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fausto, ninguém dança

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“Fausto” é uma peça de teatro que é uma peça de dança. Ninguém dança nesta peça. Mas tudo o que acontece não pode ter outra definição. Dança quem representa, quem entra e sai, dança quem nem sequer tenta, quem vai andando por ali à procura do seu papel na plateia que não há, porque apenas há palco. E todos dançamos como se fôssemos todas as personagens que ali estão. Ninguém dança, é tudo invenção. Mas acreditamos que sim, que dançamos – toda a gente. Culpa e talento de quem nos faz dançar. O Diabo não existe. O Hugo só existe com ele. Não poderia ser outro a vestir-lhe a carne – a que anda, a que corre, a que sorri, a que ri, a que grita, a que fala, a que canta, a que sussurra, a que range, a que beija, a que morde, a que desaparece. “Fausto” tem arte em muitos lugares e em muitas pessoas. O Hugo, sendo este Diabo que não existe, é arte de todos os lugares e de todas as pessoas. Pelo meio de todos eles e de todas elas, lá vai dançando e lá vai fazendo dançar como se esta dança da representação fosse, para ele, uma infantil forma de brincar. O Hugo agarra toda a gente pela boca e não deixa ninguém respirar ao longo de toda a peça. Ele é personagem de dentro e é personagem de fora, de quem representa e de quem não. É uma espécie de encenador em pontas que vai dizendo o que devemos fazer, pensar, temer e venerar. O Diabo não existe e poderia ser outra pessoa, como é em todas as outras representações de “Fausto”. Mas, quando o Hugo dança, ninguém sabe dançar.

| “Fausto”, no Teatro da Comuna. Texto de Goethe, com adaptação e direcção de João Mota. Interpretação de Hugo Franco, Carlos Paulo, Rogério Vale, Luís Garcia, Miguel Sermão, Gonçalo Botelho, Francisco Pereira de Almeida, Ana Lúcia Palminha e Patrícia Fonseca. Cenografia de Renato Godinho |

Fotografia: Bruno Simão

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uma canção do medo

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A escuridão magoa. Mais do que uma bolada na cara ou um pontapé nos tomates. A escuridão, que nem sequer nos toca, tem o incrível talento para nos deixar estendidos numa valeta. Quando estamos com ela, quando ela nos tem, não tem mais nada, não temos mais ninguém. Estamos inteiramente dentro do escuro, que é incerto, indefinido, indeterminado, desconhecido e que, pela certeza de toda esta incerteza, nos faz ter medo. E o medo, por muito que nos digam que faz parte de quem é inteligente, é bem capaz de nos partir, destruir, como faz com tanta gente. A escuridão traz o medo num carrinho de bebé. Tão pequenino que parece, tão grande que ele é. A escuridão tem outro talento além da força. A escuridão é sempre uma coisa e o seu oposto. A escuridão é sempre o monstro e a formiga, apenas sendo o monstro ou a formiga quando deixa de ser escuridão. Mas, sendo escuridão, é sempre maior do que é na realidade, porque é sempre monstro e formiga, nunca só um.

Nós estamos na escuridão. E o medo já não vem de carrinho, vem pela mão. Tudo o que lá está – que é tudo o que nos tem – é muito menos do que aquilo que imaginamos. É a imaginação que nos trama, o idealizar que há ali qualquer coisa que é chama, que nos chama. E nós vamos, acreditamos no que imaginamos, e a imaginação é real como um corpo ou um sonho. E está lá o monstro, a formiga, as famílias dos dois, os passados e futuros dos dois, os sonhos dos dois, as conversas dos dois, as fodas dos dois, e depois? Depois não há razão, pelo menos enquanto houver escuridão. Mas há pele, há guerra, há mel, há terra, há chão, há sorte, há não, há morte. À escuridão, nada lhe falta, por pouco ou nada que ela tenha. Quietinha no seu canto, completamente alastrada em nós, a escuridão não faz barulho, grita como se toda ela fosse voz. Não mexe uma palha, deixa-se estar à espera da canalha que venha brincar. E claro que a canalha, que somos nós, vem sempre. A gritar.

Desejamos a escuridão na exacta medida em que a negamos. Somos todos gente feliz nos cafés, nas ruas e nas redes sociais. A escuridão não nos existe. Jamais! Mas assim que pagamos a bica, cruzamos olhares ou bloqueamos o telemóvel, lá vem ela, essa galdéria escondida, trincar-nos as ilusões. Nós, que andamos por aí a fingir nas entrelinhas da vida, esquecemo-nos de ouvir a nossa batida. Vivemos vidas que não são as nossas, vestimos roupas que não temos, usamos máscaras que nos tapam da cabeça aos pés. Eu não sei como sou. E tu, sabes como és? Verdadeiramente, sem merdas, sem adjectivos com caracteres contados para a bio do Instagram ou do Facebook. Realmente, sem maquilhagem, sem photoshop, sem mamas, sem abdominais. Eu não sei para onde vou. E tu, sabes para onde vais?

Há qualquer coisa de atracção na escuridão. Eu sei, cedo-lhe tantas vezes. E tardo-me em sair de lá, culpa minha, claro, que a escuridão não existe sozinha, só com gente que a veja. A escuridão parece que beija. Com dentes. Aleija. Eu acho que sinto. E tu, sentes? A escuridão é uma espécie de materialização do futuro. Sabemos o que é, mas não sabemos o que tem. Olhamos, pensamos, imaginamos, mas não vamos além. Não conseguimos, não sabemos, e seguimos e logo vemos. A escuridão tem tudo o que julgamos que ela tem. É por isso que nos intimida, que nos faz sentir ainda mais sós. A escuridão é a nossa vida. A escuridão somos nós.

, texto na Grotta #5 (edição Letras Lavadas).

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não chorei, claro que não

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Não chorei, claro que não. Eu sou lá gajo de choradeiras. Este puto, que este domingo deixou a bola, é o puto que, há mais de trinta anos, me deixou na pré-primária para ir para a escola dos maiores. Naquele dia, eu chorei. Neste, não chorei, claro que não. Nem disfarcei nem nada. Nem me lembrei das futeboladas de rua, com pedras a fazer de baliza. Nem dos passes teleguiados deste menino para os golos deste puto. Há provas. O meu pai filmou alguns jogos ao lado do pai do Miguel. E as mães ao lado uma da outra. Só partilhávamos um ano por escalão. Ele descia a equipa, eu subia. Miguel, sabes que é verdade. Mas também é verdade que ele dava uma magia diferente àquela magia que é o futebol. Mesmo em campos de terra, com linhas tortas, sem relva. À homem. À garoto. Não conheço ninguém que não goste do Miguel. Também não me lembrei da escola. Nem dos copos. Não vale a pena falar disso agora. Felizmente, não há provas. Só tive um clube, o Sport Clube Leiria e Marrazes. O Miguel teve outros, mas só teve um. Este clube deu-nos família. Eu já tinha, e ainda tenho, o Miguel.

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nada a não ser ver sofrer

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Não decorei o texto. Não subi a palco. Não representei. Não tenho como agradecer à Neide, que fez tudo isto por uma personagem que eu apenas escrevi. Não fiz nada a não ser ver sofrer, sofrendo também. Custou-me a antecipação das luzes. Doeu-me a barriga. Tive prazer. Disse todas as palavras que a Maria disse. Fiz todas as marcações que a Neide fez. Fui o que ela foi. Estive onde elas estiveram. Ver a Maria viva, real, criada pelo nervo e pelo corpo da Neide, foi de uma estranheza tão assustadora quanto bonita. Como ela é. Como elas são. As duas. E toda a gente que encheu a sala. Não tenho como agradecer a ninguém. Ela sem lugar, e eu sem palavras.

