te esforçares, pode ser que dure menos, meia eternidade, vá. E lá vai o aluno, eu, nós, para aquela cadeira sozinha em frente à mesa sozinha numa sala sozinha com um exame cheio de respostas de escolha múltipla, muitas de escolha nenhuma, e nenhuma certa.

Precisamos aprender a solidão. Mesmo que demoremos a outra metade da eternidade a preencher o enunciado da folha de exame – a tentar lembrarmo-nos de quem somos.

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o peso do medo

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Serei a única pessoa com medo? com dúvidas do que faz e do que pensa e do que sente e do que tudo? A única a tomar anti-depressivos, três por dia, por vezes quatro e cinco, e a ter consultas de psicoterapia e psiquiatria para tentar lidar com este escuro? a acordar com manadas de angústia e incerteza no peito todo? a chorar tantas vezes por medo de errar, de ter errado, de não ter força nem esperança nem casa nem família nem filhos nem dinheiro nem sucesso nem colo nem amor nem paz nem ninho? a ter fobia a multidões e atracção por gentes sozinhas que mais sozinhas a deixam? a sentir-se culpada por pouca ou nenhuma ou partilhada culpa que tenha havido em algum momento em algum lugar? a culpar os pensamentos? a desculpar a culpa? a preocupar-se com o que pensam os outros de si, do que faz, do que veste, do que sente, do que beija? a não conseguir dormir por culpa dos fantasmas cá de dentro? a rir para os muitos e a chorar aos muitos só para si só para não dar parte fraca porque a parte fraca é forte forte forte como a certeza de que, um dia, qualquer dia será morte? a precisar constantemente de aprovação externa porque a interna é um grande xis vermelho carregado pela ausência de confiança? a lembrar o passado só com a inglória e dolorosa e vã vontade de o mudar? a sentir-se irrelevante no viciado e sujo curso do mundo? a ter tanto aos olhos dos outros sem razão para sentir isto? O que é isto? a ter ataques de pânico pelo sofrimento do outro e pela expectativa do sofrimento do outro outro que sou eu? a ter medo de falhar a própria vida?

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o fernando

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Hoje, reencontrei o Fernando. O Fernando foi meu treinador no clube do meu coração, e é no meu coração que está o Fernando. Eu era o número 7, o médio centro criativo, o pacemaker (o mesmo que playmaker mas na linguagem especializada do Mister), o marcador de cantos, o distribuidor de jogo, o médio que fazia o bico do triângulo quando jogava o Edi e o Caldeira. Durante cinco épocas, de iniciados a juniores, o Fernando foi mais do que meu treinador. Foi meu líder, foi meu companheiro, foi meu amigo. E nunca foi o que foi porque me punha a titular ou porque me dava a responsabilidade dos penáltis, dos cantos e de falar no primeiro treino depois do jogo – o futebol, na verdade, nunca foi o mais importante. O Fernando foi o que foi e o que ainda é por ter sido um dos grandes pilares da minha vida. Foi o meu professor da bola, ensinando-me bem mais de vida do que de escola, bem mais de amizade do que de bola. Tanto recebi raspanetes como abraços, pré-épocas loucas nas dunas da praia da Vieira como jantaradas de comer e chorar a rir. Tanta coisa boa que lá vai. Tanta coisa boa que me fez do Fernando uma espécie de segundo pai. Não é exagero nenhum o que escrevo – muito do que sou é a ele que eu devo. O Fernando é, acima de qualquer táctica, um homem bom, com coração escondido atrás da barba e do boné que lhe escondem a criança que ainda é. O Fernando fez de mim um homem. E de tantos que nunca deixou para trás. Nunca. Levantou-os, tantas vezes do seu próprio bolso e todas as vezes do seu próprio amor. Hoje, reencontrei o Fernando. Quase chorou por me voltar a ver e me saber bem. Quase chorei também, vendo, ouvindo, lembrando – uma espécie de golo do coração. E é no meu coração que está o Fernando.

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a minha prima clarinha

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A minha prima Clarinha tem um escurinho parecido com o meu. Lá no seu peito, como cá no meu, há trovões leões canhões que despertam apertam inquietam o que há. Pequenina, também tem vontade de rugir gritar fugir chorar. E ruge grita foge e chora – epicentro. E tudo treme lá fora, lá dentro. Há dias, tremia eu por inteiro, quando a minha prima Clarinha me tirou do escurinho quando me disse que também o tinha, que também o via. Eu falei-lhe do meu, como se ela não fosse uma criança, que é e não é por sentir que sente coisas que não devia, nem devia, ninguém devia, mas sente tanta gente e tanta gente mente. E tentámos enganar o escurinho com palavras e números. Ela ensinou-me a fazer contas de dividir e conversões. Eu tracinhos e um verso. E acalmaram-se as convulsões – tornaram-se então coisa pouca. Iluminou-se o universo. Há palavras que nos beijam como se tivessem boca.