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do choro uma coisa bonita

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A Carminho tem o dom de chorar com a garganta. Quando canta, faz do choro uma coisa bonita com todo o desespero e com todo o prazer que só a beleza tem. A voz da Carminho é verdade, e é ela que vem quando ela a chama. Ela não embala, estremece. É uma voz que cala quem não a esquece e a continua a lembrar mesmo depois de ela deixar de cantar. A voz da Carminho é uma espécie de lágrima arrastada arrancada ao coração. Não precisa de mais nada. Só assim, já é canção.

A Carminho veio ao Teatro José Lúcio da Silva cantar com a Orquestra Jazz de Leiria. Chorou com a garganta, mas pouco se ouviu, porque se ouvia o que não se deveria ouvir, o típico virtuosismo gabarola de quem tem talento a tocar, mas não o tem a compreender o que se ouve, o choro. É habitual em quem procura mais o aplauso do que a emoção, por só encontrar a sua vaidade no lugar do coração. A Carminho veio sozinha e foi sozinha que ela esteve em palco – apesar de toda a gente que o pisava. Eles não ouviam, mas ela chorava.

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vitorino sem angústias

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Tenho a impressão de que o meu gato sabe tudo da vida e por isso é que não anda para aí com angústias sobre o que é ou deixa de ser. Limita-se a viver, e viver assim, desta maneira, parece-me ser demonstração de uma inteligência fora do vulgar, inteira. Desde que tenha comida e protecção, o meu gato está onde tem de estar, aqui, e é o que tem de ser, feliz. É, pelo menos, o que me parece. Tem, também, um ou outro coração que lhe dá colinho, festinhas e algumas palmadas – que tantas vezes merece, tantas vezes de mim -, e isso é capaz de ajudar à minha crença de que ele é feliz. Espero que sim. Ele não me diz.

Vitorino, a viver sem angústias – e com algumas palmadas, que tantas vezes merece – desde 17 de Março de 2016.

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é a maria, e a maria sou eu

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A Neide é a Maria, e a Maria sou eu – eu sou sempre o que escrevo, e a Neide é sempre o que ela quiser. Ela pediu-me palavras, eu escrevi Maria. Sem lugar.

MARIA SEM LUGAR
Teatro, Monólogo
25 de Março, 21h
Auditório Municipal Padre Bento da Guia, Moimenta da Beira

Sinopse: Maria não tem lugar porque não sabe que lugar é o seu. Maria tem dúvidas sobre o que é e sobre o que quer, mas tem certezas de que o seu lugar nunca é o lugar onde ela está. Ao longo de 40 minutos, Maria desabafa a sua normalidade que tanto parece anormal aos olhos do mundo segmentado e polarizado dos dias de hoje. Uma mulher e algumas palavras num palco que, naturalmente, também não sente como seu.

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uma coisa que não tem nome

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“Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos”. As palavras de Saramago deram origem a esta coisa que tem o meu nome, o nome do Ruben e o nome do Nuno. A estes, juntaram-se outros nomes, de alunos das escolas secundárias Francisco Rodrigues Lobo e Domingos Sequeira. Tantos nomes, uma só ideia: criar.

Ao longo de cinco sessões – a primeira foi esta semana – iremos explorar o processo criativo através de três artes: Escrita, Música e Fotografia. Em cada sessão, uma peça artística de cada arte: todas as semanas, a divulgação dessa peça artística nas páginas de Instagram e de Facebook do projecto; no dia 9 de Abril, a divulgação de todas elas numa exposição na Biblioteca Municipal Afonso Lopes Vieira.

Por enquanto, arte. Toda essa coisa de tantos nomes que existe dentro de nós.

Aqui.

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quietinhos e caladinhos

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Hoje é o Dia da Mulher. Mas, homens, muita atenção! Não podemos dizer que hoje é o Dia da Mulher. Qualquer menção ao Dia da Mulher, qualquer gesto de carinho para com a mulher neste dia, apenas vai reforçar a discriminação do homem em relação à mulher por haver um Dia da Mulher. Portanto, nada de dizer que hoje é o Dia da Mulher. E nada de gestos carinhosos, de beijos, de poemas, de chocolates, de flores, de jantares. Não devemos pronunciar Dia da Mulher em lado nenhum, em nenhum momento. É discriminatório. Reforça a desigualdade. A mulher que aproveita o Dia da Mulher para condenar o Dia da Mulher não quer que o homem aproveite o Dia da Mulher para elogiar a mulher. Deixemos a mulher criticar, no Dia da Mulher, quem utiliza o Dia da Mulher para não a criticar. Deixemos a mulher usar o Dia da Mulher como bastião de uma relevância que a mulher não precisa de ter (pela simples razão de a mulher já ser igual e não precisar de nenhum dia para que essa evidência seja realçada) para ela criticar quem usa o Dia da Mulher como bastião de uma relevância que a mulher não precisa de ter (pela simples razão de a mulher já ser igual e não precisar de nenhum dia para que essa evidência seja realçada). Hoje é o Dia da Mulher. Mas, homens, muita atenção! Vamos defender a igualdade, obedecendo, quietinhos e caladinhos, às ordens da mulher.

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não ter medo não existe

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Não ter medo não existe. Todos temos medo. Quem foge e quem luta. Quem diz que não tem medo não quer dizer que não tem medo, quer dizer que tem coragem. “Não tenhas medo”, “Por que é que tens medo?”, “Não sejas medricas” são frases de uma narrativa da fraqueza sobre o medo que nos é metida pela goela abaixo desde o berço. Ter medo não é fraqueza. Só é corajoso quem tem noção do perigo que enfrenta e que teme. Não é corajoso quem enfrenta o que não faz mal, o inofensivo. A coragem vem da noção da existência do medo, não da sua negação. Todos temos medo. Sobretudo quem acha que não.

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só um bocadinho

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Um garoto a curtir Moonspell. Cinco anitos, mais coisa menos coisa, de mini-metaleiro empoleirado aos ombros da mãe. Eu, mais velho um bocadinho, quase nada, fui também aquele pirralho de cabelo em pé e deditos trocados no ar. Foi bom voltar a sentir aquela inocência de quem ouve metal pela primeira vez. Caraças, que maravilha, bateria, guitarra, baixo, teclas, voz, potência, irmandade e delicadeza. Fiquei à beira de chorar mas, como bom metaleiro que sou, chorei mesmo. Só um bocadinho, quase nada.

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génio e sombra de génio

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Hipólito, Fedra, Teseu, pouco importa. Poderia ser João, Maria, Manuel. Importa a culpa. Só ela, sempre ela, do princípio ao fim da peça, do princípio ao depois do fim das personagens. A culpa assumida por Fedra por estar apaixonada por quem não deveria estar, a culpa atirada a Hipólito por não venerar uma deusa que deveria venerar e por desejar uma humana que nunca desejou e nunca teve, a culpa escondida de Teseu por ter condenado à morte quem não merecia morrer. Fedra escolhe a morte, Hipólito rende-se a ela, Teseu morre deixando-se viver. Há palavras e gestos que não são deste tempo, tal como há génio e sombra de génio que não deveriam existir no mesmo palco. E isso importa, apesar de tudo. E tudo é culpa. Não deixando de ser teatro.

| “Hipólito”, pela Companhia de Teatro de Almada, no Teatro Municipal Joaquim Benite. Texto de Eurípides, encenação de Rogério de Carvalho, interpretação de Carolina Dominguez, Cláudio da Silva, Elsa Valentim, Joana Francampos, Marques Arede, Miguel Eloy, Pedro Fiuza, Sofia Correia e Teresa Gafeira |

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palavra bonita dita pela boca

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António Costa, rejeitando qualquer conversa com o CHEGA, está a rejeitar qualquer conversa com 385.559 pessoas. Para ele, por pensarem diferente, estas pessoas não existem. Ele não diz que elas têm ideias diferentes – isso ele diz sobre todas as outras que votaram noutros partidos ou que não votaram, de todo. O que ele diz é que esta gente que votou neste não existe. É vazio. É nada. Ele nem considera a hipótese de tentar perceber as razões para esta gente ter as ideias que tem – ou, não as tendo, ter votado em quem votou. Ele, simplesmente, olha para o lado e finge, dizendo, que esta gente não existe. É ele que diz ser o primeiro-ministro de todos os portugueses. É ele que tem o dever de o ser – mesmo daqueles que têm ideias diferentes, por muito abjectas que possam parecer ou ser. António Costa, rejeitando qualquer conversa com o CHEGA, está a rejeitar aquilo que diz defender: a democracia, a igualdade, a liberdade – nada disto pode ser apenas palavra bonita dita pela boca de qualquer um. Tudo isto deve ser dito por inteiro, com toda a definição que tem. Catalogar parte do seu povo como inexistência é catalogar-se como isento de pensamento, de tolerância e de humanidade. Rejeitar quem é como nós – porque somos todos iguais, ou não somos? – é rejeitar-se a si próprio. É assumir uma única inexistência, a sua.

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benfica vs. benfica

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Se aquele golo tivesse contado, talvez o Benfica tivesse vencido. Mas duvido que tivesse começado a jogar um futebol incrível. O Benfica tem sido prejudicado uma ou outra vez pela arbitragem, mas não me parece que isso tenha assim tanta relevância. A arbitragem é sempre o bode expiatório de qualquer clube que está mal. É a tal necessidade de um vilão. A História explica isso, como diria o filósofo António Costa. E essa explicação vai da realidade à banda desenhada – o Batman não seria tão herói se o Joker não fosse tão vilão. Quando o Benfica não tem hipóteses de ter o Sporting nem o FCPorto como vilões (tendo em conta as distâncias pontual e de futebol praticado), atribui esse papel à arbitragem. Esta atitude de transferir o alvo para outro que não para si é natural no comportamento humano, mas não é uma inevitabilidade. Mas, ao que parece, parte da nação benfiquista acha que sim – ou melhor, não acha, aceita sem pensar em achar o que quer que seja. Mas só aceita porque não pensa, ou porque pensa mal. Porque, na verdade, o vilão do Benfica é o Benfica. E isso, se já custa pensar, custa ainda mais assumir. Mas é a verdade, é o passe a rasgar. E é o único caminho para o crescimento, para o golo.

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somos todos chega

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Ao longo do ano, somos todos CHEGA: todos criticamos, provocamos, insultamos quem nos governa. Cuspimos frases feitas, sem conteúdo, sem noção e sem saber. Assim que uma pessoa igual a nós faz exactamente o mesmo que nós, mas na televisão, à frente de um partido, com gente aos ombros, nós deixamos de ser CHEGA. O nosso ódio ao CHEGA não vem do que ele diz ou defende. O nosso ódio ao CHEGA vem da nossa parecença com a gente que faz dele o que ele é. Não somos contra ele, somos contra nós. E bem. Mas seria saudável, e inteligente, se tivéssemos coragem para o admitir.

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não votar também é votar

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Não votar também é votar. Quem não se interessa, quem não quer saber, quem não acredita, quem é contra, toda esta gente que não vota por não querer é gente que diz tanto como a gente que vota. Eu voto. Acho que toda a gente deveria votar. Mas também acho que, se nem toda a gente o faz, que é tanta, e se devemos caminhar para uma sociedade que seja representativa de toda a gente, devemos aceitar quem não se interessa, quem não quer saber, quem não acredita e quem é contra. Que não votar também é votar.

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nem os homens são iguais

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A doença da esquerda é acreditar na fábula da igualdade. A doença da direita é acreditar na fábula da superioridade. A esquerda diz-se superior por defender a igualdade dos homens. A direita diz-se igual para defender a superioridade além dos homens. Ambas defendem a utopia. Nem os homens são iguais, nem há nada acima deles. A doença da esquerda é a mesma doença da direita: uma absoluta aversão à humanidade.

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a aceitação do caos

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Tenho de aceitar este meu caos. Gostava, ou gostaria?, está bem das duas maneiras, mas uma é mais certa do que a outra, será que é certo afirmar que uma maneira é mais certa do que a outra?, não necessariamente uma maneira, mas alguma coisa ser mais certa do que outra coisa, assumindo que ambas são certas?, se ambas são certas, o que interessa além daí?, é como usar pontos de interrogação a meio de frases, ou letras minúsculas ou vírgulas depois de pontos de interrogação, será?, não sei, ou não usar pontos finais, cuspir na, pontuação; certa! e andar por: aí escrevendo o que bem me apetecesse da maneira que bem mapetcêsse, caraças, usei o gerúndio, adoro usar o gerúndio, pouca gente usa, dá a ideia de erro, mas só dá essa ideia a quem, não sabendo escrever ou não sabendo saber, que ainda é mais grave, é um erro, e agora estou a confundir quem me lê por não estar a acompanhar esta barafunda de, ora aqui está outra palavra bonita, barafunda, gosto, não sei bem por que razão, até porque, escrita, não é lá muito bonita, e dita também não é linda, mas é o que é, gosto da palavra, não tenho de arranjar uma justificação lógica para gostar dela, ou tenho?, como se o amor, oh não, lá vem ele falar de amor, não, não vou, porque agora emperrei, aqui está outra palavra gira, ou melhor, outra conjugação de uma palavra gira, emperrar, numa interjeição, é oh não ou ó não?, ou tem vírgula lá no meio?, eu acho que tem, mas não a usei, também não a vou usar agora, que já foi numa linha passada, perceberam a graça?, uau, muito giro, avançando, não saindo do lugar, a verdade é que gostaria, vamos manter gostaria, sim, de ser organizado, de ter a minha vida arrumadinha, as minhas meias, os meus apetites, as minhas palavras, os meus ódios, tudo ajeitadinho num degradê de cores, da mais escura para a mais clara, como se fosse uma mensagem subliminar para os fios condutores, possivelmente eléctricos, da minha vida, olhem lá, oh seus mandriões, ou ó seus mandriões, clareiem-me a vida, se fazem favor, ora aqui está outra conjugação bonita, estou cansado comigo. Tenho de aceitar, eu sei que tenho, eu juro que tento, mas não consigo.

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representação do engano

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Sempre nos queixámos da falta de sinceridade e da constante representação do engano levada a palco pelos nossos políticos. Quando nos aparece um que diz tudo sem joguinhos de palavras – concorde-se ou não com o conteúdo, não é isso que estou aqui a discutir -, nós ficamos muito ofendidinhos porque ele é demasiado directo, porque ele é demasiado aberto, porque ele elogia ideias dos adversários, porque ele admite erros, porque ele sorri, porque ele explica e porque ele não tem postura de político. Condenamos o fingimento e o engano, mas não sabemos, nem queremos, viver sem eles. É isto, não é?