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não tenho amigos brancos

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Eu tenho amigos pretos, mas não tenho amigos brancos. Os meus amigos pretos são amigos pretos. Os meus outros amigos são só amigos. Não lhes dou cor porque nunca lhes dei, porque nunca precisei de lhes dar cor, porque eram da minha cor. É assim que somos, mas não é assim que os nossos amigos são – é assim que os pintamos. Culpa da sociedade, da cultura, da educação, do que seja, de tudo um pouco, que se entranha em nós em pequenos e não se estranha em nós em adultos quando cuspimos cores, por muito que seja sem querer, sem pensar. ⠀

Não sou eu, mas também sou. Os meus amigos são os meus amigos, quer sejam brancos, pretos, carecas ou com nariz. Não são os meus amigos brancos, os meus amigos pretos, os meus amigos carecas nem os meus amigos com nariz. São os meus amigos. Mas há quem tenha amigos pretos e, tendo-os, é porque tem mais a cor do que a amizade, porque tem mais o preconceito do que a verdade.⠀

Não somos todos, mas somos. Por muito que custe admitir, custa mais sentir na pele a cor da pele. Eu não sinto porque sou branco, porque tenho a cor que a sociedade, a cultura, a educação nos diz que é a certa, e que é a cor a que, por norma, ninguém aperta o pescoço, a cor que não vai até ao osso até sangrar até morrer. Sem ar. Porque nunca fui discriminado, porque nunca fui insultado, porque nunca fui morto por ter esta cor que, sendo branca, sendo diferente de todas as outras, é igualzinha a todas as outras que vestem os corações de quem anda, canta, chora, ri, falha, conquista, come, dorme, pensa, sonha e ama como eu, como nós.⠀

Não sou eu, mas também sou. Somos todos. E, para sermos um e todos como devemos ser, precisamos de pensar antes de ver. Combater. Enquanto ainda nos deixarem respirar.

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de lá voltar

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Não são saudades de ser criança, são saudades de lá voltar, ao sítio que se era. Só para saber como se faz, como se brinca, como se ri, como se sente, como se confia. Só para isso. Seria breve, que a vida é breve, e bela também, assim, mas seria, embora breve, embora bela, seria, com fim, para voltar. Iria lá longe, lá dentro, bem debaixo das camadas do medo que a vida trouxe, só para saber como se faz, como se era, como se é, como essência. Só para saber disto que sou quando era tudo em bruto, sem metades. Não são saudades de ser criança, são vontades de ser esperança em permanência. E não um conjunto de camadas que, de tantos medos, são tantos nadas.

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parabéns, gaiato

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O meu avô faria hoje 95 anos. Nunca lá chegarei. Ele chegou perto porque, tendo quase 95 anos, não tinha mais de 10. O meu avô, enquanto meu avô, e não enquanto severo pai do meu pai e dos meus tios, sempre foi uma criança, um gaiato rebelde que nos dava calduços à sucapa e não aceitava uma derrota na brincadeira das damas, das cartas ou do dominó. Levava a brincadeira a sério – como todas as crianças levam – e amuava quando um dos netos ou, em tantos casos, todos os netos lhe davam uma cabazada histórica de meia-noite. O meu avô de 10 anos, com quase 95, fazia corridas com os netos e com os bisnetos. E ganhava. E fazia pirraça a quem perdia. O meu avô criança, já velhote, tinha um olhinho azul que brilhava sempre que lembrava uma ou outra catraia que tinha catrapiscado há mais de 70 anos. O meu avô pequenino, já grande, tinha um sorriso malandro sempre que lhe oferecíamos, assim às escondidas, um xiripiti depois de almoço. O meu avô faria hoje 95 anos. Mas é a criança que ainda me anda para aqui a correr na memória. O gaiato do meu avô…

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a minha madrinha

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Desde aquele dia que o meu maior objectivo de vida mudou. Desde aquele dia que, em primeiro lugar, não está o meu sucesso como artista, a minha felicidade como homem ou a minha bebedeira no Marquês todos os anos até ao fim dos meus tempos. Desde aquele dia que o meu maior objectivo de vida é fazê-la rir. Tudo o resto vem depois. Se lhe provocar um riso, um simples esgar de felicidade que lhe aliene do espírito do lugar onde o espírito está, fico feliz. Sempre que falo com ela, sinto o ar pesado pela presença de quem ela já não tem, mais pesado comigo pelas parecenças que eu e ele tínhamos. Sempre que falo com ela, sei que ela fala, também, com ele. Sempre que falo com ela, sei que falo, também, em nome e em voz dele. Aquele dia foi o dia em que ele morreu. Ele é, porque nunca nenhum deixa de ser, o filho dela. Ela é a minha madrinha. A minha madrinha é, por tudo o que nunca conseguirei dizer, minha mãe também. Eu não sou o filho, mas sim o palerma que a tenta trazer à tona do mundo através de um dos mais primários reflexos humanos, o riso. Isso não faz de mim absolutamente nada, mas faz dela uma mãe que ri. Que é assim que todas as mães deveriam ser. E esta minha, apesar de longe e apesar de não ser de verdade, é a mãe mais bonita que eu – que o meu primo – poderia desejar.