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doença de domingo à noite

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Gosto de assistir ao processo de desenvolvimento de doença mental dos canais generalistas ao domingo à noite. Na RTP1, há uma banalidade do génio. Todos são incríveis, e ai como é difícil ter de escolher um para não ir à final, porque até me arrepiei com o teu sublime, que não é interpretar nem saber dizer as palavras, é só gritar e ter as unhas pintadas. Na SIC, há a imposição do medo por um chef prepotente que grita e manda e insulta e destrói, e só assim sabe ser porque só assim é que se vai a algum lado, o mundo é fodido e por isso temos de ser fodidos com o mundo, não há cá boa educação para ninguém, só demonstração de força, que é só a completa ilustração da ausência de força. E de amor. Na TVI, o elogio da mediocridade, os holofotes no reles e na acefalia colectiva, votem em mim que eu quero ser famoso, e a fama dá-me tudo, e eu sou tudo porque apareço, se desapareço, não sou, e obrigado aos portugueses lá em casa que votaram em mim, sem eles não sou nada. E não é mesmo. Tenho de ir dormir, que isto faz-me mal aos olhos.

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adeus tristeza, e eu chorei

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Adeus tristeza, e eu chorei. Só parei de chorar muito tempo depois de ele ter parado de cantar. O Fernando Tordo veio a Leiria. Veio, também, como sempre vem quando o Fernando vem, o Ary. E eu ali, a lembrar histórias de canções que não vivi, mas que sempre fizeram parte do que fui sendo. Mesmo antes de ser. Eu ainda não existia, e sinto que já ouvia a poesia na melodia das canções. Lá, na Rua da Saudade, número 23, rés-do-chão direito. Esta poesia nesta melodia à desfilada no meu peito. Estas canções. Culpo o meu pai e a minha mãe, que me davam a ouvir o mais bonito que a beleza tem. Adeus tristeza, e eu sem saber se o que digo é ternura, se é riso, se é pranto. Pesada e leve, secreta e pura, e eu chorei tanto.

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quem se diz de esquerda

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Quem se diz de esquerda é feito da mesma matéria de quem se diz de direita. Não apenas da mesma matéria corpórea, mas da mesma matéria de pensamento. Quem se diz de esquerda, como quem se diz de direita, só se diz do respectivo lado apenas por dizer o que já está dito por outros e não por eles. Quem se diz de esquerda, como quem se diz de direita, defende uma ideologia que não dá liberdade ao pensamento, uma cartilha que não permite ter outras ideias e comportamentos que não os inscritos nas bíblias de um e de outro lado. Quem se diz de esquerda, como quem se diz de direita, deveria pensar antes de dizer o que quer que fosse. Há tudo em todo o lado, e as boas e as más ideias não são de um lado ou de outro. As boas e as más ideias são, sempre, de um lado e de outro. Portanto, quem se diz de esquerda, como quem se diz de direita, talvez se pudesse definir melhor se não se definisse de forma tão redutora. Sem ideologias, mas com ideias – venham elas de que lado vierem.

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ó minha coisa tão boa

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ó minha coisa tão boa
sei lá eu por que fugiste
deixando esta pessoa
assim tão triste

já procurei nos lugares
que partilhámos felizes
e além de não estares
só encontrei raízes

foi por tua vontade?
foi alguém que te levou?
é que eu já sinto saudade
nem sei bem onde estou

se foi por culpa minha
manda uma carta ou assim
que esta vida sozinha
não é para mim

prefiro não estar aqui
à espera sei lá de quem
dizem todos que é de ti
talvez seja de ninguém

mas ao que tudo parece
já foste e nem um adeus
e agora quem te esquece
se todos os tempos são teus?

só me resta esperar
mesmo sendo uma ilusão
de que esse preciso lugar
tenha acordo de extradição

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tenho achado graça a isto

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Foi o dia mais frio do ano, este de 1985. Pelo menos para os meus pais. Para mim, até àquele dia, este, de 1985, também foi o mais frio do ano e de sempre. E também o mais quente. E o mais ameno, também. Foi o meu primeiro dia. Passados alguns, os meus tios, o meu pai e a minha avó foram buscar-me nesta alcofa vermelha com uma botija de água quente. Passaram 13.514 dias (sim, pedi ajuda ao meu irmão para fazer as contas), e aqui estou eu a escrever um texto no Instagram semelhante a todos os outros que escrevo neste dia para, por um lado, escrever – uma coisa que eu até adoro – e receber alguns miminhos de pessoas que, muitas delas, só estão a fazer um scroll infinito no Instagram e deram de caras com esta alcofa vermelha de bebé e acharam graça. Eu tenho achado graça a isto desde aquele dia frio de 1985. Não sei bem porquê. Mas desconfio de que o cogumelo bordado na alcofa seja uma pista.

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no próximo primeiro dia

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O primeiro dia do ano é sempre um jogo em modo Hard. Qualquer coisinha tem de ser especial porque é a primeira coisinha do ano e vai condicionar todas as outras coisinhas que se seguem ao longo da vida – que é até ao próximo primeiro dia do ano. Vou sair pelo lado direito da cama, assim viro-me para a janela, abro o estore (não, não é estoro) e recebo logo a luz da manhã – vou fazer sempre isto porque o sol faz bem e não sei quê. Roupa interior azul por ser tradiç… Não. Roupa preta, que é com ela que eu ando o ano inteiro e este primeiro dia tem de ser uma declaração do meu eu. Haha Desculpem. Não vou ver já as mensagens. Primeiro, tenho de falar com a minha mãe, com o meu pai e com o meu irmão. Só depois com as outras pessoas. Mas o telemóvel está mesmo aqui ao lado, vou ver, não posso, não consigo não ver, não vou ver, olá, pai, olá, mãe, olá, Pedro. Objectivo cumprido. Chupa, necessidade-de-estar-sempre-em-contacto! Acordei com esta música na cabeça, vou ter de a ouvir, vai ter de ser a primeira. Mas estou à mesa para tomar o pequeno-almoço e o comando da televisão está mesmo aqui ao lado. Preciso de pensar no Ghandi para resistir ao poder imperialista da falsa necessidade (mais uma) de companhia televisiva. Volto ao quarto e oiço a música que queria ouvir. Mais um checkpoint. Gravação automática do jogo. E, agora, o pequeno-almoço? O que comer hoje vou comer todos os dias do ano, tem de ser, tenho de criar uma regra, desta é que é. Feito. Vou ao banho. Água fria, claro. Diz que faz bem e eu quero coisas que me façam bem, é hoje que eu vou iniciar o Reich de Mil Anos do Banho de Água Fria. Claro que é. Game over. Try again. No próximo primeiro dia do ano. 

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metáfora bonita da minha vida

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Hoje fui ao ginásio. Mas não fui, porque estava fechado. Metáfora bonita da minha vida, esta. Ando eu o ano inteiro em luta com a necessidade de sair da zona de conforto para, quando a consigo vencer – ou quando lhe consigo ceder, dependendo do ponto de vista -, olha, afinal não era preciso, desculpa lá o incómodo. Ridículo, isto. Tanto isto de eu não ter confirmado os horários do ginásio, como isto da necessidade de sair da zona de conforto. Que necessidade? Qual é a ideia? Ir para uma zona de desconforto? Porquê? Eu quero estar bem, quero estar confortável, portanto, quero estar – rufem os tambores para esta bomba nuclear ao nível da lógica – na minha zona de conforto. Ai, mas eu gosto é de estar na minha zona de desconforto, diz um iluminado do poder do agora e das terapêuticas do caralhinho. Não, não gostas, digo eu. Primeiro, porque é uma contradição linguística que eu não vou estar a dissecar por ser demasiado óbvia. Ok, vou dissecar, adoro dissecar o óbvio: se gostas de desconforto, é porque te sentes confortável com isso. Portanto, essa tal tua zona de desconforto passou a ser zona de conforto a partir do momento em que gostas dela. Segundo, porque é ridículo uma pessoa sentir-se bem sentindo-se mal. Pronto, é isto. Vou para casa. Mentira, já estou em casa. A foto é em minha casa. Ia agora fazer uma dissertação sobre o conforto com uma mochila ao ombro, todo desconfortável? Era o que faltava. Isso e vontade.

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cultura nesta terra linda

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O Jornal de Leiria insiste em dar-me voz. (Não entendo.) Desta vez, usei-a para escolher, sabiamente, a Personalidade e o Acontecimento de 2021 na área da Cultura nesta terra linda que é Portugal.

Acontecimento do Ano:

O lançamento da Lotaria do Património Cultural foi, sem dúvida, o acontecimento do ano. É certo que a Cultura não está bem, mas, sem esta raspadinha, é certo que estaria muito pior. É por isso que condeno, com bastante veemência (que é assim que eu gosto de condenar), quem diz que esta raspadinha é uma forma de deixar a Cultura à sua sorte. Nada mais errado. Está escrito na sua definição: “jogos de azar”. Nem a sorte nem a Cultura têm nada que ver com isto.

Personalidade do Ano:

Uma que são duas. Uma dupla personalidade, portanto. Uma que adora a Cultura, mas que prefere a Primark. Uma que critica o encerramento das salas de teatro, mas que nunca se sentou numa plateia. Uma que chora a morte de um escritor, mas que nunca leu um livro seu. Uma que acha que um músico merece receber mais, mas que prefere pagar-lhe em likes. Uma que vai para a rua gritar, mas só se a rua for o Instagram. Uma que fecha museus, mas que abre igrejas. Uma que se lamenta ao microfone, mas que só dá o microfone à bola. Uma dupla personalidade, portanto. E com tão pouco lá dentro.

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uma canção que não existe

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O meu pai está sempre a cantar uma canção que não existe. Faz aquele murmúrio sem palavras e sem direcção ao chegar de algum lugar ou, não chegando, estando nalgum que o faça cantar, não cantando. O meu pai canta essa canção que, mesmo não sabendo qual é, não poderia ser outra. Se ele soubesse, se eu soubesse, deixaria de ser a canção que o meu pai está sempre a cantar para ser uma canção qualquer, uma canção vulgar. Na verdade, a canção existe e é a que ele quer, mas só naquele lugar desconhecido que faz do meu pai, sempre depois de eu o ter ouvido, um homem que é tudo menos triste. E não é só por eu o ouvir. É por ele sentir que é mesmo feliz. E canta essa felicidade. Mesmo não sabendo de onde vem nem a sua definição. O meu pai é esse murmúrio que ele tem, e eu sinto-me sendo a sua canção.

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vem cá

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vem cá dar-me um bocadinho
daquilo que tens guardado
que eu não consigo sozinho
ter o que está desse lado

tens que ser tu a trazer
não custa nada, anda lá
que eu tenho esta mão a doer
e a outra também está

vem agora, mas devagar
para eu ver com atenção
o teu jeitinho ao chegar
perto do meu coração

mas não te chegues tão perto
que ele não lida tão bem
com o batimento incerto
que o teu coração tem

diz que perde a cadência
que fica tonto e perdido
ao sentir a iminência
de voltar a ser partido

por isso é melhor não vires
deixa guardado o que é teu
que o coração que partires
está sem guarda e é meu

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não sendo imortal

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Sendo o universo infinito, sendo ele tudo isto, quando eu morrer, quando eu deixar de ser, não morrerei nem deixarei, direi que existo. Porque, nesse momento, tudo o que eu sou irá para algum lugar. Mesmo não dizendo nem sabendo se vou, vou lá estar. Não existe lugar nenhum – assumindo que tudo é permanente. Portanto, serei um que será tanta gente. Serei assim, igual – este conflito. Mesmo não sendo imortal, sou infinito.

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ensaio sobre a despedida

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O Jardim das Cerejeiras, de Tchekhov, é um ensaio sobre a despedida. Tudo o que está em palco, que é cenário e que é personagem, está a dizer adeus. Tudo diz adeus a tudo. A personagens, a lugares e a si mesmo. E a peça mais não é do que esse processo de abandono, de partida. Diz-se adeus a uma casa, a um jardim, a uma terra, a um armário, a dinheiro, mas também se diz adeus a uma governanta, a um mordomo, a uma família, a um amor e, dizendo adeus a tudo isto, diz-se adeus à memória. E o regresso que é gatilho desta peça para esta despedida é mais doloroso por um outro adeus que ainda custa a dizer – por não se saber dizer, o adeus a um filho, que vai existindo como um ruído de fundo que vai encaminhando o mundo de cada um para um fim esperado. Há crítica social, lutas de classes, futilidade cultural e outras irrelevâncias que, claro, pouco importam para isto. Esta peça é sobre despedida e sobre o doloroso dever de a viver. Entre poucas dolorosas interpretações – pedinchando dinheiro e desfilando espingardas, sobressaíram as de quem já anda nisto há uma vida e as de quem, não andando, parece que sim. Felizmente, há actores que estão e que conseguem ser aquilo que querem parecer, sendo aquilo que o teatro deve ser, vida. Mesmo sendo, tantas vezes, um ensaio sobre a despedida.

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parou, deixou de ser

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Fui ver uma peça de teatro, mas não a vi até ao fim. Um actor sentiu-se mal, e a peça acabou. O actor está melhor, e o personagem parou, deixou de ser. Perdeu, naquele momento, o coração que lhe dava vida além do guião, o actor. E ele, o personagem, sem órgão muscular, vai estando com a vida parada até à vida do actor voltar. É um gesto de amor dar a vida para que outra exista também. E o actor lá vai existindo sem saber bem qual é a sua. Representa uma e outra ou não representa nenhuma? Alguma delas é assim tão nua que dispense representação? Ou são as duas, despidas ou vestidas, que fazem delas o que elas são e do trabalho do actor um trabalho em vão? Para mim, ver uma peça de teatro é ver a duplicar. É ver actor e personagem cada um na sua vida, e ficar sempre sem saber se uma despedida impede alguma vida de voltar.

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a repetição das coisas boas

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Foi mais do mesmo. E ainda bem, que a repetição das coisas boas faz bem e quase ninguém as faz – mesmo não sendo exactamente repetição. Cada palavra e cada gesto são improvisação, mas tudo é feito com o talento que se repete em cada palco onde eles estão. Eles são o César, o Carlos e o Gustavo. Com eles, o Guilherme, o Jaume e o Nuno. Todos são tudo o que um espectáculo deve ser: arte. E, apesar do espalhafato de caixas e luzes, o que há em palco é apenas vazio, invenção, regresso à infância pelo caminho mais simples e mais bonito, o da imaginação. Agora ele era um pescador, e há barco e há mar. Agora ele era uma beata, e há deus e há sacristia. Agora ele era um cão, e há cauda e há chão. E, sendo tudo o que imaginam, havendo tudo o que não existe, levam a gente dali para fora para um lugar que, de tão alegre, chega a roçar o triste sem chegar a ser tristeza. É uma espécie de beleza melancólica que, de tanto nos fazer rir, nos aproxima do que somos: crianças com o talento mágico de ver quem não está e o que não há. E isso faz-nos sentir. Não apenas rir.