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na comuna, aconteci

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Fui eu, fui outro, fui outros, aprendi, sorri, chorei, sofri, agradeci, quase morri de vergonha, quase me vim de alegria, abracei, fui abraçado, gritei, cantei, caí, amei, fui amado, vi gente que me amava, amei gente que me via, fui às nuvens, fui à lama, fingi e fui sincero, tive medo e tive medo e tive medo e tive medo e superei o medo e vi luz depois do escuro e vi tudo e ganhei tudo e perdi tudo e senti tudo. Aqui, na Comuna, aconteci. Aqui, na Comuna, fui vida. No palco como aqui deste lado em que me encontro agora. Atrás das cortinas. Com tudo e tanto, apesar de tudo e tanto, e dói e dói e dói e amo e vivo. Vivo vida que, para mim, é palco. E vivo palco que, sendo vida, é este. O da Comuna. Um aniversário que também é meu. E nunca viverei o suficiente para o agradecer. Por muito que doa. Foda-se, e dói.

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vírus-amor

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“vírus-amor” | autor: andré pereira, edição de imagem: susana rodrigues

Aqui há uns tempos, escrevi um texto que, tal como o vírus, se espalhou por aí. Esteve em Portugal, Espanha, Angola, Cabo Verde, Brasil. Foi lido, pelo padre, na missa de Oeiras e foi bordado num pano, no Recife. Um simples texto que, hoje, ganha outra vida, desta vez em vídeo. A arte é da Susana. As palavras são minhas. O vírus também.

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sozinha, a velhinha

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Não está sozinha, a velhinha – está com o medo. Acompanhada por esse morte-certa-ou-talvez-nada que é o medo. Companheiro o dia inteiro que a faz estar, não sozinha, mas sem gente que se sente onde a velhinha tem a mão. Ninguém – talvez por ter medo, também. Ou é o medo que tem a gente, e a velhinha não sente e julga ser a multidão?

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ao fundo, os tambores

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Já não saía de casa há 14 dias. Finalmente, estava a ver que nunca mais. Mas vi, e nunca mais. O entusiasmo da saída deu lugar ao medo da saída. Já não sabia o que era a rua, receava ter desaprendido de caminhar e receava ter receio das pessoas. Tentei não respirar muito, ele pode andar no ar, não falar muito, ele pode ouvir, não fazer muito, ele pode estar. Sinto o corpo fechado em si mesmo, em mim mesmo, contraído, rijo, pequeno. Sou pequeno e tenho medo. Ao fundo, os tambores, ao perto, os pesados e graves e longos rasgos de violoncelos, como num filme. Tenho medo, quero voltar para casa. Quero voltar para a minha prisão de que tanto queria fugir. Uma espécie de Síndrome de Estocolmo puxa-me para dentro, para fora dali, para casa, para junto do meu agressor de quatro paredes e uma porta. Trancada, como a minha liberdade. Volto a respirar muito, fundo, dentro. De casa.

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na linha da frente

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Há várias formas de lutar. A minha, neste momento, nesta guerra, é cá dentro, longe das pessoas. A da minha mãe, neste momento, nesta guerra, é lá fora, perto das pessoas. Sempre fomos muito diferentes, mas iguaizinhos. Mas, hoje, não sou eu, é ela. A minha mãe trabalha na área da saúde. Está, portanto, na linha da frente do combate ao inimigo. Protegida com máscara, regras e fé, mas desprotegida, como estamos todos, um bom bocado mais do que todos, na verdade. A minha mãe, que não é médica nem enfermeira, tem a função (e o dom) de ouvir, acolher e encaminhar. Recebe as crianças e os velhos, as queixas e os medos, os murmúrios e os gritos. A minha mãe não desiste nem deserta. Está e vai continuar a estar lá na frente até isto acabar, mesmo que isto não acabe nunca. Ela é assim, teimosa na bondade. A minha mãe, por ser minha mãe, está mais desprotegida do que todos. É a minha mãe, os outros todos são apenas os outros todos. Eu sou os outros todos. E a minha luta não é luta nenhuma quando luta a minha mãe. Só quero que isto acabe para ela voltar. Há mais de demasiado tempo que não a abraço. Há várias formas de abraçar.

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