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o lugar onde não nasci

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Não nasci nos Marrazes. Os meus pais não nasceram nos Marrazes. O meu irmão também não. Ninguém da minha família. Mas não me sinto de outro lugar. Sendo de algum, sou deste. Porque este lugar recebeu-me, deu-me casa, deu-me amigos e deu-me clube. O meu clube deu-me escola. O meu clube é muito mais do que duas balizas e uma bola. O meu clube é ir sempre, esteja a torrar ou a chover, é saber ganhar e aprender – embora com forte resistência – a perder, é entrar a pés juntos quando tem de ser. E pouco disto tem que ver com futebol. Não nasci nos Marrazes. Mas não me vejo noutro lugar que não no círculo central do velho pelado, número 7 nas costas e corvo coladinho ao lado esquerdo do peito. O meu clube faz hoje anos. Eu, não fazendo, mas sendo quem sou graças a ele, faço também.

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capitão artur

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PRAIA DO OSSO DA BALEIA

Eram sete. Resta um, Artur. Com a ideia de facilitar o acesso à Praia do Osso da Baleia, foi criada uma comissão de sete homens. Em 1977, começou a abrir-se caminho. Devagarinho, só aos sábados, mas com vontade de ver aquele sonho transformado em realidade. Artur orientava, e muita gente vinha, e toda a gente trabalhava. O almoço era por conta de Artur, e Artur conta que era um convívio bonito de se ver. Hoje, vê o caminho até à praia e não vê ninguém que o ajudou. Há gente que já não está, e a que está “não sabe quem sou, não sabe que fui eu que fiz isto”. Há mágoa, mas o orgulho é maior. “Dantes, vinha-se de carro de bois ou de tractor”. Ou a pé, para os mais aventureiros. “Eu vinha a pé. Só comecei a vir de tractor em 1968, quando a minha mãe me deu autorização”. Em 1969, Artur apanhou o barco para Angola. Esteve na guerra, mas não a viu. “Foi a vida melhor que eu tive. Nunca fui destacado para lado nenhum, nunca tive nenhum dissabor”. A única dor que sentiu foi depois de ter dado sangue para ajudar uns camaradas vítimas de um acidente. “Fecha a mão, abre a mão, fecha a mão, abre a mão… Aquilo era uma garrafa de cerveja cheia de sangue. Depois, deram-me uma bifana mas, nos dias seguintes, o corpo mordia-me por todo o lado. Com o tempo, lá recuperei. Deram-me um louvor e 15 dias de férias”. Voltou ao quartel e, mais tarde, voltou à terra. Teve uma empresa de cerâmica e outra de materiais de construção. Pelo caminho, abriu caminho até à praia. “Tomara eu ter essa idade e voltar atrás, mas o tempo não volta”. Eram sete. Resta um, Artur.

[uma parceria com a Rede Cultura Leiria 2027]

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capitão acácio

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PRAIA DO BALEAL

“O mar era tudo para mim. Hoje, já não tenho capacidade para nada”. Acácio foi pescador, mariscador e nadador salvador. Apanhou robalos, douradas, percebes e gente. Hoje, apanha memórias que lhe navegam dentro. Lembra-se de ser menino e de ir com o pai para a pesca. Era feliz. Mas também se lembra de ser menino e de ir com medo para a escola. Era triste. Acácio sofria bullying. “Na altura, ainda não havia essa palavra, mas os mais velhos insultavam-me e batiam-me. Chegaram a atirar-me a bicicleta pela ribanceira abaixo”. Mas Acácio não caiu. Trocou a escola pelo pai e a matemática pelo mar. As contas, essas, foi fazendo-as ao longo da pesca. Havia dias em que apanhava mais de 200kg de percebes. Hoje, o limite é de 20kg por pessoa. “Ganhei dinheiro, mas também ganhei muitos sustos. Um deles veio numa onda que me foi buscar à rocha e me arrastou. Rasgou-me o fato, as costas, os braços e as pernas”. Foram elas que o traíram numa queda a transportar peixe no Prainha, o restaurante de família construído pelo pai há 60 anos. Foi operado, mas uma embolia pulmonar quase lhe tirou a vida. “O que me salvou foi eu ter os pulmões tão saudáveis por ter nadado tantos anos”. Sobreviveu, mas ficou parado. Das pernas e do que lhe ia dentro. “Eu chorava, chorava, chorava… Cheguei a ter consulta de Psiquiatria marcada, mas pensei: «tu és mais forte do que isto tudo». Fui dar umas voltas junto ao mar e atirei os problemas para trás das costas”. O mar foi mesmo tudo para Acácio. A vida, a queda e até a sua terapia.

[uma parceria com a Rede Cultura Leiria 2027]

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capitão albino

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PRAIA DE SANTA CRUZ

Tinha 13 anos quando se atirou ao mar, pela primeira vez, para salvar alguém. Ela, uma miúda, estava aflita. Ele, um miúdo, também. Mas ele conseguiu, ela sorriu e cada um voltou à sua vida. A dele, na praia, começou ainda bebé. “A minha mãe costurava as barracas, o meu pai alugava-as. Aos três anos, já aqui estava com eles, a comer a papinha e a dormir a sesta”. O seu pai era o que Albino seria durante a vida toda, banheiro. “Às seis da manhã, já andava a montar as barracas e a limpar a praia”. Eram mais de 300 metros de extensão de areia e mais uns quantos de extensão de mar. Sempre que lá ia, tinha de voltar. E voltou sempre, cansado, mas com gente que se afligia e quase lá ia ficando. Houve um homem que ficou. “O mar estava bravo – como sempre está nesta praia – e o homem estava estranho. Entrou no mar, mas eu chamei-o. Duas vezes entrou, duas vezes saiu. Pediu-me desculpa. À terceira, foi e já não conseguiu sair. Alguém o trouxe e ele acabou por ficar. Acho que aquele homem ia com aquela vontade de não voltar”. Albino entristece ao lembrar esta história, mas a memória dá-lhe mais alegrias do que tristezas. “Salvei muita gente e fiz muitas amizades”. Tantas vezes contra a corrente, Albino sente saudades. Das ondas, mas também das canções que chegou a tocar em bailaricos para pôr gente a dançar. Os corpos ondulavam e Albino, de certa maneira, lá voltava a ir ao mar.

[uma parceria com a Rede Cultura Leiria 2027]

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clareza: o falhanço

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Julgo sempre que falhei. E, sim, talvez tenha falhado. Não deveria ter dito, ter feito nem ter estado. E o efeito de tudo isso é este julgamento constante onde estou sozinho e sou bastante. Tenho este compromisso de desilusão e balanço entre a dúvida e a certeza do que aconteceu. Mas sempre com esta clareza: o falhanço sou eu.

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capitão antónio

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PRAIA DE SÃO MARTINHO DO PORTO

“Ovos, açúcar, fermento e farinha. É assim que eu faço, à maneira antiga”. À maneira de António Pedro, na antiga Pastelaria Concha, ambos nascidos nos anos 50. “A massa brioche deve ser sempre feita de um dia para o outro”, e parece que foi ontem que António aqui entrou. Tinha 13 anos quando veio aprender com os pasteleiros que, no Verão, vinham de Lisboa ajudar no negócio. Um deles, o Gonçalves, “era um artista, fazia rosas de caramelo como eu nunca vi ninguém fazer”. E ele, o António, foi aprendendo, até que chegou o dia de tomar conta da pastelaria. Tinha 20 anos, e já não era preciso ninguém de Lisboa. Havia António, de São Martinho do Porto. E, com ele, pastéis de nata, tranças, areias, bolachas, palmiers e outras maravilhas que eram uma delícia “para a malta que vinha da Green Hill, às cinco e seis da manhã, já com os copos – ainda saí com o rolo para dar na carola de um ou outro”. São muitos os que fazem fila para entrar – “nesta altura do Verão, chegamos a atender mil pessoas por dia”. O de António Pedro começava às quatro da manhã e terminava à meia-noite. Agora, o horário é outro, que António já está reformado, mas o gosto é o mesmo. É por isso que continua a vir, a vestir o avental, a pôr o chapéu de pasteleiro, a amassar, a enfornar e a deixar toda a gente que lá vai com vontade de voltar. À sua maneira, ao seu lugar.

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sou ironia (nada)

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Sou uma pessoa muito humana, amiga do seu amigo, que está de bem com toda a gente. (menos consigo) Sou muito humilde e tenho a mania da perfeição. Estou sempre contigo. (comigo é que não) Sou muito frontal, sou dono de mim. Sou apaixonado pela vida. (embora mais pelo seu fim) Sou a minha melhor versão, a minha arma é o sorriso. (sou vítima do que quero e não do que preciso) Só me atrevo a escrever aquilo que não sou. Quando escrevo, sei não ser e recebo mais do que dou. Sou um sonhador, um perfil de fachada. Sou ironia. (nada)

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eu com ele, onde ele não há

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Para eu estar num lugar, tenho de estar na iminência de o deixar. É uma urgência que tenho em mim, estar. Mas só estou se sentir a dor da perda por antecipação. Só estando, não. E o lugar pode ser casa, café ou coração. É tudo aquilo que é e que eu só quero quando estou a perder. E, depois, quando ele não está, estou eu com ele onde ele não há, longe de mim. Para eu estar num lugar, tenho de estar na iminência do seu fim.

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o dia são tambores

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É o barulho. Tudo é barulho. O sol, o almoço, o vento, o cheiro, os cafés, os cães, as janelas, os cigarros, os carros, os pensamentos, as cores, os sorrisos, as flores, a rua, a estrada, a escada, o passeio a pé. Nunca sei o que ouvir porque oiço tudo como tudo é. Porque oiço tudo, se tudo é? Se o tudo fosse leve… mas o tudo são dores. O dia não me serve. O dia são tambores. Não quero ouvir tambores. Não quero ouvir estrondos no peito. Mordo o dedo indicador e fica a marca. Aceito, e sinto a carne e o osso ao morder. É uma espécie de grito contra mim. Mordendo, vomito, e doendo e aflito vou sendo o que grito, uma espécie de aproximação do fim. Culpo o dia, mas a culpa vem de mim. Não devia, não sejas assim… Sou, e ela é minha. E eu só verdade. Mas só à noitinha, quando me chega a saudade.

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capitão manuel

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PRAIA DA AREIA BRANCA

Não é capitão, é herói. Sem capa e sem vaidade, Manuel Marques salvou a vida a muita gente. “Eu só queria que ninguém morresse, bastava-me ouvir um obrigado”. Ouviu muitos, tantos, que, ao recordá-los, o mar parece ganhar ondas nos olhos velhos que o olham. “Um dia de mar bravo, estava bandeira vermelha, e dois irmãos vão ao mar. «Ó mano, salva-te que eu vou morrer», dizia um. «Aqui ninguém morre», disse eu, e trouxe-os, um em cada mão, para terra”. Em cada mão, também, uma medalha de tantas que guarda em casa. Dizem Coragem, Abnegação e Humanidade, palavras recebidas por “actos de salvação marítima e de socorros a náufragos”. O que se sente ao ser-se herói? “É bonito, sinto-me feliz. O meu corpo serviu para trabalhar”. Salvando gente, abrindo guarda-sóis, preparando as barracas, cuidando da praia. Manuel era banheiro. O título de Nadador Salvador só o ganhou em 1959, quando fez o curso – o primeiro em Portugal, “no ano da inauguração do Cristo Rei”. Os braços, abertos às gentes que salvava, também se abriam às algas que ia buscar ao fundo do mar… “e a algumas senhoras que se demoravam na água”, sorri Manuel, o “malandro jeitoso” daqueles tempos. Sorrindo, e lembrando, Manuel é banheiro outra vez, sendo herói. Desta areia, deste mar.

[uma parceria com a Rede Cultura Leiria 2027]

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capitão alberto

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LAGOA DE ÓBIDOS / PRAIA DA FOZ DO ARELHO

Alberto sempre sonhou ser pescador. Na escola primária, o primeiro trabalho manual que fez foi um barco de cortiça. Não queria ser jogador de futebol, nem polícia, nem professor. “Queria ser pescador”. E foi, e ainda é. Por influência do avô, que o levava para a Lagoa e o ensinava a apanhar amêijoas, berbigões e mexilhões que depois serviam de complemento ao almoço que a avó lhes vinha trazer. Aos 16 anos, comprou um barco. Deu-lhe o nome de ALGOJA – as primeiras sílabas de Alberto Gonçalves Jacinto. Mais tarde, com as suas mãos, deu vida ao BEGOTO – o mesmo jogo de palavras em sílabas diferentes. “Fui eu que o fiz quando saí da tropa. Estive em Mafra pouco tempo, mas adorei – era motorista”. Mas nunca deixou de ser capitão. De lagoa, nunca de mar – “nunca senti o entusiasmo, e aqui é mais sossegado”. O mais próximo que esteve dele, do mar, trabalhando, foi ali ao lado, na Praia da Foz do Arelho, há uns 30 anos. “Vendia amêijoa, berbigão, caranguejo, pevides, tremoços, amendoins… Gostava muito, mas voltei para aqui”. É aqui que se sente feliz. “Todas as manhãs venho à Lagoa. Tiro uns caranguejos, vejo as artes das enguias e, à tarde, vou trabalhar”. Alberto faz manutenção de máquinas numa empresa aqui perto. Já trabalhou numa cerâmica, é agricultor, canalizador, percebe de mecânica e até ensina, mesmo não tendo ido longe nos estudos, biólogos e professores sobre a sua arte. Já apanhou alguns sustos na pesca, mas apanha mais caranguejo. Aqui, nesta Lagoa que conhece como as palmas das suas mãos.

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capitã orlanda

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PRAIA DA NAZARÉ

“Ó mãe, não sei se sou capaz”, lamentou Orlanda, ainda menina, quando a mãe lhe sugeriu tomar conta do seu negócio de arrendamento de quartos e apartamentos. “Pegas nesta plaquinha, sentas-te ali e perguntas às pessoas se procuram um lugar onde ficar”, respondeu-lhe a mãe. “Pela minha mãe, eu fazia tudo”. Então fez e então ficou – já lá vão 36 anos. A vergonha passou e ela começou a ganhar um gosto que nunca mais a largou. “Hoje é disto que eu vivo e não me vejo a viver de mais nada”. O trabalho dá-lhe tudo o que lhe é importante – “algum dinheirinho” e tantas lágrimas, todas elas de alegria pelas amizades que vai criando com os hóspedes. “Quando se vão embora, ou choram eles ou choro eu”, diz, chorando. Encosta as costas das mãos aos olhos, enxuga as tais alegrias e volta a sorrir. Sorri mais nos três meses de Verão e na Passagem de Ano, no Carnaval e na Páscoa, quando há mais gente à procura de estadia. A dela é sempre ali, na sua terra, com a sua gente, arrendando apartamentos, quartos, rooms, chambres e zimmer. Alegria incluída.

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uma espécie de batota

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Quem me vê sozinho, não me vê sem um livro. Ando sempre com um para não me sentir apenas um – por medo do vazio aonde isso me possa levar. Andando sozinho, com um livro, não ando sozinho. O livro é-me companhia, é-me bóia de salvação para quando começo a ficar sem forças por falta de talento para estar assim, só eu, em mim. É uma espécie de batota, eu sei, andar com alguém que não é alguém, que é só papel, mas sem ele custa mais andar, estar e permanecer quando ando, estou e permaneço sozinho – que, em boa verdade, é quase sempre. Mesmo quando estou acompanhado sem um livro. Com gente.

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capitão orlando

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PRAIA DA VIEIRA

Amor de Mãe. Orlando Faustino tem o nome da sua primeira embarcação tatuado no braço forte e choroso da memória. O nome vinha dos antigos donos, e assim ficou. E Orlando fica longe quando lembra a sua infância junto da mãe e do seu amor, junto do pai e das suas redes. Orlando foi apanhado por este ofício ainda criança – “tinha uns seis ou sete anitos” quando começou a fazer redes e a ajudar o pai na pesca do camarão. O barco era pequeno, Orlando também, e os medos da mãe eram maiores por ver os dois amores entregues à pesca e ao mar. Por vezes, acompanhava o coro que se ajoelhava na areia a rezar para que os pescadores marinheiros voltassem bem. Orlando e o seu pai sempre voltaram. E sempre se acompanharam nestas andanças, mesmo quando, ainda menino, com 11 anos, Orlando foi trabalhar no vidro. Aos 17, de corpo e mãos já calejados, mudou-se para a metalurgia, onde limpou limas e fez a contabilidade da empresa. Veio a guerra, veio a tropa e, quando veio o fim, veio o sonho da emigração, mas o Exército disse-lhe que não. Ficou por cá, desfez-se o sonho e fez-se marido. Voltou a fazer-se ao mar, pescando e fazendo redes. Remendou algumas como remendou a vontade de aventura sendo bilheteiro do cinema, dirigente do clube e secretário da biblioteca da terra. “Como diz o outro, só estou bem onde não estou”, a não ser que esteja onde sempre esteve. No mar.

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capitão quiaios

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PRAIA DO PEDRÓGÃO

Quem conhece a Praia do Pedrógão, conhece Manuel. Foi lá que ele nasceu, foi lá que ele cresceu e é lá que ele quer continuar a viver e a trabalhar até não conseguir mais. “Nunca pensei sair daqui. E, se ainda não saí, já não saio”, diz, e continua. “Meteu-se-me na cabeça desenvolver a minha terra, e acho que tenho conseguido”. Parece que sim. Pelo jeito como as pessoas lhe falam e pelo jeito como os lugares, calados, dizem as memórias que guardam. O café Casino, que abriu quando tinha 17 anos, é uma espécie de ponto de encontro para as gentes que passam pela praia. As esplanadas, há pouco tempo destruídas pelo temporal e agora renascidas por Manuel, são lugar de peixe à mesa e pés na areia. A discoteca Stressless também diz memórias, mas é Manuel quem não quer lembrar. “Evito lá entrar, é um choque muito grande”, quase chora. Agora, é só um esqueleto do que foi. Ele, tendo sido tanto, é feliz. Levanta-se às quatro da manhã e vai para o mar. Pega no barco e nunca sabe quando volta. Por vezes, até faz para se demorar, preferindo, à terra, o mar. “É uma paixão minha”, volta a sorrir. Ao voltar, traz robalo, linguado, raia, pregado, dourada e cansaço. Mas tudo passa quando veste o avental e se põe ao grelhador. Há dias em que só o deixa à noite. “É amor. Faço tudo com amor”.

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capitã lurdes

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PRAIA DE SÃO PEDRO DE MOEL

“E tem sido assim uma vida”. As palavras são de Maria de Lurdes; a vida, sendo também a sua, é a de São Pedro de Moel. Aquela praça junto à praia não seria a mesma sem ela, que faz dela sua casa desde 1975. Na altura, trabalhava como contínua na Escola Primária da Pocariça durante a semana e, aos fins-de-semana e feriados, vinha a São Pedro vender tremoços, pevides, amendoins, pinhões, bolos e merendeiras. E foi vindo, e foi ficando, e hoje já ninguém lá vai sem passar por ela, sem pedir um euro de tremoços – dos mais rijinhos -, um bolinho bem cozido e um saco pequeno de pinhões, se faz favor. “Dois e trinta, três e trinta, quatro e trinta, aqui tem, obrigada, até amanhã”. Parece que foi ontem que chegou ali, sorri lembrando ao fazer as contas ao tempo que ali está. A conta dá 46 anos, mais uma mão-cheia de pevides para compor. Lembra os primeiros tempos, lembra as crianças que deixou na escola e que hoje a deixam emocionada por a visitarem já adultas. “Tenho muitas saudades das crianças”, quase chora. Mas agora não se vê noutro lugar. “Quero continuar aqui. Eu, sem São Pedro, acho que deliro”. São Pedro, sem ela, não seria.

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o silêncio faz parte

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E agora? O que é que eu faço? O que é que eu digo? Sorrio? Não sei sorrir. Desvio o olhar e a atenção para outro lugar? Finjo não estar? Como é que eu posso fingir não estar se toda a gente me vê? Para fingir não estar, tenho de estar. Se não, não seria fingimento, seria realidade. E todo este momento não seria momento porque seria verdade. É melhor não ser. E eu não sei. Não sei quem sou nem sei quem são estas pessoas que me olham. São más? São boas? Podem acumular ambas as condições – são pessoas, não são soluções. E eu sou outra pessoa. Ou outras, uma só, multidão… Por enquanto, sou tanto. Um dia, serei pó. Tudo em vão. O que é que eu sou? O que é que eu faço? O que é suposto fazer? (além de esconder o embaraço de não saber) Poesia… Deveria dizer poesia. Aqui, em cima destas mantas, perante estas pessoas que eu não conheço. E são tantas! Poesia… O que raio é isso? O que tem de ser? É rimar? Ou é só parecer? “Arte”… O que é que eu vou dizer?

Respira, André. O silêncio faz parte. A poesia é também o que não é. Como o amor, o vazio, a fé. Sorrio, é melhor sorrir. Sim, mesmo não sabendo como fazer. Acho que é assim. Pelo menos, vejo pessoas a sorrir para mim. Deve ser por compaixão. Umas olham, outras não, e eu em revolução por não saber fingir. Nem sorrir. Tenho de me mexer! A mão. Sim, a mão! Faz qualquer movimento com a mão! Abre. Fecha. Abre. Fecha. Não. Deixa… Não faças nada! Tens de falar. Sim, fala! Diz qualquer coisa, abre a boca, mostra os dentes, ajeita o cabelo, aclara a garganta e diz o que sentes. Não deixes que a ansiedade te obrigue a calar. Tens de falar! Não quero falar. Não quero estar aqui. Quero chorar… Sorri. Não consigo. Sorri! O que é que eu digo?! Falar, ou o ensaio para a fala, cansa-me o peito. Se calhar é defeito de fabrico o meu peito querer sempre fugir do lugar onde eu fico. E eu fico aqui. Sorri. Não consigo. Sorri! Não tenho jeito… O meu peito manda e anda e corre e quase morre de cansaço. E agora? O que é que eu faço?

Sei sempre o que fazer. Tudo! Nunca fico calado, parado, mudo, à espera que algo aconteça. Não sou desses malucos que ouvem vozes na cabeça. (embora pareça, eu sei) Como se desse para ouvir vozes noutro lugar que não na cabeça. No umbigo, no pé, no braço… Sou tudo aquilo que digo e não digo, sou o André, só não sei o que faço.

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